Quarto das Meninas

 

O barulho da maçaneta girando rompeu o silêncio da casa escura e uma fresta de luz da rua adentrou o recinto junto com a voz tenra da velha senhora:

 

- Por aqui, minha querida - disse, estendendo a mão para que a mocinha pudesse entrar. – Jana, é o seu nome, não é, meu benzinho?

 

- Sim, Jana – respondeu sorrindo, a moça.

 

Lá fora uma chuva persistente salpicada de relâmpagos fazia do lugar um refúgio.

 

- Onde posso deixar meus sapatos? - disse a jovem, modos delicados e frágeis, parecendo que ela poderia quebrar a qualquer momento.

 

- Não se preocupe com nada. O que você molhar, amanhã eu enxugo, só quero que você se sinta confortável.

 

A senhora acendeu a luz. E diante da menina uma elegante sala de estar surgiu. Tapetes com desenhos curvilíneos cobriam o chão, belos quadros emoldurados e tapeçarias preenchiam as paredes. Sobre uma mesinha ao lado do sofá de couro, um abajur emitia uma luz envelhecida e cansada no ambiente. Uma luz que não chegava até os cantos do recinto, dando a estranha sensação de que ele se estendia infinitamente até mergulhar na escuridão.

 

A mulher desapareceu num desses cantos enquanto a menina observava tudo, caminhando cautelosamente pelo lugar, temendo quebrar uma das muitas estatuetas sobre os móveis. Uma delas, uma estátua de bronze de Medusa projetava uma sombra alongada na parede dando a impressão de que várias cobras rastejavam em direção aos cantos. 

 

Um trovão rasgou o barulho contínuo da chuva agora torrencial, trazendo a garota de volta. Com ele, voltou a senhora, um aspecto bondoso, maternal. Em suas mãos, trazia uma toalha, um par de pantufas e um pijama.

 

- Não sei se essas roupas te servem, eram da Guiga, minha sobrinha, mas ela não vai reclamar. Guiga tem mais ou menos o seu tamanho... – completou, sussurrando para si mesma.

 

***

 

A garota tomou um banho quente e gostoso. O pijama e as pantufas lhe serviram perfeitamente bem e a mulher lhe trouxe chá com biscoitos. 

 

- A senhora é muito gentil. Não sei o que seria de mim esta noite se a senhora não estivesse passando perto daquela ponte, provavelmente a enchente teria me levado. Nossa! Não quero nem pensar numa desgraça dessas.

 

- Ah, não foi nada - e bebericou a xícara - qualquer pessoa faria a mesma coisa. Às vezes, a vida coloca oportunidades diante de nós, só precisamos estar de coração aberto.

 

A garota não pensou muito sobre aquelas palavras, achou melhor não prolongar aquela conversa. Estava cansada.

 

- Bem, eu preciso ir. Vou pedir um uber.

 

- Ah, mas de modo algum. Vá amanhã. Esta hora, além da chuva, você pode tropeçar em outros perigos da noite. Durma aqui. Tem um quarto para você se deitar.

 

- Poxa, muito obrigada. Eu vou aceitar. Está realmente tarde e estou exausta. Onde eu vou dormir?

 

- Ali, minha querida - disse, a mão enrugada apontando para um corredor que mergulhava no escuro. - No final daquele corredor tem um quarto. 

 

Era o quarto de Guiga.

 

***

 

A garota procurou um interruptor para acender a luz do corredor, mas não achou, de modo que apenas se encaminhou em direção à porta do quarto. A mulher não foi com ela.

 

- Tenha uma ótima noite, querida. Aqui você estará totalmente segura e livre dos perigos deste mundo – disse a idosa, um sorriso plastificado no rosto, um brilho estranho no olhar.

 

A garota deu boa noite e fechou a porta. Com facilidade encontrou o interruptor, estava curiosa para ver o que encontraria naquele quarto (o quarto da Guiga). Apertou o botão, mas o click terminou na mesma escuridão de antes. "Putz! Ninguém merece!"

 

Foi caminhando devagar até uma das paredes, se havia uma cama, ela provavelmente estaria nos cantos. Não sabia por quê pensou isso, a verdade é que a cama poderia estar em qualquer lugar. Sua intuição, porém, revelou-se correta. Ela se sentou e largou o corpo sobre a cama, exausta. Contudo, sentiu que deitara sobre algo. Passou a mão sobre o objeto e o que seus dedos lhe contaram lhe gelou a espinha. Um, dois, três, quatro... Cinco! Cinco dedos. Uma mão. Um braço. "Que diabos é isso?!"

 

Ela pegou o celular, o aparelho pulou de suas mãos como se quisesse fugir daquele lugar. Acendeu a lanterna e apontou. Era mesmo um braço, pouco maior que o braço de um neném. Apontou a lanterna na direção da cabeça e o foco iluminou um rosto de plástico, um rosto com um sorriso congelado, indestrutível.

 

Uma boneca. Uma coisa inocente, um brinquedo, mas era medonho naquelas circunstâncias.

 

Jana respirou fundo, o ar parecia-lhe insuficiente e o coração ainda reagia ao susto. “Uma boneca da Guiga”, riu e chamou a si mesma de idiota enquanto empurrava a boneca para o canto. Ali se deitou e virou para o lado. 

 

Atrás dela, mergulhado na escuridão do quarto, o sorriso congelado da boneca.

 

***

 

A garota despertou de um sono turbulento, o quarto ainda estava escuro e lá fora a tempestade parecia ter apertado. O fato de estar ali, protegida da chuva, lhe trouxe certa sensação de conforto, no entanto, não estava perfeitamente bem. Sentia-se estranha, afinal não estava em casa. E se sentisse vontade de ir ao banheiro? Se levantaria e iria até lá, naquela casa que ela não conhecia e cujo tamanho real sequer tinha a mínima ideia? Por um instante teve a sensação de que a sala onde estivera antes de ir dormir era um cômodo central de onde partiam inúmeros corredores que davam em quartos, em bibliotecas sinistras, em salas de jantares compridas com mesões de madeira maciça onde refeições são servidas por uma governanta gorducha, carrancuda e conhecedora de todos os mistérios daquele lugar. E imaginou tudo isso iluminado por velas parcas, que produziam uma iluminação ambígua, do tipo que deixa você pensando no que habita os cantos dos cômodos e se rasteja sob o mobiliário de aspecto severo.

 

Pensamentos ruins, fantasias sinistras, só isso, ela pensou. Foi e voltou do sono com aquelas ideias bizarras, o que acabava levando a pesadelos. Começou a suar, fazia calor. E nada de energia elétrica para ligar pelo menos um ventilador ou, pelo menos, para acender uma luz e ela ter uma noção do espaço onde estava. Mas havia luz na sala quando ela chegou. Provavelmente a tempestade deve ter comprometido a rede elétrica lá fora.

 

Sentiu fome, pensou em se levantar. Mas não conseguiu.

 

Forçou um pouco mais, tentou se virar, mas seu corpo não respondia. Desesperada tentou gritar pela anfitriã de aspecto maternal, algo terrível estava lhe acontecendo, parecia presa dentro de seu corpo, um corpo imóvel que não respondia à sua vontade.

 

O grito também não saiu. Apenas uma voz baixa, sem força, sufocada. Estaria sonhando? Se estivesse, certamente era um pesadelo. Ou algo pior estaria acontecendo e ela estava acordada num corpo dormente, sem poder gritar por ajuda. Já havia lido umas histórias sobre paralisia do sono e também sobre os efeitos que alguns venenos têm sobre suas vítimas. Então teria sido envenenada? “O chá! Só pode ter sido o chá” – pensou.

 

- Tenha calma - disse uma voz vinda de um dos cantos. Era uma voz de garota, menos infantil, porém.

 

- Quem está aí? - retrucou Jana, mas a pergunta assustada saiu como o último som de um rádio cuja a pilha se extinguia.

 

- Meu nome é Paula. Eu durmo aqui. Não vi você entrar, estava dormindo na hora. Mas percebo que está um pouco apavorada. Sou amiga da Guiga, ao meu lado ela nunca está só.

 

- Paula? Ué... Aquela senhora não me falou de você.

 

- Também não deve ter falado de mim - disse outra voz de menina, vinda do outro canto.

 

Jana tentou virar-se na direção dessa nova interlocutora, mas seu corpo não respondia.

 

- Você é a Guiga?

 

- Ah não, - disse a outra voz, cujo som nadava num certo riso leve - eu sou Carina. Também durmo aqui. Também sou amiga da Guiga. Ao meu lado, ela nunca está só.

 

Jana sentiu medo. Não sabia explicar por quê, estava definitivamente presa dentro de algum pesadelo e queria acordar. Não havia nada de errado naquelas garotas, mas a velha não falara sobre elas e isso enchia a cabeça da garota de perguntas. De onde vieram e se não eram a tal Guiga, então quem eram e por que estavam ali? Ficou quieta. Voltou a se refugiar na hipótese de que toda aquela coisa estranha certamente era algum tipo de pesadelo e em algum momento ela iria acordar.

 

E sim, era um pesadelo... Mas não do tipo que se pode acordar.

 

Um raio caiu perto dali, explodindo o silêncio num rompante violento.

 

- Ela também te falou sobre a Guiga? - retomou Carina, desejando prolongar a conversa.

 

- Sim. Ela dorme aqui, não é? Este é o quarto dela, certo?

 

- Na verdade, era. Guiga está morta.

 

- Ou, pelo menos, não está viva do jeito que você imagina - completou Paula.

 

*** 

 

Jana engoliu seco, aquelas palavras fizeram ela se sentir como se tivesse tentando escapar de um abismo tenebroso se agarrando em paredes escorregadias das quais ela podia deslizar para sempre em direção às profundezas. Precisava da ajuda de alguém, mas se conversava com aquelas meninas, tudo ia ficando ainda mais estranho.

 

- Ela não me disse isso. Achei que essa garota estava de férias em algum lugar. É a sobrinha dela, certo?

 

- Não - respondeu Paula - Guiga era a filha dela.

 

- Nós estamos aqui por causa dela, da Guiga - disse Carina, esclarecendo as coisas (ou tornando tudo ainda mais obscuro).

 

- Como assim?

 

- Paula - disse Carina depois de breve silêncio - acho que ela ainda não se deu conta do que está acontecendo aqui.

 

Como numa tempestade, onde a luz e as trevas se alternam, o entendimento veio para Jana como uma torrente e o medo como a mais absoluta escuridão. Ela se deu conta de coisa bastante esquisita: enquanto falava, não mexia a boca.

 

- Guiga sou eu - disse uma voz rouca de menina imediatamente ao pé do ouvido de Jana. - E você está deitada sobre meu braço.

 

Uma sequência de relâmpagos invadiu o quarto por poucos segundos e os olhos de Jana alcançaram um espelho na parede oposta. Talvez estivesse colapsando em algum tipo de pânico delirante, mas teve a impressão de ver no breve reflexo uma cena estranha: um quarto cheio de bonecas.

 

*** 

 

A porta do quarto se abriu e a luz tremeluzente de um candelabro com velas invadiu o quarto escuro. Mais uma vez não tinha luz. Outra tempestade, outra queda de raios, outra falta de luz...

 

... Outra menina ilhada, outra atitude benevolente. Outro chá e outra menina olhando a sombra de Medusa na sala.

 

- Você dorme neste quarto hoje, mocinha. Aqui era onde Guiga dormia.

 

- Ah muito obrigada.

 

- Não tem do que me agradecer. Se tem uma coisa que sempre faço com todo amor do meu coração é cuidar com carinho e acolher meninas perdidas como você. Isto é como um propósito para mim, minha razão de viver. O mundo está cheio de maldade, o tempo nos envelhece, os homens são maus e o destino pode ser ainda mais cruel. A vida pode ser uma verdadeira maldição para moças ingênuas e desprotegidas. A juventude precisa ser protegida, precisa ser preservada. Pode ficar sossegada e dormir bem, aqui você estará livre de todo mal. Amor e proteção, isso é tudo que moças jovens e lindas como você precisam.

 

Não se preocupe com nada. Daqui pra frente, eu cuidarei de tudo...

 

 

 

Wilde Green
Enviado por Wilde Green em 03/12/2023
Reeditado em 10/12/2023
Código do texto: T7946391
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