A CRIANÇA NA JANELA – CLTS 25

Naquela época, Sara e eu morávamos no campo. Tínhamos acabado de comemorar nossas bodas de cristal. Gastávamos boa parte do nosso dia em tarefas cotidianas no sítio. Em paralelo, eu realizava alguns trabalhos como artesão para o povo da cidade. Esse ofício, confesso, me agradava bem mais do que o cuidado de plantas ou o trato dos bichos. Por isso, enquanto era visto por muitos como um agricultor medíocre, era por outros tantos reconhecido como artista de talento. Dentre minhas obras constavam imagens de santos para capelas e igrejas, móveis imponentes para casas importantes e urnas para o repouso de nobres. No entanto, veio de minha mulher a mais especial encomenda de todas: um boneco de madeira.

— Para quem? — perguntei.

Ela deslizou as duas mãos sobre a barriga, e meu coração desritmou-se no peito. Grávida! Essa simples possibilidade me encheu de alegria. Depois de anos de casados, Sara afinal ganharia nosso primeiro filho. Era isso. Essa era a explicação para os enjoos constantes, para os inchaços no corpo, para o aumento dos seios e para a interrupção das regras. Deus, por fim, atendia às nossas preces.

Porém, uma semana depois, os sintomas de Sara se intensificaram. Dores agudas apareceram em todo seu corpo. Ela, contudo, se negava a ir ao médico ou a se submeter a qualquer exame. Após muita resistência e chantagem, ela por fim aceitou ir ao consultório na cidade. Propus que fôssemos juntos, mas ela insistiu em ir sozinha para que eu pudesse me dedicar à fabricação do presente para o nosso bebê.

— Para mim, isso é o mais importante.

Dizendo isso, ela me beijou, guardou o dinheiro na bolsa e me deixou sozinho em casa. Passei boa parte da manhã com o cinzel na canhota e o martelo na destra imprimindo forma ao tronco de madeira. De golpe em golpe, vi brotarem nele olhos, braços, boca e pernas. Horas depois, Sara retornou trazendo um enxoval quase completo. Questionei como havia conseguido comprar tanta coisa.

— Paguei com o dinheiro da consulta. Não há qualquer necessidade de médico para confirmar a minha gravidez e a minha saúde.

A certeza de Sara foi suficiente para me convencer. Além do mais, por certo tempo ela pareceu não ter novos problemas. Para mim, tudo estava perfeito, a gravidez tinha transformado nossas almas envelhecida em espíritos jovens. Mas esses pequenos intervalos de felicidade não demoraram para serem interrompidos. No final da tarde de um domingo, minha esposa mal conseguia se levantar da cama. Reclamou de dores na barriga, a qual havia crescido muito além do esperado para o tempo de gestação. Parti com a roupa do corpo em busca de socorro. Quando cheguei à cidade, o médico cuidava de outra emergência. Sentindo a minha aflição, ele garantiu que estaria em minha casa no máximo em hora e meia. Entregou-me uma receita e me orientou a passar na botica para comprar um remédio que aliviaria as dores da enferma.

Peguei o medicamento indicado e parti apressado para casa. Quando finalmente retornei para o sítio, deparei-me com a porta da residência trancada. Talvez Sara a tivesse fechado. Tentei destrancá-la sem sucesso. Gritei seu nome, esmurrei a porta, pelejei com a maçaneta e nada. A janela!, Sara tinha o hábito de deixá-la aberta para ventilar. Fui até lá, mas também se encontrava fechada. Por sorte, a moldura era formada por oito quadros de vidro. Bastava quebrá-los para conseguir destravá-la por dentro. Apanhei uma pedra de tamanho médio no chão e quando me preparava para arremessá-la, meus olhos distinguiram uma criança no interior da minha sala. Ao perceber meu braço erguido em ameaça, o pequeno estranho se encolheu assustado.

Aproximei-me confuso.

— Ei, garoto, abra aqui!

A voz do menino veio tímida e abafada do outro lado.

— Não posso.

— Por quê? Sou o dono da casa.

— É que eu estou morto!

Concluí ser uma infeliz brincadeira, como costumam fazer os moleques de má criação.

— Sara, a mulher que está aí com você, é minha esposa. Peça para ela abrir, então.

— Mas ela também está morta.

Essas palavras atravessaram os meus ouvidos e encheram minha alma de pavor. Minha mão trêmula tateou o solo até alcançar mais uma vez a pedra, e em seguida a lancei com força contra a janela. Um dos quadrados de vidro se estilhaçou em pequenos pedaços. Nesse instante, o médico chegou.

— O que houve?

— Estava tudo trancado e precisei quebrar aqui para conseguir entrar.

Sem se preocupar com os cacos, meus dedos atravessaram a fenda criada e encontraram a tranca. Puxaram-na para cima e com um leve empurrão a janela se abriu. Sentei-me sobre o peitoril e, com a ajuda do médico, saltei para o interior. Abri a porta para que ele entrasse. Uma tosse repentina o fez parar por alguns segundos. Ele retirou um lenço do bolso e o conduziu ao nariz. Apressei-o para que me seguisse até o quarto onde Sara estava. Mal chegamos e, mesmo o cômodo estando iluminado apenas por duas metades de velas, o médico sentenciou sem ao menos a tocar.

— Veio a óbito.

A notícia me conduziu a um estado de imobilidade. Todos os sentidos me foram arrancados e meu corpo mergulhou em um branco vazio. Só retornei a mim quando meus ouvidos captaram o zumbido de uma mosca rondando o cômodo. Minha cabeça correu de um ombro ao outro tentando localizar o inseto. Foi só com muito esforço consegui percebê-lo passando à esquerda do doutor. Seu voo foi baixando até ele pousar certeiro sobre a íris de Sara. O belíssimo azul prateado da mosca passeou longos segundos sobre o amarronzado sem vida dos olhos. Depois caminhou lento até o nariz e o circulou por alguns segundos; chegou a ameaçar invadir um dos buracos, mas desistiu. Em seguida, o bicho avançou lentamente para a boca entreaberta do cadáver. Aguardei em vão que um sopro de respiração o lançasse para longe. Mas as patas pestilentas do pequeno demônio o levaram para o interior da caverna-boca de Sara sem nenhuma resistência. Enojado, o médico trocou o lenço de mão e o sacudiu sobre o cadáver tentando abanar o inseto.

O gesto súbito fez sair das penumbras do quarto uma dezena de moscas. Elas alçaram voos dessincronizados pelo lugar até todas se cansarem e encontrarem repouso no ventre de Sara.

— O bebê! — lembrei-me.

O médico não entendeu a exclamação.

— Quê?!

Contei-lhe sobre a gravidez. Minha voz com certeza transmitia a esperança de encontrar a criança viva.

— Impossív... — a tosse fragmentou a palavra —, sua esposa está morta há dias.

Besteira!

— Faça uma cesárea, doutor. Hoje mesmo ela e eu almoçamos juntos. É possível que um milagre tenha salvado meu filho.

O médico se recusou. Explicou-me ser mais provável que os alegados sintomas de gravidez da minha esposa se tratassem de um tumor generalizado.

— Mentira, mentira! — gritei.

Ele me ignorou.

— Tem algum parente para ajudar com o velório?

Eu o ignorei.

— Meu filho, salve-o, doutor — insisti o agarrando-o pelos braços.

Ele fingiu acreditar em mim, retirou da sua bolsa um frasco e me entregou.

— Vou fazer o que me pede, mas pode ser algo desagradável de se acompanhar. Beba um pouco disso e vá para a sala enquanto realizo a cirurgia.

O desespero e a aflição levaram de mim qualquer senso crítico. Agora fica-me clara a farsa do médico. Mas naquele momento, tudo me pareceu bastante convincente e plausível. Tomei o líquido do frasco e fui para a sala. Apaguei em pouquíssimo tempo. Quando despertei, a irmã de Sara havia chegado com o marido, e ambos já preparavam o velório. O médico deve ter conseguido o endereço deles através de alguma das anotações feitas por minha finada mulher.

Dois dias depois, foi o sepultamento. Quando todos foram embora, a solidão escavou na minha mente a lembrança do menino que eu havia encontrado no dia do falecimento de Sara. Como um demônio exorcizado, ele havia sumido. Cheguei a comentar dele em alguma ocasião com o médico, mas ele atribuiu a visão a algum devaneio causado pela profunda preocupação com a vida da minha esposa. Não me contentei com a explicação, mas agi como se acreditasse. Afinal, no velório eu o escutei comentando com uma prima sobre a possibilidade de eu estar tomado de alguma doença psíquica e que caso eu não apresentasse melhora precisaria ser internado.

Uma semana depois do enterro, após ter tomado uma pequena dose do calmante indicado pelo médico, fui me deitar. Acordei de madrugada com o choro de uma criança vindo da sala. Não era berro ou grito, mas um lamento baixinho entrecortado por soluços. Acendi uma vela que ficava ao lado da minha cama e fui para o local. Não era possível ver nada de onde eu estava, mas o choro havia ficado bem mais próximo, apesar de menos intenso, como se quem o estivesse emitindo tentasse segurá-lo por pressentir a minha presença. Parei um segundo para me certificar de onde vinha, até finalmente compreender que o lamento me chegava da poltrona antiga virada de costas para onde eu me localizava.

— Quem está aí? — perguntei.

O choro parou de imediato. Também parei eu, aguardando que o outro fizesse algum movimento antes de mim.

— Sei que está aí — continuei.

Silêncio. Apenas a leve agitação da minha respiração tremeluzia a chama da vela, o que fazia as sombras projetadas oscilarem em todo o cômodo. Um homem prudente teria recuado ou talvez apanhado algum objeto para sua defesa, mas eu, viúvo e solitário, o que deveria temer? Dei alguns passos na direção da poltrona. A sombra do móvel agigantou-se na parede. Eu já me iria avançar um pouco mais quando o vento sacudiu a janela desviando a minha atenção. De modo quase simultâneo, um sopro cheio de saliva apagou a vela.

Assustei-me, tentei me afastar, mas esse movimento me fez tropeçar em alguma quinquilharia e caí. Gargalhadas insistentes e histéricas invadiram à escuridão. Tateei pelas paredes tentando me localizar. Fui me esgueirando em direção à cozinha. Eu me afastava, e a risada me seguia. Chegando perto do fogão, apanhei alguns fósforos, já me preparava para riscá-lo quando o silêncio mais uma vez tomou conta do lugar. Não havia mais riso ou choro, de tal modo que foi possível ouvir o atrito do palito correndo pela caixa até produzir uma chama bem tímida, mas com brilho suficiente para que eu pudesse distinguir o que estava logo abaixo de mim.

— Por favor, não me queime!

Identifiquei a mesma voz e rosto de dias atrás. Mas só agora eu consegui reconhecer a criança. Diante de mim, estava meu filho, uma perfeita junção de características minhas e de Sara. Ah, se alguém o pudesse ver! Ficaria espantado como os olhos de caramelo escuro se parecem com o da minha falecida esposa. É dela também o cabelo encaracolado. O rosto angulado é igual ao meu. A estranheza familiar daqueles traços uniu de imediato a minha alma à do menino. Peguei-o e o abracei com força. Ele assustou-se, começou a se espernear e pedir que o soltasse.

— Sou eu, o seu pai.

Ouvindo minhas palavras o menino parou. Estiquei os braços para que ele pudesse reconhecer no meu rosto algum traço partilhado, ele reconheceu. Em seguida os cantos de seus lábios subiram para formar um sorriso iluminado que varreu as trevas do luto para longe de mim. Como se nos conhecêssemos há anos, nós dois começamos a brincar, a jogar um com o outro até que o cansaço o fez dormir em meu colo.

Uma mente incrédula imaginará que o médico tinha razão nas suspeitas de minha loucura. Ou talvez, imagine que alguma criança vizinha tenha fugido de casa. Pode ser que algum religioso acuse o demônio de me pregar uma peça. Mas bastaria a qualquer um desses olhar para o menino para espantar-se com a nossa semelhança. Era como se Deus tivesse reunido a mim e à Sara naquela criança.

No dia seguinte, acordei com ele em cima do meu corpo.

— O que é isso, papai?

Meus olhos demoraram a reconhecer o que ele tinha em mãos.

— Isso é um clarinete. Serve para produzir música.

Mal respondi a primeira pergunta, ele seguiu:

— E isso?

— Isso é um livro.

— E aquilo no chão?

— Uma sandália.

Antes que eu pudesse sair da cama, o menino ainda me encheu com uma dezena de perguntas. Quando finalmente parou, levantei-me e lhe disse:

— Vou preparar o nosso café da manhã?

— O que é café da manhã?

— É algo para comermos.

— Oba, tenho certeza de que é bom!

Preparei a mesa, ele se alimentou bem. O resto do dia, aproveitamos para dar um passeio pelo sítio. A cada meio metro o menino parava para me perguntar o nome de alguma coisa. Se algum nome lhe parecia difícil, repetia baixinho para memorizar:

— Estábilo... lampirina...

— Sai de perto do lago, menino, tem jacaré!

— Cacaré... — sussurrava para si.

— Acho tão fofo você trocando as sílabas...

— O que é síbala, papai?

De noite, quando ele já não conseguia mais ficar acordado para descobrir os nomes do mundo, ele deitou-se no folchão, colocou a cabeça no pabisseiro e ficou ouvindo eu contar-lhe repetidas vezes a história do Logo Mau e dos Têis Poquinhos. Não consigo dizer qual de nós dois mimiu primeiro, só sei que no dia seguinte, foi ele quem de novo me acordou:

— Papai, amanhã o senhor preparou o café da manhã pra gente comer. Hoje eu fiz para o senhor.

Fez nada. A mesa estava vazia, pois ele morria de medo de alguma faísca do fogão tocar o seu corpo. Mas entrei na brincadeira e agi como se houvesse bastante comida e tudo estivesse delicioso. Após isso, precisei fazer algo que realmente pudéssemos comer. Depois, ele me ajudou nas tarefas do sítio e a tarde voltamos a brincar.

Foi assim que passei grande parte dos meus últimos dias, apresentando a vida ao meu menino. Tudo estava perfeito. Até que certa tarde, um vento frio carregou o céu de nuvens escuras. O conserto da janela adiado tantas vezes precisaria ser feito para que a chuva não entrasse em casa.

Na varanda eu tinha todo o material que iria precisar. Deixei meu filho brincando no quarto enquanto instalava o vidro. Em geral, eu aproveitava essas tarefas para ensiná-lo sobre a minha profissão, mas, nesse dia, eu precisava concluir com rapidez e as constantes perguntas do menino me atrasariam.

Mal terminei de arrumar a janela e o céu desabou.

— Será uma grande tempestade — observei em voz alta.

— O que é pempestade, papai?

Eu não havia percebido a aproximação dele.

— É uma chuva muito forte.

— O que é chuva?

— É essa água caindo lá fora. Quer ver?

Ele sinalizou que sim. Já iria pegá-lo para o levar à janela quando um barulho de trovão vibrou todo o lugar. O menino, assustado, escondeu-se entre minhas pernas.

— Não precisa ter medo, eu estou com você.

Mesmo com o corpo ainda tremendo, ele confiou em mim. Saiu do meio de minhas pernas e olhou para o exterior. Já estava escuro e não era possível ver quase nada. De repente, um raio mudo produziu um clarão que iluminou a sala por poucos segundos. Pouquíssimos na verdade, mas suficientes para me fazer enxergar um reflexo no vidro.

Ah, posso afirmar com segurança, nem a visão do inferno me causaria espanto maior. Lá, no espelho, estava um duplo semelhante a mim. Ele copiava minhas roupas, meus cabelos, meus óculos, mas um detalhe nos fazia bastante distintos... Quando o clarão cessou e as trevas voltaram, o pavor se apoderou do meu corpo. Deixei o menino por um instante, apanhei uma lamparina e voltei para a janela-espelho. Gritei por ele.

— O que quer, papai?

Perguntei a ele o que via.

— Vejo a chuva. Será que os anjos estão lavando a casa?!..

Enquanto ele falava, percebi que se o olhava diretamente, eu o via mexendo os lábios, e a voz fina nos meus ouvidos saía da sua boca rosada. Mas se o procurava pelo reflexo, eu via a marionete dublando as respostas que saíam todas de dentro de mim. Eu não poderia aceitar que meu filho fosse apenas uma feiosidade mecânica. Uma mera fabricação da minha mente insana.

Para tirar qualquer dúvida, uma estratégia me veio à cabeça. Pedi ao menino para buscar uma manta. Fiquei parado na sala acompanhando-o caminhar até o quarto e sumir ao atravessar para o corredor. Quando sua figura reapareceu na porta, eu o vi sozinho. Aleluia! Eu estava do lado oposto da sala. Era impossível que fosse eu o controlando. Contudo, bastou-me olhar para a janela, para me ver manipulando a monstruosidade através de cabos presos em minha canhota.

— Aqui está seu cobertor, papai!

Eu era incapaz de distinguir se o demônio havia dominado a minha alma ou dado vida ao corpo da marionete. Sem muito pensar, corri até a cozinha, apanhei uma caixa de fósforos e voltei para a sala.

— Vai fazer uma fogueira, papai?

Risquei o palito e já iria lançá-lo contra o menino, quando uma mosca se jogou contra a chama, a apagando. Iria tentar uma segunda vez, mas o zumbido surdo de uma nuvem de varejeiras pousando na parte externa da janela desviou a minha atenção. Peguei o lampião e me aproximei. Com as patas serreadas, os insetos arrastavam os abdomens e tórax pelo vidro. Suas bocas nojentas se estendiam em minha direção como se quisessem me revelar um segredo. O outro lado do bicho eu não conseguia enxergar. Então entendi. O mal e o terror estavam encobertos na metade escondida que o reflexo insistia em desocultar.

Pedi então ao menino para pegar um martelo enquanto eu apanhava meia dúzia de tábuas. Quando voltei, o moleque já me aguardava. Com a ajuda dele, tampei as janelas, quebrei os espelhos, embacei as pratas, turvei as águas e, desde aquele dia, a horrível marionete nunca mais retornou para nos assombrar. Do lado de fora, deixamos os mortos e a racionalidade, de dentro, ficamos só eu e o meu filho de verdade.

TEMA: BRINQUEDOS MALDITOS

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 02/12/2023
Reeditado em 13/12/2023
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