MONSTROS NÃO EXISTEM - CLTS 25

Desde pequenos somos ensinados a confiar em nossa força, somos encorajados a encarar os medos e, principalmente, sempre ouvimos que monstros não existem.

Felipe precisava acreditar nisso.

Sua criação em uma família composta por pai, mãe e dois irmãos mais velhos não era nada diferente dos vizinhos e colegas de escola. Seu pai era um homem rígido que repreendia qualquer sinal de medo. Seus irmãos eram cientes da condição paterna e tornaram-se rudes e cascudos, como gostavam de se intitular.

Felipe, por sua vez, era o mais sensível, o protegido de sua mãe. A diferença de idade entre eles era grande, nascera sete anos após o segundo, o João. Seu pai parecia ter cansado de ensinar, seus esforços foram empregados nos filhos mais velhos e o caçula mantinha-se como coadjuvante na história.

Elena, sua mãe, investia em conhecimento para o pequeno; enquanto seus irmãos, João e Paulo, gastavam suas energias com lutas marciais e futebol, Felipe lia livros.

Sua maior tarefa era consumir informações e conhecimentos todos os dias. Elena acreditava que os mundos paralelos poderiam se cruzar e dizia que saber se defender era além de ser forte fisicamente e que a lágrima de medo ou de dor causava mais efeito do que o suor de uma luta. Assim, Felipe se tornou o mais esperto intelectualmente.

Seus irmãos o defendiam fora de casa, mas quando estavam em frente a Eduardo, o pai, zombavam do corpo franzino do menino. O pai apenas meneava a cabeça negativamente parecendo não concordar e os irmãos pensavam que ele já havia desistido do pequeno, porém, não era uma coisa que causasse preocupação no menino.

As crendices de Elena eram baseadas em sonhos que tivera em sua infância e que haviam se extinguido por um tempo, mas estavam voltando a acontecer nos últimos meses, recomeçaram um dia após a festa de aniversário do caçula.

O monstro vermelho de mais de cinco metros de altura com olhos esbugalhados, um furo no lugar do nariz, dentes acavalados com uma presa enorme centralizada e corpo coberto por uma membrana gosmenta estava de volta em seus mais terríveis pesadelos. Elena nunca contou a seus pais o que via, sentia vergonha de ter monstros em seus sonhos. A única vez que tentou iniciar uma conversa com sua mãe, foi interrompida:

— Elena! Você precisa crescer, não tem mais idade para essas conversas. — Repreendeu a mãe.

Ela tinha apenas 10 anos, mas precisava ser mais forte do que era. Cresceu em meio a desconfianças quanto a sua integridade mental. Na escola, vivia sozinha, e na família, era sempre questionada.

— A Elena ainda está tendo sonhos estranhos? — Questionava, a avó.

— Tenho o contato de um bom psiquiatra! — Dizia a tia.

Para a pequena Elena o tempo passou e os pesadelos aumentavam, passando de semanal, depois para cada dois dias, até chegar a ser diário, quase acreditando que todos estavam certos e ela era louca.

Exatamente na noite do seu décimo segundo aniversário, dois anos após seu primeiro pesadelo, tudo acabou. Não sonhava mais com nada, a escuridão tomou conta de suas noites.

De repente, semanas antes da festa de Felipe, ela tivera sonhos com imagens produzindo frases ligadas a pontos vermelhos com a frase: “Continuarei andando".

Quando confidenciou a sua mãe seus pesadelos, tudo fez sentido. O monstro vermelho estava de volta, mas dessa vez parecia afetar mãe e filho.

— Ele avisou... — Sussurrou Elena.

— O que quer dizer, mamãe?

— Nada filho! Conte-me o que exatamente está vendo. — Solicitou.

Ele contou tudo nos mínimos detalhes e ela teve a certeza de que se repetia. O seu maior temor havia voltado e não era mais exclusivo dela. Enquanto seu filho descrevia a forma do monstro, Elena não conseguia conter as lágrimas que jorravam em seu rosto.

— É tudo culpa minha. Eu tinha certeza de que não era sonho. Eles estão entre nós.

Felipe não conseguia entender o que era dito pela mãe, onde estaria a culpa que se referia? Eram pesadelos, algo comum.

— Fique tranquila, mamãe, devem ser os livros. E, além disso, foram apenas dois.

— Infelizmente julgo que não, filho. Talvez eu seja o portal. Nunca foram sonhos.

Elena contou que com a mesma idade dele tivera os mesmos pesadelos, que começaram da mesma forma e que se intensificaram com o passar do tempo. Disse também que nunca tivera coragem de enfrentá-lo e essa era a razão de estar voltando.

— A senhora disse que depois eles sumiram?

— Sim, meu filho, porém, eu nunca mais sonhei com nada. Os pesadelos se foram, mas os sonhos coloridos e lembranças boas também. Nunca mais sonhei, apenas durmo.

Elena se dirigiu para o altar que mantinha com imagens de anjos, sempre pensou ser dali a confiança que criara para que o monstro sumisse. Parou em frente e rezou, pediu ajuda daqueles que sabia que davam proteção.

O dia acabou trazendo uma noite sem estrelas e com vento gelado. Para Elena, era o prenúncio de algo ruim. Foi dormir no quarto de Felipe, alegando que ele estava febril.

— Elena, esse menino está fazendo manha. Preciso ter uma conversa séria com ele. — Disse o pai.

Elena não respondeu, apenas foi. Deitou-se ao lado do filho e manteve-se acordada esperando as reações. Estranhamente a noite foi tranquila. Na manhã seguinte, Felipe acordou com sua mãe olhando-o com cara de preocupação.

— Bom dia, mamãe!

— Bom dia, meu amor. Como foi seu sono?

— Não lembro de sonho algum. Apenas dormi. — Respondeu o caçula.

— Que bom! Vamos levantar. Hoje eu levarei você à escola.

Felipe sorriu, gostava da companhia de sua mãe. Arrumou-se e foi até a cozinha juntar-se a seu pai e a seus irmãos.

— Bom dia, irmãozinho, dormiu com a mamãe? — Disse João, levando Paulo às gargalhadas.

— Deixe seu irmão em paz. — Disse Elena.

— Mas ele é muito grandinho para dormir com a mamãe e...

— Cale-se, Paulo, não quero a sua opinião. — Disse asperamente Elena, e completou: — Os monstros de cada um são diferentes.

— Monstros? — Questionou João.

— Já chega! Vamos Felipe. Tomaremos nosso café na padaria, depois te deixarei na escola.

Elena estava angustiada, sabia como era o processo dos pesadelos. Ainda se culpava de ter passado esse mal para o sensível Felipe.

O dia passou, o caçula voltou para casa acompanhado dos irmãos, que o buscaram na escola, e foram recepcionados pelo pai com tapinhas palma a palma e com um suave cascudo seguido de um sorriso no menor.

Na noite, Elena arrumou a cama de Felipe, mas não ficou no quarto, vigiaria de longe, precisava ter certeza de tudo, mesmo sem saber o que faria se realmente estivesse acontecendo novamente.

Assim que dormiu, Felipe começou a sacudir o corpo antes de entrar no pesadelo, parecia que sentia uma mudança de cenário. E foi o que aconteceu.

De imediato, ele estava em meio a uma floresta de árvores secas e folhas mortas com um céu claro e estrelas pretas. A luminosidade vinda do céu incomodava seus olhos, mas o pior veio em seguida; o monstro vermelho apareceu a sua frente mostrando o enorme dente central. Os olhos esbugalhados mexiam-se rapidamente, saindo da carranca como se fossem molas balançando para frente e para trás e o corpo parecia derreter naquela vermelhidão. O menino sacudia-se, mas não emitia som e suas pupilas faziam ondas com o efeito do bailar dos olhos.

Elena chegou no quarto após sonhar com a frase “Continuarei andando". Percebeu a excitação corporal do filho, deitou-se ao seu lado e tentou acordá-lo. Sem sucesso. O Filho imergiu no terrível lugar que ela conhecera quando criança. Ela sem saber o que fazer e já em prantos, levou seus pensamentos ao passado, seus olhos pesaram e, quando percebeu estava junto ao filho e em frente ao conhecido monstro.

Pegou a mão de Felipe e encarou o temido monstro. Aquela coisa vermelha parecia crescer a cada passo que dava em direção a eles. Felipe soltou um grito que fez sua mãe tapar os ouvidos com as mãos. A gosma vermelha parecia escorrer mais ainda. Os olhos pularam e o monstro deu alguns passos para trás. A mãe percebeu no rosto do filho que algo estava diferente. Nunca conseguiu atacar o monstro, tampouco, mexer em sua estrutura. No início dos pesadelos de Elena, a criatura estava muito distante, mas com o passar das noites ele chegava mais perto. Os passos da criatura eram lentos e quando os pesadelos acabaram, ele havia ficado a menos de dez passos dela. A mesma distância em que começava a saga do filho. Ela apenas aguardava a chegada do inimigo imaginando a cena em que a criatura lhe arrancaria a cabeça com apenas uma mordida.

Já estava conformada, ele um dia chegaria e terminaria com o seu desespero. Nunca chegou.

Agora era a vez do filho e a culpa era sua. Talvez se ele tivesse chegado a ela, tudo já tivesse acabado.

Elena fechou os olhos, mas a imagem não saía da cabeça, parecia sonho dentro de outro sonho. Sentiu sua mão aquecer e ser puxada para cima. Ao olhar para o lado viu Felipe virando um gigante azul. A imagem era bonita. Ele soltou a mão da mãe e cresceu mais ainda. As pontas dos dedos arredondaram, um chifre central surgiu, os braços alongaram-se e um escudo dourado brilhou em seu peito.

Felipe colocou sua mãe para trás e, levantando os braços, partiu para cima do monstro vermelho. Correu na sua direção e desferiu um soco no olho direito, derrubando-o. Elena se escondeu atrás de uma árvore de folhas secas e de longe observou a batalha.

Os dois cresciam a cada ataque desferido. Felipe atacava com inteligência, tentando atingir aquele grande dente central, por algum motivo, imaginava ser a principal arma do rival. Porém, o monstro vermelho revidava à altura, socando e chutando todas as partes do corpo azul do menino.

O monstro desferiu um soco na testa do menino, rachando o chifre e o jogando a vários metros de distância. Percebendo uma possível vitória, a criatura correu em direção à Elena que como em seus antigos pesadelos, não conseguia se mexer. Ele a agarrou pelos cabelos e a colocou em pé, depois, com o pegajoso braço direito, pegou-a pela cintura e quando levantou o braço esquerdo pronto para afundar sua cabeça, Felipe soltou mais uma vez o grito agudo e potente, que faz o monstro se desequilibrar. Virando-se para o menino e ainda em posse de sua mãe, correu em meio às árvores mortas. Felipe o seguiu.

Logo a frente uma grande parede parecia encurralar o monstro vermelho. Felipe o acompanhava elaborando o próximo ataque, porém precisava ser com cuidado, não poderia atingir sua mãe. Quando estava chegando no muro, o menino diminuiu a velocidade esperando que o monstro fizesse o mesmo, mas ele o atravessou como se ali estivesse o portal entre os mundos. Felipe voltou a acelerar e fez o mesmo, não poderia perdê-lo de vista.

Estavam no pátio de sua casa. O monstro arremessou Elena na piscina e partiu para dentro da casa quebrando a parede e parte do teto. Felipe esticou mais ainda seu longo braço e resgatou sua mãe. Deixou-a deitada perto dos arbustos laterais e foi atrás da criatura. Gritava para que seu pai e seus irmãos acordassem e fugissem, mas já era tarde demais. Quando chegou no quarto deles, viu o monstro vermelho com os grandes pés em cima de João, que tentava respirar em meio a gosma que cobria seu rosto, e Paulo no meio daquela enorme boca. Quando percebeu que Felipe o observava, o monstro pisou fortemente esmagando o corpo de João e cuspiu o que sobrou do corpo de Paulo em cima do caçula.

Por mais forte que se sentisse naquele momento, transformado naquele gigante azul, o menino sucumbiu com a imagem aterrorizante de seus irmãos mortos. Ajoelhou-se e chorou.

O monstro partiu para o quarto dos pais. Felipe mais uma vez esticou o braço fazendo a criatura tombar. Levantou facilmente e pôs-se em frente à porta do quarto. O medo tomou conta de seu ser, sua fragilidade ficava estampada em suas ações e seu tamanho ia diminuindo a cada momento em que lembrava de seus medos. Era o pequeno Felipe de frente com o monstro de seus pesadelos. Estava junto à cama de seu pai, o homem que ele achava ser o mais forte e durão do mundo, mas percebeu que ao acordar e presenciar a criatura em sua frente, toda a destreza e coragem que carregava em seus sermões parecia desaparecer. Eduardo pulou alto e, mesmo tendo Felipe de frente para a morte, correu para o corredor, mas parou de imediato ao ver o resto dos corpos dos filhos.

O monstro vermelho então partiu para cima de Felipe que agora estava petrificado e sem reação. A criatura abriu a boca quase que rasgando a cabeça, mas quando iria atacar o menino, uma luz forte e amarela iluminou o que restava da casa e atingiu o peito do menino, que imediatamente começou a crescer, ficando da mesma altura do monstro vermelho. Essa luz era de Elena, uma gigante iluminada. A aura que a envolvia tentava apaziguar a criatura, mas não houve resultado, o contra-ataque foi mais forte e Felipe foi atingido fortemente voando para trás, quebrando uma parede e caindo no quintal da casa. Elena tentou atacar, mas também foi fortemente golpeada. As ações não davam resultado, as tentativas do menino não pareciam fazer efeito. Elena voou na direção da criatura acertando o meio dos olhos, mas quem caiu foi ela. Estavam exaustos, apenas o monstro vermelho estava inteiro.

Felipe levantava e tentava atacar, Elena fazia o mesmo, mas estavam quase sem forças, a ponto de desistir, mãe e filho de mãos dadas, tal qual fizeram no início de tudo, apanhavam sem dó nem piedade. A gosma do monstro juntava-se com o líquido de vitalidade que jorrava dos dois.

— Continuo andando. — A voz saiu de dentro do monstro vermelho.

— A CORAGEM ESTÁ EM QUEM MENOS SE ESPERA. — Mais um gigante azul entrava em cena.

Eduardo estava transformado em um gigante igual a Felipe, porém, mais alto. Os dois levantaram ao escutar a voz. E após a ordem:

— JUNTOS! — Dita por Felipe.

Os três, ao mesmo tempo, inclinaram os corpos para trás, cerraram os punhos e voltaram em direção ao monstro. Cada um acertando uma parte vital como se fosse ensaiado. Cabeça, pescoço e peito foram atingidos simultaneamente, fazendo o terrível monstro deitar imediatamente. Seu corpo foi ficando totalmente coberto pela própria gosma, os olhos desapareciam por entre a vermelhidão até sumir por completo.

O ambiente começou a clarear até todos cegarem.

O celular desperta. Felipe levanta e sai correndo em direção ao quarto dos pais, que já faziam o mesmo. Abraçaram-se no meio do caminho.

— Sim! Eu também sabia de tudo, mas parecia imaginação de um adulto incrédulo. — Disse o pai.

— Tudo parece ter voltado ao normal. — Disse, Elena.

Do outro quarto, saíam os irmãos curiosos para saber a razão da correria.

— Qual o motivo do abraço matinal? — Perguntou Paulo.

— O bebê está com medo de monstros? — Questionou João.

— Frágeis muros nos separam dos monstros. E se eu fosse vocês, não iria querer conhecer o monstro de Felipe. — Balbuciou, Eduardo.

Pai, mãe e o filho caçula caminharam de mãos dadas até a cozinha, deixando os irmãos mais velhos se olhando e sem saber o que dizer.

— Pai! — Disse Paulo. — Meu corpo parece ter sido partido ao meio. Posso ficar sem treino hoje?

— É verdade, pai! – Completou, João. — Parece que um caminhão passou por cima de mim.

Eduardo olhou para Felipe e trocaram piscadas de canto de olho. O pai voltou sua atenção a seus filhos, abraçou sua esposa e concluiu:

— Não são todos que conseguem vencer os monstros. Resta saber se o mundo está preparado para os pesadelos reais.

Tema: Realismo mágico