Caso do descaso.

Nada como estar entre os iguais durante a noitinha, na calçada de um bar. Nessas trivialidades é que surgem as boas amizades, grandes conversas, frívolas ou não. Rafa e Léo estavam nas cadeiras de plástico, bem em frente ao estabelecimento, falando do futuro e, vez ou outra, de algum cabinha que se engraçava. Havia também os amigos que preferiam ficar em pé ou lá dentro na sinuca. Sem falar os frequentes cumprimentos dos que chegavam e saíam toda hora. Um ambiente de risos e bem-estar. A rua era larga, o botequim ficava bem de frente a uma encruzilhada, de modo que todos os caminhos pareciam convidar ao lugar e todos os ventos se encontravam. Além disso, os postes todos ali funcionavam, o que parecia dar uma sensação de lugar seguro — adjetivo que não combina com nossa cidade nos últimos tempos (ou pelo menos para sua parcela periférica).

Essa, inclusive, é uma informação que pensei ser um pouco óbvia, essa coisa de medo é da antiga, mas sempre toma força quando, por exemplo, notícias de chacinas ganham os jornais e os grupos dos bairros. Há poucos dias mataram uma criança e outras quatro saíram feridas porque um "jurado de morte" estava perto da areninha. Chegaram dois numa moto e descarregaram os revólveres. Dias depois: a mesmíssima situação ocorreu num outro bairro. Eles estão fãs disso: com o surgimento da nova facção, que uniu os membros das outras duas, a guerra tomou rumos piores e os moradores parecem, ainda mais, alvos. Isso vence as pessoas, ninguém mais tem coragem de passear e levar seu filho para os locais de lazer, tudo fica vazio. Mais cedo, no barzinho, seu Guilherme conversava, com o da mercearia da esquina, sobre o tal do "pedágio" que o outro grupo cobrava; a preocupação era porque eles há pouco tomaram uma região do bairro e a coisa lá tava feia, de se ouvir tiros e mais tiros à noite. Contam que vão à porta fazer as exigências e queira só experimentar quem não obedecer. A própria Rafa conhecia uma amiga que teve de se mudar às pressas para a casa da mãe porque um dos traficantes cismou com ela. A casa dela? Que casa?

São as mazelas. Mas elas se curam, sim. Alguém liga um som, pede-se uma cerveja gelada e se esquecem as preocupações com risos e danças, como a do Josué e a doidinha Nara, que conseguiu uma garrafa com os trocados ganhos pela manhã. Era costume dos dois, ninguém só não sabia a razão de ainda não terem se casado — talvez porque Josué apanharia tanto que perderia o couro e Nara, não savendo pra quê serve uma aliança, venderia em troca de outra cachaça. Quando biritavam um pouco mais, o evento se fazia: todo mundo para o que tava fazendo para ver. Uma verdadeira algazarra. Josué chegava a dar aqueles movimentos de jogar a mulher para cima e apanhá-la, rodopiavam umas mil vezes e, ao terminar a performance, Nara levantava a saia rapidamente para misturar palma com gargalhada. Até quem vinha passando parava para ver.

Porém, teve um momento estranho: o Jac, o vira-lata que costumava ficar por lá, de repente saiu correndo para se esconder. Só quem notou foi Léo. Ela viu quando o farol forte veio chegando ligeiro, e o som do motor aumentando. A gritaria das conversas e as palmas estavam demais. E a luz vindo, vindo, vindo. Quando veio o primeiro papoco, ela foi a primeira a correr. Muitas balas. Bem tentou puxar a amiga que estava ao lado, a qual cantava uma antiga dos Aviões, mas não deu. Se jogou ao chão e tão forte foi o barulho que fechou os olhos. É como um furacão. Quando passou, ouviu as cadeiras se arrastarem e os palavrões da turba. A sorte foi que eles eram ruins de mira, apesar de terem acertado Josué de raspão. Todavia, todos se voltavam desesperadamente para ela. Não. Iam para atrás dela. Jesus... Léo viu: Rafa, sua amiga, estava ensanguentada.

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ñ.r.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 18/11/2023
Reeditado em 18/11/2023
Código do texto: T7934865
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