A larva do passado
Era um sábado à tarde, e apesar de Arya estar em casa, ela estava perdida. Com a casa vazia, seus pensamentos ecoavam e ela conseguia ouvir reverberando cada dúvida e cada medo. Já tinha tentado se ocupar. Tentou trabalhar, ler, jogar, assistir, conversar, mas terminava toda vez deitada na cama encarando o teto. Fazia anos que não se sentia assim, tão pequena, e a falta de uma urgência abria o desconfortável espaço para pensar.
Deitada na cama, ela olhou para a luminária, percorreu os cantinhos do quarto entre parede e teto e então olhou pro armário. E em cima dele viu as caixas. Umas 5 caixas de diversos tamanhos e origens diferentes, mas que guardavam um tesouro. Seu passado estava ali. Desde seus primeiros dentes que caíram na infância, até o papel de matrícula do Ensino Médio e o primeiro bilhete que recebeu do seu ex. Tudo separado, etiquetado e distribuído nas 5 caixas. Apesar de saber o que tinha em cada uma, ela sentiu uma necessidade imensa de rever. Podia ser necessidade da nostalgia, ou de procurar por pistas de onde tudo tinha começado a dar errado. De qualquer forma, o desejo a levou a puxar uma cadeira, e, na ponta do pé, pegar as caixas, uma por uma, de cima do armário.
Obviamente elas estavam um pouco empoeiradas, o que ela resolveu rápido com um pano. E então o verdadeiro trabalho começou. Uma a uma, ela começou a abrir as caixas. Eram cartinhas, lembrancinhas de aniversário, chaveiros, uma mistura de letras e objetos que a tiravam dali. Talvez fosse isso. Talvez ela procurasse um jeito de voltar. Mesmo que por poucos minutos queria ter o cabelo puxado quando criança, tanto quanto queria achar a linda concha naquele pôr do sol na praia. Porque em qualquer uma daquelas épocas, mesmo que sofresse, ela parecia ter algo que sentia muita falta hoje. Perspectiva.
Foi então assim, passando pelas lágrimas de dor e de riso que ela ocupou sua tarde, totalmente imersa. Tão distraída, que não percebeu quando aconteceu o desastre. Em uma das caixas, imprensada entre dois papéis, uma borboleta verde metálica encontrava seu descanso. Mas com o novo ar, o tempo exposta e os sentimentos que emanavam de Arya, de alguma forma misteriosa a borboleta começou lentamente a mexer as antenas, depois as patas e por fim as asinhas, já craqueladas com o tempo. Lentamente, se arrastando, ela saiu da caixa e foi andando pelo chão do quarto. Procurava calor, vida e dor. Então começou num grande esforço a bater as asas para tomar impulso de voo. Lenta e tropegamente subiu, voou e pousou na cabeça de Arya, que estava tão completamente imersa em sua própria viagem que não viu nada daquilo.
A borboleta não tinha muito tempo, e de alguma forma sabia. Então colocou uma minúscula larvinha ali, no calor daquela cabeça quente e acolhedora, e voltou à inércia da morte. Algum tempo depois disso, Arya se deu conta da hora, e de que precisava se arrumar porque sua família vinha jantar. Juntou tudo e rapidamente começou a guardar suas lembranças. Inclusive uma borboleta seca que devia ter caído de entre os papéis.
O efeito foi rápido e a noite terrível. Inquieta, Arya se debatia mesmo enquanto se arrumava, sem se dar conta do que percorria sua cabeça. Porque sim, a larva também ansiava pela vida. Entrou em seu ouvido e agora explorava sua mente. E Arya se debatia nas próprias lembranças. Mas não as que estavam nas caixas. As que ela não guardou, porque nunca iria querer rever. As que considerava feias demais, principalmente para ela. Depois de uma tarde mergulhada em lembranças, agora ela se afundava e se afogava em vergonhas. A água do chuveiro caía em sua cabeça e ela esfregava sua pele, suas cicatrizes. Esperava o alívio, que não vinha, porque o monstrinho já tinha ido fundo e já fazia ninho num lugar que estava lacrado em sua mente a muito tempo. Não tinha torrente de água quente que o lavasse para longe mais. E esse era apenas o começo de seu sofrimento.
Se sentou para calçar os sapatos. Parou e encarou o pé. Estranho, pensou. A campainha tocou e ela sabia que precisava levantar, mas encarou a parede. O peito doía. Era sua irmã, mãe e pai na porta. Ela pensou no quanto a conheciam. Saberiam que tinha algo de errado com ela e a levariam pro médico, ou pra cama. Abriu a porta nessa esperança, mas foi cumprimentada com um meio abraço comum.
"Nossa, você sempre foi lesada, mas pra abrir essa porta demorou até pra você hein"- disse a irmã
"Como é?"- Arya ficou em choque com a tratativa da irmã
" Calma Arya, só perguntei onde deixo esses salgados"
Será que ela teria ouvido tão errado? Não, tinha certeza de que tinha ouvido o mesmo tom de deboche da irmã que a fazia chorar escondida quando tinha 13 anos.
Olhou incrédula enquanto a irmã ia até o espelho de entrada para conferir o visual e teve certeza de que o reflexo dela no espelho zombava dela.
" Por que você está sendo tão idiota?"
"Que isso Arya!"- repreendeu a mãe
"Você não viu, mas ela fez uma cara horrível e…"
"Não interessa o que ela fez. A responsável é você. Você é tão grossa, que não nunca escuto o que sua irmã fala, só suas reclamações. "
"Como você nunca escuta? Eu achei que estava tudo bem, porque está todo mundo agindo assim?"
Ela então percebeu que seus pais se entreolhavam. Reconheceu aquele jeito de olhar deles. Achavam que estava louca.
"Gente, eu não tô inventando. Ela olhou… e meu peito dói, tô vendo tudo rodando… Eu não sou louca. Eu não sou um monstro"
"Ah, Arya, você sabe que tudo isso é só da sua cabeça. Você teria tanto potencial se soubesse se controlar…"
Arya não podia acreditar. Era um show de horrores injusto. Injusto com ela, que achava que todos tinham crescido e a vida tinha seguido. Injusto com eles, por essas tristes palavras, talvez fora de contexto e proporção, estarem ressoando pra ela agora. Porque Arya via e ouvia os ataques. Mas eram as escamas do ninho do monstrinho que se teciam em cada nervo, cada memória, cada dor. E como doía.
Doía para ela e doía para sua família, que atônita observava ainda parada na entrada a pobre Arya se contorcendo em uma crise de pânico. Não sabiam o que fazer, porque ela não os via e nem ouvia. Ela começou a chorar, e era um choro de alma. Não como de um bebê que acaba de sair de seu conforto, mas de um preso que vê montarem sua forca. Um desespero desesperançado. Ela sufocou antes de perceberem que sofria. Antes de ela mesmo perceber o que acontecia.
…
Acordou com uma dormência conhecida na alma. O peso do nocaute de um tarja preta. Mas sabia que as dores em seus músculos e o latejar de sua cabeça vinham não dos remédios, mas da luta travada. Sentia sua cama sob si. Alguém a levou até ali. A memória era turva, mas as roupas eram as mesmas. Ouviu barulhos de pratos. Ainda estavam lá. A dor se somou a uma velha amiga: a vergonha. Mas o desespero acordava junto com ela, e se espreguiçava enquanto dizia:
“ Sabe que devem estar falando de voce e do seu surto”
Arya não havia ainda aberto o olho, nem sabia quanto tempo havia passado. E era uma verdade. Deviam estar falando dela. Mas de olhos fechados, Arya ouvia essa mesma frase ressoar em sua mente. E de tanto ressoar ela teve um outro tipo de despertar: “Eu conheço essa voz”
“Claro que me conhece, somos velhas amigas. Suas memórias são deliciosas. Tão sofridas, machucadas, distorcidas… Não leve a mal, são todas reais e todas suas, mas entenda, você pra mim é um néctar dos deuses.”
Arya respirou fundo, apesar do leve tremor. Procurava memórias de guerra.
“Eu posso não saber como você entrou aí sua larva nojenta, e posso não saber aonde vai mexer aí dentro. Mas uma coisa eu sei. Você tem vida curta. E sei também que está sozinha e que não vai conseguir mais botar ovos dentro de mim. Doeu e demorou, mas eu me vacinei. Só preciso te esperar morrer.”
A risada seca e desgostosa do verme a arrepiou.
“É, eu sei. Percebi quando entrei. Mas precisava me acolher aqui dentro. Algumas das escamas do meu ninho podem ser bem chatas, sabe? E eu precisei de algumas aqui dentro. Eu morro, mas elas ficam. É a ordem das coisas. Já disse como sua dor é deliciosa?”
Arya respirou fundo, apesar do tremor ainda estar ali. Vasculhava por memórias de vitória.
“Realmente elas são um saco. As suas escamas. Insuportáveis demais pra ficar e chatas demais de sair. Mas quando você chegou, estava limpo. Eu consigo limpar de novo.”
A risada seca do verme agora era mais fraca. E ela se permitiu um leve sorriso.
“Você está morrendo, não está? É difícil viver aí depois que te vejo.”
“Morro, mas volto.”
“Pois se volta, morre de novo.”
“Não se cansa da nossa guerra?”
“Canso, mas no final eu vivo. Eu sempre vivo, cansada ou não. E você pode ser meu espinho na carne, mas sempre morre. Não se cansa de sempre morrer? Sabe, já não bota ovos aí dentro, já consigo tirar as escamas, mesmo que devagar. Estou ficando melhor nisso. Talvez algum dia perceba que já não vale mais a pena tentar fazer ninho aqui, porque as dores não vão ter o mesmo sabor pra você.”
Ela disse isso sabendo que não deveria esperar resposta, porque ele já se fora.
…
Acordou, agora de verdade, com uma dormência conhecida na alma, mas agora com a memória de sua batalha. Não tinham vermes mais ali, mas a vergonha ainda estava de visita. Ouviu o barulho de colher em xícara e lembrou que estavam ali. Será que falavam dela e do seu surto? Era possível. Respirando fundo, Arya abriu os olhos. Iria começar o trabalho de tirar novamente as escamas. Mas ela aos poucos já voltava a enxergar.