O MISTERIOSO CASO DE FANNY PEARL

 

*Adriana Ribeiro

 

     No subúrbio de uma cidade mergulhada na escuridão eterna, onde o sol já não lança sua luz há mais de três séculos, um caçador de espíritos malignos percorre os corredores sombrios de uma antiga mansão abandonada. Cada passo que ele dá ecoa como um sussurro sinistro nas paredes de pedra. O ar impregnado de uma frieza sobrenatural e o silêncio sepulcral são interrompidos apenas pelo ocasional rangido de madeira apodrecida do assoalho onde pisa.

     Conhecido nos bastidores das igrejas como Eran Boyle, o experiente caçador é um mestre na arte de capturar e exorcizar espíritos malignos que assombram o mundo desprovido de luz. Por causa da fama adquirida pelos trabalhos realizados, o renomado exorcista foi chamado às pressas para desvendar e solucionar o mistério da Mansão Libório que, há mais de trezentos anos faz com que a cidade de Rio das almas seja considerada amaldiçoada.

     Conforme o prometido, chegou à cidade por volta do meio dia de uma sexta-feira aparentemente comum, embora fosse semana de lua cheia, e carregando consigo os paramentos de um verdadeiro caçador de fantasmas, entre os quais a famosa lanterna eletromagnética que, ao projetar uma luz pálida e trêmula sobre determinado espaço é capaz de revelar as entidades sombrias que espreitam nas sombras.

Sem pressa, dirige-se à igreja matriz situada no centro da pequena cidade, onde é recepcionado pelo pároco que lhes fornece as informações de que precisa para iniciar seus trabalhos. Em seguida dirige-se à pousada local no intuito de se instalar, alimentar-se e descansar antes de se dirigir ao velho casarão mal-assombrado.

     Mais tarde, quando a noite já havia tomado a paisagem, o jovem caçador de espíritos inicia sua busca por sinais malignos nos arredores da mansão Libório. Parado na frente da construção observa a fachada antiga, quase em ruínas devido o tempo e o abandono a que fora exposta. Caminha em volta da mesma e percebe que se trata de uma dessas construções que tomam o quarteirão inteiro com seus muros altos e cercas vivas escondendo o interior do terreno, tanto das laterais quanto dos fundos.

     Pela rua de trás identifica um portão de metal enferrujado quase todo coberto por Alamandas-roxas - uma espécie de planta trepadeira que floresce quase todo o ano enfeita o muro e camufla a passagem para a velha mansão. Àquela hora, o cheiro e a cor das flores, apesar de bonitas, emprestam um tom ainda mais sombrio ao local. __ Constata o visitante, que decide forçar entrada pelos fundos mesmo.

     

     Uma vez lá dentro, depara-se com um velho e descuidado jardim e logo nos primeiros passos ouve um som inconfundível de água corrente. Com a luz da lanterna visualiza os restos de uma estátua que lhe parece ser de uma jovem segurando uma jarra vertendo água em um poço circular, cujo leito está cheio de plantas aquáticas nativas.

     Mais à frente o caçador ilumina uma porta larga de madeira e vidros. Alguns já faltando partes e outros completamente inexistentes. Sem esforço consegue entrar na residência inóspita e, ao fazer isso, descobre que a porta dá acesso a uma sala de estar, provavelmente um local para apreciação do jardim em tempos áureos.

Passa pelos velhos móveis cobertos por lençóis rasgados e empoeirados e se dirige a um imenso corredor. Seu coração bate com a mesma determinação do de alguém que já está acostumado a enfrentar o horror mas se percebe suando de medo. Pressente que a Mansão Libório abriga algo mais sinistro do que qualquer coisa que ele já tenha enfrentado.

     Aos poucos começa a sentir os pelos dos braços eriçando, pois, à medida que avança pelo corredor sombrio da casa começa a ouvir suspiros e sussurros desconexos, como se as paredes da mansão estivessem vivas e revelando seus segredos macabros. Mas Eran não se intimida. Seus conhecimentos e sua coragem são suas principais armas, pois sabe que não pode contar com a luz do sol para afastar as trevas. E enquanto explora os aposentos decadentes da mansão, percebe que há algo muito errado. Sente ali dentro alguma coisa além da simples presença assombrosa de espíritos. Os sons se confundem e o caçador começa a se ver preso em uma espécie de alucinação, onde vê pessoas vivas caminhando pela casa, entrando e fechando portas, conversando em grupos, sorrindo e correndo em sua direção, chorando e gritando de dor e desespero ao vê-lo. Tudo muito estranho e assustador. Parece-lhe um pesadelo sombrio e mortal do qual precisa se libertar para descobrir a verdade por trás da escuridão que envolve aquele lugar macabro.

 

     As aparições não lhes dão trégua e agora o cercam apontando e esbravejando como se o vissem como uma ameaça. Mesmo assim, Eran continua sua exploração na Mansão Libório. Passa para outro cômodo e se vê dentro de uma sala retangular, em cujas paredes estão dispostos vários retratos antigos, aparentemente pintados à mão. Com a luz da lanterna é possível perceber que os rostos nas pinturas - parecendo distorcidos por anos de sofrimento e angústia – também o encaram com olhos irados e acusadores, mas Eran não se intimida.

     Porém, à medida que se aproxima para examinar as pinturas, um vento gelado sopra com força e abre a imensa janela do salão que dá para a rua lateral. A luz da lua diminui a escuridão que engole a sala, mas não impede que o caçador sinta a presença de almas atormentadas ao seu redor.

     De repente, uma figura espectral surge diante dos seus olhos, emitindo gemidos e lamentos agudos. Identifica-o como sendo o espírito de Fanny Pearl. Uma jovem mulher que, pelo que havia pesquisado sobre as aparições na velha mansão, morrera aprisionada naquele lugar sinistro há mais de três séculos.

     De repente, Eran começa a ouvir com mais nitidez cada uma das palavras que o espectro da jovem emite e percebe que ela está lhe contando sobre o terrível destino que a levou àquela prisão eterna. As palavras ecoam na sala com tanta tristeza e desespero que o experiente caçador, embora não consiga acompanhá-las como gostaria, começa a sentir um misto de compaixão e simpatia pela jovem ao testemunhar seu sofrimento. Eran então se compromete a ajudá-la a encontrar a paz. E sem levar em consideração seus próprios planos para aquela noite, começa a interagir com o espectro da jovem tentando encontrar o local exato do velho casarão onde estão aprisionados os seus restos mortais.

 

     Naquele momento, no entanto, Eran não faz a menor ideia de que o mais aterrorizante ainda está por vir. E enquanto se aproximam do antigo cárcere da jovem mulher na intenção de libertar o que restou do seu corpo físico, outras entidades sombrias começam a emergir das sombras, revelando-se como uma horda de espíritos malignos sedentos de vingança. Sem ter como escapar, Eran se vê cercado e inicia uma luta energética sem precedentes para manter sua lanterna eletromagnética acesa, enquanto os espíritos o atacam de todos os lados.

 

     A batalha que se segue é tensa e desesperadora. O caçador se esforça para proteger a alma da jovem mulher e a si mesmo. Uma das suas armas mais poderosas é o lazer de ectoplasma e ele não vê outra saída a não ser usá-lo apesar do perigo de fazê-lo, não apenas por estarem em um ambiente fechado mas, principalmente porque o espectro de Fanny Pearl também poderia se desintegrar antes de ser libertado daquela prisão. O confronto épico culmina com uma explosão de energia sobrenatural rasgando a escuridão da mansão e iluminando brevemente o local com uma luz tão ofuscante que atravessa o teto e chega a ultrapassar a barreira das nuvens sem que Eran perceba.

     Uma névoa branca muito densa toma conta do lugar por alguns minutos. Quando a fumaça finalmente se dissipa, Eran se levanta cambaleante. Estava exausto, mas os espíritos malignos haviam sido banidos daquele ambiente lúgubre e nem mesmo o espectro da jovem Fanny estava ali.

     De repente uma chuva de raios desaba sobre a mansão e os clarões que invadem as janelas iluminam o trajeto de uma jovem loira que avança em sua direção mas o ignora e atravessa a sala segurando uma lamparina metálica antiga. E, sem parar por um instante sequer, se dirige a algum lugar que aparentemente precisa de luz. Eran percebe as semelhanças com a jovem Fanny Pearl, mas não lembra de ter visto aquele rosto tão belo em nenhum dos quadros do salão. As vestes claras e de bom gosto não se parecem com a camisola suja que o espectro vestia. Tampouco as faces rosadas lembravam o rosto encovado e carcomido do espectro cadavérico que o interpelara. No entanto, alguma coisa na jovem o leva a crer que se trata da mesma pessoa.

     Confuso, Eran incide o facho da lanterna eletromagnética sobre a jovem e descobre, estupefato, que não se trata de um espírito ou fantasma, mas de uma pessoa tão viva quanto ele. E ao ver a jovem mulher desaparecer por uma porta no fim do corredor que fica entre a cozinha e a despensa da casa, decide segui-la. Após fazer o mesmo o trajeto o jovem se depara com uma parede e apenas o seu instinto de caçador lhe garante que ali há realmente uma porta, pois seus olhos não a enxergam.

     Com convicção, procura uma ferramenta no alforje que carrega consigo. Precisa de algo capaz de ajudá-lo a romper aquela barreira de cal e tijolos. No fundo da mochila encontra apenas um martelo, mas a curiosidade, misturada ao desejo de resolver aquele mistério e ajudar a jovem Fanny, faz com que não meça esforços para derrubar aquela inconveniente barreira física que o impede de seguir a misteriosa moça que vira depois do nevoeiro.

     

     Quando, enfim, consegue abrir uma passagem na parede suficiente para poder entrar no ambiente escuro cheirando a mofo e decomposição, vê que se trata de uma espécie de capela, com um altar rústico, onde a jovem se encontra prostrada aparentemente rezando. Mas ao tentar se movimentar, tropeça em alguns tijolos e cai sobre uma porção de areia que há no local. Com o impacto da queda bate a mão em um objeto metálico e solta a lanterna, que sai rolando em direção à parede e só então para.

     A dor latejante no pulso leva Eran a praguejar mas não o impede de tatear em busca da lanterna que está apagada por causa da queda. Quando finalmente consegue fazer o objeto voltar a funcionar, o rapaz observa que a moça se levanta e, como se o tempo passasse em câmera lenta, assiste paralisado quando a jovem deposita a lamparina sobre a bancada diante de uma estátua - que ele presume ser de Santa Luzia - toca no crucifixo de madeira que fica aos pés da mesma e, em seguida, deita-se em uma espécie de esquife disposto sobre uma mesa baixa de cimento e, em seguida, puxa a tampa sobre si mesma. Sem acreditar no que está vendo, o Caçador ouve o estalo da trava da tampa do caixão e vê o lume da lamparina se apagar completamente. Naquele instante tem uma espécie de insight e só então se dá conta que a resolução daquele mistério está bem diante dos seus olhos.

     

     A jovem Fanny Pearl não fora aprisionada até a morte. Ela escolhera morrer aos pés da Santa de quem era devota e, por isso, construíra com as próprias mãos a sua clausura. Daí a existência dos restos de construção ali do lado de dentro da capela.

     Agora as palavras sussurradas pelo espectro da jovem começam a fazer sentido para o caçador. Ela preferiu a morte a se casar, como fizera a sua guardiã. Só não levara em consideração, talvez por ingenuidade ou desespero, que o suicídio condenaria o seu espírito a vagar no purgatório por quase três séculos impedindo sua alma de descansar. Esse fora o seu castigo. E os espectros que, junto com ela, assustaram e até provocaram novas mortes eram dos antigos moradores da mansão que, por vingança, se tornaram seus algozes e estavam ali para castigá-la toda vez que procurava por ajuda para libertar sua alma daquele mausoléu infernal.

 

     Com muita dificuldade, Eran finalmente consegue levar o esquife da jovem para fora da mansão. Seu objetivo é enterrá-lo no jardim que existe no quintal da casa mas, para a sua surpresa, assim que abre a porta dos fundos a luz intensa do sol ofusca-lhe a visão. O dia amanhecera limpo. Sem as nuvens escuras que pairavam sobre Rio das Almas por tantos anos. O caçador ainda demora algum tempo para que seus olhos voltem a enxergar direito ao seu redor. E somente quando isso acontece ele escolhe um local agradável embaixo de um pé de acácia e ali, após cavar o singelo túmulo, deposita caixão e incinera os restos mortais da jovem Fanny, sepultando as cinzas logo em seguida.

 

     Felizmente dessa vez ele conseguira libertar a jovem mulher, permitindo que ela encontrasse a paz após séculos de sofrimento. No entanto, Eran sabia que seu trabalho como caçador de espíritos malignos estava longe de ser terminado. Por isso passou na igreja para avisar ao pároco, seu contratante, sobre a capela existente na Mansão Libório.

     Falou da luta com os espectros e de como conseguira reestabelecer a luz do sol nos arredores da velha mansão, mas não mencionou o caso da jovem suicida. Não sabia por que se calara, mas sentia que devia isso a ela. O mundo não precisava saber do pecado que cometera.

     O Padre, no entanto, parecia saber mais do que contara ao caçador. E a julgar pela falta de perguntas insistentes, sabia que Fanny Pearl era bem mais do que um simples espírito atormentado...

 

     Ao sair da igreja tinha a sensação de dever cumprido e, assim, partiu mais uma vez para enfrentar as trevas que assolam esse mundo tão caótico.

     __ Ao menos dos mortos ainda é possível se proteger. __ Diz a si mesmo antes de descer o degrau da calçada e entrar no carro. Mas um estranho arrepio na nuca o faz levantar a vista em direção à janela da Mansão Libório...

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 15/11/2023
Código do texto: T7932808
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