Amanhã - CLTS 25

Por anos Rafaela não se preocupou com a necessidade de se enturmar, mas havia chegado um momento em que tal desfeita seria no mínimo falta de educação, e ela era por demais educada. O que a afastava das multidões não era falta de empatia, pelo contrário, desde cedo aprendera a ver o melhor das pessoas, ter compaixão pela dor do outro era algo tão natural que a fazia enxergar mais do que gostaria... Era mais timidez mesmo. Bom, a faculdade também tinha essa faceta de “interação ou morte!”, onde o mínimo engajamento era o suficiente para sustentar as boas relações entre os futuros sócios ou concorrentes.

Assim, lá estava ela, terminando os preparativos para a rave de encerramento do curso, quem diria. Ela que em 7 anos contava em uma mão as vezes em que saíra para se distrair, dançar, conversar, conhecer pessoas... Esquecer um pouco seus deveres, os livros, as provas, as expectativas.

Afinal, cursar Medicina não era pra qualquer um, privilégio de poucos, sempre ouvira, e isso estava além de apenas ser aprovado no vestibular. Rafaela era totalmente ciente dos aspectos financeiros e pessoais que permitiram com que ela viajasse de Porto Alegre para Maceió para estudar o curso sonhado e idealizado pelos pais muito antes de sua concepção (embora as coisas do “espírito” a atraíssem mais) como os pais não aceitaram geriatria, se tornar neurocirurgiã também a aproximaria do que sentia ser sua missão na vida, que era semear e espalhar o amor e o bem... ser realmente o espelho de uma mudança no mundo. Salvar vidas...

Os pais sempre que ligavam (o que era todos os dias) faziam questão de salientar a importância de manter-se afastada de qualquer espécie de relacionamento amoroso, alegando que ela teria todo o tempo do mundo para escolher alguém para a vida... quando tivesse completado a fase mais importante e definitiva de sua trajetória... que não os decepcionasse e todo o sermão já até decorado por ela, coisa de filha única. Eles eram conservadores até as raízes. Extremistas da construção do futuro profissional perfeito. Mas se soubessem o quanto ela passava despercebida pelo sexo oposto com suas olheiras sempre presentes e seu esguio corpo baseado numa “tábua”, se preocupariam menos. Não precisava contar que ainda era intocada, que sua pureza permanecia inviolada... contrariando todas as expectativas, ela que já chegava aos 27. Duas vezes por ano, durante duas semanas, os pais viajavam para matar a saudade. O próximo encontro seria em um mês, quando passariam o réveillon juntos. Rafaela os amava e valorizava o empenho deles desde que se entendia como gente, as dezenas de empresas do pai eram pequenas se comparadas ao tamanho da gratidão que ela nutria por tudo que sempre fizeram por ela. A família Schneider precisava daquele diploma.

Só que naquela noite, ela havia decidido fazer algo impensado, algo formulado após diversas conversas atiçadas pela curiosidade com a amiga de quarto Amanda, frequentadora assídua das noites cariocas e posteriormente alagoanas. Rafaela queria extravasar, ao menos uma vez, sair do eixo, se testar, conhecer algo nela ainda desconhecido, enxergar com os olhos dos que se deixam enganar por momentos de felicidade fabricados... Iria pela primeira vez na vida, ficar “chapada”, ou qualquer coisa perto disso. Precisava ter ao menos uma lembrança para guardar. Fazia parte do acordo interior que fechara consigo mesma que seria apenas aquela vez. Uma vez e nunca mais. Por isso seria com algo marcante. Como médica sabia quase tudo que é possível saber sobre as drogas, a questão era nunca ter sentido, não ter uma referência. O que sabia era que boa parte dos recém formados estava viciada em diversos medicamentos, o acesso fácil era o grande segredo.

─ Rafa, é o seguinte: relaxe; respire. É só um doce... nada demais. Tá suando, parece que vai ter um troço. Você vai gostar!

─ Ô Mandinha... é porque eu só tomo água, suco e café desde que nasci. Isso não é forte demais não? Não seria melhor algo tipo... vodka? Uma cachacinha? Cerveja? Você disse que ficou vendo coisa...

─ Menina, ele vai ser a única coisa que você vai precisar, confie em mim. Vou ser tua babá hoje. E eu só tenho um, faço questão que seja seu. Ácido do bom. Será nosso segredinho. Tu vai virar uma leoa atrás dos gatinhos! Urrhhhuaaauuuu!!!!

─ Você é minha única amiga aqui, Amanda, tô confiando em você, mas acho que minha mente é muito engessada pra cair em ilusões... olha bem pra mim, nem combina.

─ Veremos... se bem que não é ilusão, “ilusão”, tá mais pra permissão... Sabe como esse ácido se chama, gatona?

─ Não.

─ Unicórnio 5D. Será que ver um cavalo branco vai te fazer gritar por um príncipe encantado? Ou por um garanhão?

As duas riram. Faltava menos de 2 horas para a grande festa, que contaria com 5 djs e espetáculos pirotécnicos que não deixariam nada a dever aos grandes festivais de música eletrônica. Dez horas de evento. Aproximadamente 500 pessoas eram aguardadas naquela que entraria para a história da Universidade Federal de Alagoas como “A Rainha das Festas”, uma explosão fervilhante de hormônios patrocinada por pais orgulhosos de seus queridos futuros médicos e seus futuros gloriosos e promissores... muito havia sido investido, e muito esperava ser colhido. Todos deveriam estar trajando exclusivamente BRANCO. Sem exceções.

─ Não, sem garotos, Mandinha, já basta esse tal de unicórnio aí. Amanhã ainda tenho compromisso voluntário na ala do câncer pela noite. Será que consigo?

─ Amanhã... amanhã... amanhã... Vamos se arrumar, que hoje eu quero te ver balançar esse esqueleto! Hoje! Nada de trabalho. Nada de bad trip. Só GOOD VIBES!!! O amanhã a Deus pertence... Vamos correndo pra república. Hoje!

─ Com certeza... só não sei se o balanço vai rolar, mas o esqueleto já tá garantido...

***

Quando o relógio de ambas marcava 23:45, elas chegaram no lugar reservado para o evento, uma mansão de centenas de hectares numa área de mata atlântica que antes fora morada de um político muito influente, lugar que recebera por anos a alta sociedade alagoana e seus mais diversos convidados, palco de conluios e planos ardilosos que destruíram milhares de famílias. Quando as coisas começaram a tomar outro rumo e o centro dos negócios escusos transferiu-se para Comendador Negromonte, tornar a Mansão Bertolini numa área voltada exclusivamente para eventos milionários foi uma grande sacada, atenderia da mesma forma os interesses de seus proprietários, tornando as coisas, digamos, “limpas”.

─ Ahhhhh!!! Que tudo Rafa! Uhhuuu!!!

As batidas pulsantes da música eletrônica faziam o peito de Rafaela vibrar, a música ensurdecedora agitava a multidão de jovens que pulava num ritmo sincopado, o cheiro no ar era o da mistura de muitas bebidas e perfumes, as chamas que subiam do palco montado no meio da área criavam imagens ofuscantes e arrancavam gritos histéricos de muitos. Grupos de amigos passavam abraçados, celebrando o momento cada um à sua maneira, os bares montados por todos os lados serviam drinks coloridos de maneira ininterrupta, e era quase impossível ver um deles sem um copo nas mãos. Haviam dito 500, mas com certeza havia bem mais. Um mar de gente. Um mar de branco...

─ Eae Rafa, vamos no banheiro que eu vou te dar a parada, beleza? Nossa festa vai começar agora! É MEDICINA PORRAAAA!!!

A empolgação natural de Amanda sempre fora um traço que Rafaela considerava admirável, embora não compactuasse com seu estilo de vida e por vezes tentasse dissuadir a amiga de comportamentos tóxicos que até mesmo os mais inteligentes e capazes se submetem sem que percebam. Era a vontade de viver que pulsava nela que a chamava a atenção, como se o futuro e tudo que ele implicasse não a afetasse, como se uma certeza de que tudo o que ela realmente queria fosse acontecer pelo simples fato de que ela o queria. E ponto. Gostava de Amanda.

─ Tá bom, mas antes eu vou ver se consigo pelo menos tomar um suco que não tenha álcool. Ou alguma água que não tenha álcool... ou álcool sem álcool... sei lá.

Caminharam por 20 minutos até que encontrassem um dos banheiros incólumes espalhados por toda a extensão da mansão, que se dividia em 3 partes, uma voltada para shows e eventos ao ar livre, com 1.000 m², outra área voltada para trilhas e passeios pela mata, com banhos de rio e cachoeira, e ao fundo, longe ao menos 2 km da área onde aconteciam as festas, a Mansão Bertolini, onde somente eventos seletos aconteciam e quase ninguém sabia muita coisa.

─ Toma ─ Amanda estende um pequeno saco ─ é só colocar esse selinho aí embaixo da língua e deixar lá. Não tem gosto.

Rafaela pegou o quadrado minúsculo e inspecionou o desenho do cavalo colorido com um chifre brilhante estampado em ambos os lados.

─ Bom, veremos se tudo que eu estudei até aqui faz sentido, porque se fizer, isso não vai mexer comigo. Olha pra isso, é um cavalo colorido. No mínimo hilário.

─ Deixa de conversa ─ Amanda aspira a carreira de pó branco da tela do celular ─ Isso vai te deixar de boa até o fim da festa. Uma hora até o efeito bater mesmo.

─ Fim da festa? ─ Rafaela não havia contado com a possibilidade real de permanecer até o fim do evento, pensava nos pais e no que eles falariam.

─ O fim da festa, bobinha, é sempre a melhor parte... Eu amo essa música! ─ Amanda saiu puxando Rafaela pelo braço e em alguns minutos elas se misturaram na multidão. Rafaela se esforçava para manter o papel embaixo da língua enquanto conversava e tentava desajeitadamente dançar, seu lado mais racional e os milhares de livros que lera sobre o funcionamento do cérebro a faziam pensar que havia sido uma tola se pensara que uma substância é capaz de alterar o controle de alguém que se conhece de verdade.

─ Mandinha, acho que isso não tá dando nada... não vai funcionar comigo.

─ O quê? Não te ouvi Rafa. Tudo bem?

─ Eu disse que isso... que isso... não...

E de repente, a barragem que a razão construíra ao longo de uma vida cedeu... uma avalanche de sensações e uma inebriante inundação de vida arrastou todos seus questionamentos... pulsava... pulsava... a música a guiava... os tambores... as luzes... o sonho...

─ Aeeee Rafaaaa!!! Tá chapada!!! É ISSO AÍ!!! MEDICINA PORRA!!!

Toda a noção de realidade de Rafaela se repartia em miríades infinitas enquanto os gritos estridentes de Amanda reverberavam somados a indecifráveis gritos desconhecidos. Suas pernas foram se dissolvendo numa sensação de paz e completude, um arrebatamento estonteante e inesperado que rompia de seu peito numa explosão de sentimentos nobres... compaixão... amizade... amor... Tudo parecia ter ganhado novo sentido e ela não conseguia encontrar forças para falar...

─ Rafa, sua maravilhosa! Eu te amo! Bateu num foi? Cé tá bem?

─ Tô sim... tudo bem Mandinha... só preciso de água...

─ Água chegando! Tó aqui com o kit de primeiros socorros, como eu disse, sou sua babá hoje. O que é que tu tá sentindo? Tá bom?

Rafaela tentou falar, pensava estar falando, ao mesmo tempo em que não movia os lábios e pensava ao mesmo tempo sobre como a Fonte da Criação se expandiu até chegar ali... naquele evento tão desnecessário e ao mesmo tempo tão sublime em suas fraquezas... e nada fazia sentido... onde ela estava no mundo? Quem era ela? Amanda continuava olhando-a com uma cara feliz e despreocupada... e então...

Rafaela explodiu em gargalhadas.

E o tempo se dissolveu...

A felicidade que se seguiu durante 3 horas transcendeu qualquer expectativa que ela talvez tivesse sobre a Ciência e sobre si, o conhecimento da atividade cerebral e o funcionamento do Homem em todo seu aparato orgânico; dopamina, serotonina, endorfina e tantos outros hormônios. Excluindo qualquer causa não explicável, os dogmas e os métodos científicos sempre pisaram na experiência empírica e sua capacidade adormecida de acessar o desconhecido, podendo validar o real sob a perspectiva única de quem o vive... Como ela explicaria o que estava vendo e ouvindo? O alcance do que percebia? Tudo ao redor se movia como uma maré de energia viva em constante mudança... A empatia e o amor incondicional que por anos a afastaram da possibilidade de sofrer por não poder ajudar a todos a faziam entender a vida e seus mecanismos... começo e fim... prazer e dor... ódio e amor...

─ Amanda... muito obrigada... de coração... essa está sendo a noite mais incrível de todas... sério... Por que tá tudo tão colorido e feliz? É normal isso né? Esse Unicórnio 5D é surreal... meu Deus... tô achando que tô louca. Bendito Albert Hofmann!

─ Gata, vai fazer 4 horas que você tá dançando sem parar! Isso não tem preço. Tá todo mundo de cara com você, ninguém sabia que você era profissional da dança. Que louca que nada! Tás é chapada!

E mais gargalhadas. A mente de Rafaela viajava entre passado e futuro em saltos centesimais, o corpo vibrava, seus pensamentos confluíam num frenesi incessante de agradecimentos pela vida... pela família... pela chance de poder errar e aprender... Queria dançar, correr, voar... Rafaela olhava as pessoas nos olhos e se sentia capaz de tocar suas almas... sentir suas aflições e compartilhar de seus sonhos... cada abraço que dava era como uma troca de energia que parecia revigorar os abraçados, que se impressionavam com a mudança visível de Rafaela, quase sempre vista como uma verdadeira esquisita. Era como se algo fluísse através dela, uma energia que buscava o melhor em cada um deles... sentia-se como se mãe de todos... queria cuidar de todos... vê-los felizes... mas nem os conhecia... queria o bem do Mundo... não queria que a festa acabasse... que a vida acabasse... Quem construía o amanhã?

─ Rafa, vamos ali, o Gilson achou uma trilha aqui perto que vai dar num lago lindo, não tem ninguém lá, e olha só pra essa lua! ─ uma lua cheia brilhava num céu negro sem nuvens. As estrelas pareciam estar ao alcance das mãos de Rafaela, ela via as constelações em sua perfeição, ergueu os braços e sentiu como se pudesse ir até elas apenas pelo simples fato de que ela... queria.

Gilson, acompanhado de mais um amigo, guiou as duas por entre uma trilha sinuosa de degraus de mármore enquanto fumavam maconha e contavam felizes sobre seus planos para os anos vindouros, os consultórios que abririam, os salários que receberiam. Amanda claramente flertava com Gilson que se desfazia em gracejos enquanto o amigo ignorava Rafaela e preferia o celular quando não estava olhando também pra ela com uma expressão estranha.

Cada degrau que descia pela trilha trazia uma nova percepção para Rafaela de como era traiçoeiro pensar que aquilo tudo ao seu redor era fruto do acaso, o Mundo, a Vida... as brilhantes mentes analíticas a serviço da ciência sempre fizeram questão de invalidar o que diziam ser fruto de um pensamento primitivo, retirar Deus de qualquer assunto tido como sério era algo tão habitual em seu meio que por anos preferiu o silêncio ao confronto de ideias. Quando se tinha um cérebro entre as mãos e o poder de uma vida, os homens se corrompiam... Mas o que aquele pequeno selo estava permitindo sentir a fazia derrubar o muro de certeza que construíra para se sentir segura diante de um mundo tão desconhecido quanto evidente. Rafaela se encontrava em outro plano de contemplação, já começava a pensar que realmente havia perdido a sanidade porque questionava tudo o que aprendera, quando um clarão surgiu do meio da mata por onde os degraus haviam levado...

─ MEU DEUS DO CÉU!!!!! QUE LINDO!!!

O jeito escandaloso de Amanda pela primeira vez pareceu plausível quando viram o luar se refletindo num imenso lago de águas transparentes onde uma fonte despejava uma corrente de água morna e convidativa. Imediatamente os três pularam na água, e em segundos tudo era alegria e paz. Amanda observou durante um tempo intangível a imagem daqueles jovens que eram como ela se divertindo como se não houvesse amanhã... como se não houvesse o Mal e como se não fossemos obrigados a combate-lo. Estava prestes a entrar também na água quando ouviu...

“Não”

“Me siga”

“Atrás de você”

Num átimo, toda a felicidade que sentia pareceu dar lugar a um assombro escuro... mas quando se virou, algo fez com que seu corpo paralisasse e todo seu ser se voltou para a criatura que via...

Um imenso cavalo branco com um chifre em espiral na testa se erguia em duas patas. Ninguém parecia vê-lo, apenas Rafaela o via brilhando numa aura lilás que iluminava os arbustos...

Embora consciente de que vivia uma experiência propiciada pelo uso de uma substância lisérgica que teria o poder de fazê-la questionar tudo como estava questionando, o que sentiu quando fixou sua consciência sobre aquele ser mítico que parecia convidá-la até ele foi algo de uma pureza angelical, tinha que ser uma miragem, uma ilusão... ela não sentiu medo quando seus passos a guiaram pela mata longe dos degraus de mármore até que suas mãos estivessem acariciando a crina macia de pelos brancos da criatura... o cavalo tinha olhos de um brilhante azul, o chifre em sua testa era maior que um braço. Enquanto Rafaela o tocava, sentia seu ser se conectando com algo misterioso, seus olhos se encheram de lágrimas quando o êxtase a tomou de súbito...

“Fique aqui... não vê que a cilada está pronta? Enquanto sangue inocente escorre e tudo que já foi importante é esquecido... o egoísmo impera, a maldade, o caos que o Homem cria quando esquece a criatura que é...”

─ Eita maconha louca do cranco! Óia pra Rafaela mano! Pegando viagem! ─ Gilson vê de longe Rafaela sozinha fazendo movimentos aleatórios com as mãos no meio da mata e ri loucamente.

─ Rafa! Volta pra cá! Rafa! ─ Amanda grita por Rafaela mas o som da música e os beijos sedentos de Gilson a calam.

Os olhos de Rafaela se reviravam...

“Esquecidos continuarão enquanto escolherem a dor... colherão dor enquanto dor forem... porque só assim aprenderão... Só com a dor há redenção...”

Rafaela ainda tocava o majestoso animal quando uma força interior a fez gritar...

─ Eles ainda podem mudar! Todos são bons! Todos são filhos do Único...

“Bons... porém fracos... olhe ao redor... você verá como é mais fácil assim... com a dor... com o VERMELHO!”

O cavalo saiu em disparada em direção a festa que continuava normalmente. Rafaela despertou do transe sentindo um frio a espremer seu peito, olhou para o lago e viu que Amanda se divertia pra valer com os dois amigos... a lascívia e a luxúria começaram então a ser percebidas como uma densa névoa que cobria todo a extensão da mansão. Rafaela correu pelos degraus e ainda pode ver quando o cavalo invadiu a multidão atingindo quem estivesse pela frente com seu longo chifre, a multidão gritava e corria em desespero enquanto numa velocidade espantosa o unicórnio despedaçava jovens vestidos de branco e que agora estampavam chagas vermelhas... gritos de desespero se misturavam ao cheiro de medo e de algo mais... algo que não estava antes... parecia...

Pólvora.

Rafaela acompanhou o unicórnio em sua matança até que algo a atingiu no ombro e ela foi jogada ladeira abaixo. As luzes se apagaram, e toda a paz... se foi...

***

Poucas tragédias haviam comovido a nação como a chacina que vitimou 233 jovens naquela noite de Novembro. O mundo ficara perplexo. Dez alunos do curso de filosofia foram identificados como autores do massacre, vídeos e provas em aúdio foram encontrados junto a munições e granadas. Os jovens haviam invadido a festa pela mata e disparado com fuzis automáticos sem distinção de alvo, foram mais de 1.300 cápsulas encontradas deflagradas naquela noite, eles só pararam quando a munição havia acabado restando apenas uma pistola que serviu para que o líder executasse seus nove subordinados e na sequência colocasse a última bala no meio de seu cérebro. Cento e vinte nove pessoas ficaram feridas e o mistério de como aqueles estudantes que vinham de famílias de classe social baixa puderam ter acesso a todo o armamento usado em guerras no Oriente Médio permaneceu insolúvel. Não havia vínculo comprovado com nenhuma facção criminosa, ideologia ou seita. Nada que explicasse o fato.

Rafaela sobreviveu àquela noite, mas não pôde exercer sua profissão e realizar o sonho dos pais, já que o tiro de fuzil que destruiu sua clavícula esquerda limitou seus movimentos para toda a vida. Uma década já havia se passado desde a chacina e ela nunca esquecera a imagem daqueles três corpos nus crivados de bala boiando no lago... aquilo a assombrava... ela havia chegado perto demais... tocou algo intocável e pagou o preço por ver o melhor sempre... esquecendo a principal fraqueza alheia: ser HUMANO...

─ Mamãe! Mamãe! Vamos tomar sorvete? Por favor!

─ Amanhã filha, amanhã a gente vai... ─ Porto Alegre estava quente.

─ Ah mãe... queria tanto agora...

“Amanhã... ou agora?”

“O amanhã, a Deus pertence...” Amanda diria...

─ Tá bom meu amor, iremos hoje... sim... hoje... hoje... Vamos sim... Hoje... Agora...

FIM

Obrigado por vir até aqui...

TEMAS: UNICÓRNIO

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 13/11/2023
Reeditado em 28/03/2024
Código do texto: T7931136
Classificação de conteúdo: seguro
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