Natalia
Quando eu era mais novo minha mãe me deu um colar feito à mão. Ela mesmo havia feito com pele de carneiro, pele que meu pai foi o responsável por tirar. Eu tinha 6 anos na época, mas durante anos a lembrança do dia estava na minha memória.
-É para sua proteção. - Disse ela ao me entregar.
O colar tinha a imagem do brasão do meu pai na frente e uma imagem da minha mãe atrás. Todas feitas com tricô. Sua corda era do mesmo material que o colar, mas, utilizando pedúnculo de flores por baixo para segurá-lo enquanto minha mãe o fazia.
Era um ótimo colar. Extremamente belo e meu orgulho. O mostrava para todas as crianças da escola, durante todos os anos que o usei. Alguns se reuniam ao meu redor para ver querendo um igual, outros sentiam repulsa e até mesmo me zoavam por usá-lo.
-Filhinho da Mamãe! Filhinho do Papai! -
Eu não tinha problema com isso naquele tempo, eu realmente era o filhinho da mamãe e do papai, afinal ainda era uma criança. Diferente do que pensavam isso me dava alegria, e os retrucava sempre que podia, falando que pelo menos meus pais me amavam.
Fui mandado pra coordenação por causa disso e mesmo meus pais brigaram comigo, dizendo que deveria ter pena de alguns deles, não havia entendido muito bem o motivo naquele tempo. Mas estava tudo bem de novo no final, eu ainda era filho dos meus pais e isso me impedia de ficar mais triste.
O tempo então foi passando e fui deixando o colar de lado, não só por começar estar dando atenção ao que os outros estavam falando, mas porque ao crescer comecei a achar que não seria mais necessário usá-lo. O colar era bonito, mas era isso, eu não era mais o filhinho de papai e mamãe.
Meus pais, claro, ficaram entristecidos e diversas vezes tentaram me convencer a voltar a usá-lo. Toda vez que eu saia de casa ou voltava eles me perguntavam por que não o usava ou me pediam diretamente para usar.
-Usarei novamente, quando chegar a hora. - Foi o que prometi com um sorriso no rosto, pois estava falando a verdade. O colar era bom e meus pais fizeram com carinho, então não poderia simplesmente jogá-lo fora apesar de tudo.
O tempo novamente foi passando e fui me esquecendo da promessa. Quando entrei na faculdade ela já havia desaparecido da minha mente como folhas ao vento. O som de entrada, o andar pelas ruas até meu novo destino, tudo parecia novo, diferente, belo.
Era uma nova era para mim!
E foi em um desses andares, dessas caminhadas da manhã ao destino, que eu a conheci. Uma mulher de cabelos loiros, olhos cristalinos, vestindo uma roupa estampadas com flores como se ela mesma fosse uma arte da natureza. Parada de frente a um bueiro ela olhava para mim e logo veio em minha direção.
-Bom dia! Você lembra de mim? - Perguntou ela ao se aproximar.
Claro que eu não lembrava, para mim era a primeira vez que a vi. Infelizmente, meu olhar não traiu minhas emoções e a confusão ficou estampada no meu rosto. Coisa que ela percebeu.
-Meu nome é Natalia, estudamos na mesma escola durante anos. Não lembra? - Fiquei com vontade de chamá-la de mentirosa por desespero, mas o que me fez parar foi que ela continuou, com mais uma fala que serviria de tapa no meu rosto. -E estamos até mesmo na mesma faculdade, mesma sala. Nunca notou? -
Infelizmente não, senhorita. Nunca notei.
Foi o que pensei em dizer, mas ficou apenas em minha cabeça. Quis falar de jeito mais formal, para chamar atenção, mas a única coisa que saiu da minha boca foi:
-Lembro nada, desculpa aí. -
Um bom começo, com toda a certeza.
Estava irritado comigo mesmo por ter ignorado por tanto tempo a existência de uma mulher tão bonita assim, mas ao invés de ficar triste ou irritada ela riu e, sua risada era tão calorosa e contagiante que eu acabei rindo junto. Tínhamos ficado bem, apesar do meu esquecimento. Perdoado, ofereci ir com ela até a faculdade para nos conhecermos melhor, coisa que ela aceitou prontamente.
-Finalmente, finalmente! - Foram os gritos de todos que estavam na sala quando nos viram chegar juntos, pareciam estar esperando por mim esse tempo todo, ou melhor por nós dois.
Eu fiquei um pouco mais entristecido por isso, pois parecia que esse tempo todo eu fui o único que nunca percebi que ela queria falar comigo e, o único que nunca havia a notado antes.
Esse foi o assunto inteiro da sala durante o horário de aula, as vezes algum amigo olhava para mim com um sorriso levado, virando a cara assim que percebia que eu o notei. Em um momento, quando o intervalo já estava prestes a começar, um dos meus colegas se levantou, pôs um pé na mesa e outro na cadeira, colocou o braço escondendo os olhos, fingindo um choro e gritou.
- Finalmente! Finalmente o garoto encontra a garota, o dia chegou senhores! Quanto tempo esperamos por isso!?-
O que fez a sala inteira rir, menos eu, o garoto envergonhado, e Natalia, a garota que parecia não se importar com a brincadeira.
O dia na faculdade foi vergonhoso. Eu não me sentia bem escutando, cada vez que eu andava, alguém da sala falando sobre o assunto. Parecia uma reação extremamente exagerada para mim, o que aumentava ainda mais minha dúvida de como nunca havia a conhecido antes.
Quando fui embora, ela foi junto comigo por uma parte do caminho. Olhei para ela diversas vezes, mas durante esse tempo nada fiz além disso. Ela parecia olhar para frente, só acompanhando meus passos lado a lado de forma perfeitamente sincronizada. O que me parecia estranho, mas também fazia meu coração bater.
Ela parou no bueiro e balançou a mão para mim. Me senti um pouco entristecido de ter que me separar dela assim, mas não pude fazer nada, balancei a mão e fui embora. O vento logo me pegou, trazendo com ele uma pergunta com a voz dela.
-Podemos caminhar juntos amanhã de novo? -
A voz era serena e encantadora, tão convidativa que me impedia de dizer não. Eu estava tão maravilhado que no mesmo instante que a pergunta foi feita me virei para responder com meu sim. Ao qual foi retribuído com um sorriso tão encantador quanto a voz que ela possuía.
Cheguei em casa alegre e pensando no que podia vir a acontecer amanhã e, imaginando os assuntos que poderia tratar com ela para deixar a conversa mais agradável. Meus pais pareciam preocupados, mas os ignorei e subi rapidamente para o meu quarto.
Ao descer para o jantar, não falei nada e acabei nem escutando direito o que diziam, pois, ainda estava vagueando na doçura que poderia ser me encontrar de novo com aquela beleza da natureza, uma flor tão linda quanto as que ela vestia na roupa.
No dia seguinte novamente a encontrei no mesmo lugar, e novamente caminhamos juntos. A reação dos colegas foi grande, mas não tanto quanto antes, dessa vez pareciam só fazer um alvoroço para nos apoiar. Nos reunimos ao sair da faculdade para irmos juntos, com a despedida ocorrendo no mesmo lugar de ontem.
Me despedi e o mensageiro invisível novamente me trouxe sua doce correspondência, ao qual respondi com felicidade.
-Com certeza! -
E então os encontros e caminhadas não pararam, pelo contrário, foram ficando cada vez mais frequentes a ponto de não nos encontramos apenas na faculdade, mas também nos feriados e férias em geral. Quando tínhamos tempo livre ficávamos juntos para ir aonde quiséssemos.
Meus colegas pareciam não mais se importarem com isso, na verdade ficavam calados o tempo todo. Provavelmente porque toda a euforia anterior já havia passado, deixando com que o raro se tornasse normal como pequenas perolas da praia, que ao ser achadas mais perdiam o valor. Fomos apenas mais uma fofoca da sala, apenas isso.
Quando íamos comer em lugares mais caros ela parecia se interessar mais pelos baratos, então quando íamos na vendinha da esquina ela parecia se importar com os mais caros. Para mim isso era nada comparado a estar com ela, e apesar de tudo ela parecia feliz em estar ao meu lado também.
Então foi naquele encontro, ao pôr do sol. Onde cai, ao ser empurrado levemente por ela, na água do mar. Não me importei com a estranha lama preta que estava no meu braço e que tinha uma sensação diferente das outras, apenas a tirei com minha mão. O que realmente me importava era risada dela que parecia brilhar no céu quase noturno. Nesse dia percebi que estava apaixonado.
Fui até ela mesmo estando todo molhado e a pedi em namoro, e para minha tremenda felicidade ela aceitou. Minha emoção transbordava como lava de vulcão em erupção. Logo a chamei para ir até minha casa no próximo dia, ela novamente aceitou. E depois de nos despedirmos, ao chegar no bueiro, como sempre, sai correndo para minha habitação cheio de energia.
Ao chegar contei logo pros meus pais o que acontecei e os falei do planejado. Eles negaram o namoro e a visitação. Seus olhos eram mais frios que gelo e brilhavam de forma afiada como diamante. Senti uma dor no peito, mas ignorei e fui tomar meu banho. Meus pais negaram novamente quando pedi ao voltar, mas eu estava determinado.
Quando o dia chegou deixei ela entrar, achei que aos se conhecerem eles se aceitariam. Infelizmente, não foi uma boa situação. Ela se recusava a subir ao meu quarto então ficamos na cozinha, onde meus pais também estavam.
-Bem, esta é minha namorada... - De alguma forma parecia que eles não precisavam se apresentar.
Eles olhavam para ela com puro ódio, como se sua mera presença fosse um completo insulto, um ultraje imperdoável, principalmente em nossa residência. Ela? Ela olhava para eles com escarnio como se soubesse o que estavam pensando e, o sorriso em seu rosto mostrava o quanto ela se divertia com isso tudo.
Quando tudo terminou e saímos não falei nada, andamos um pouco e ela se despediu sem eu deixá-la em sua residencia, o lugar que eu nunca havia visto antes. Quando voltei para casa ninguém estava lá. Só o silencio no lugar daqueles que tanto me amaram. Achei ter escutado algo, mas era apenas o baixo som do ar-condicionado com seu vento gélido batendo em mim. Estava sozinho e sem saber o que fazer.
Acordei de manhã e meus pais ainda não haviam retornado. Me levantei tristemente, fiz meu café da manhã, me vesti e pronto! La estava eu para enfrentar mais um dia.
Diferente dos meus pais, minha namorada apareceu para mim como nas outras vezes, na frente de um bueiro. E assim com os dias ela ainda foi aparecendo, porém nada dos meus pais. Para me reconfortar botei na cabeça que talvez estivessem viajando, para assim entender que seu filho finalmente havia crescido. Colocava isso na cabeça toda vez que a preocupação batia.
Então Natalia também começou a ir desaparecendo com o tempo, logo que notou o sumiço dos meus pais. Me deixando desiludido com todo o acontecido e ainda mais sozinho.
Meus amigos também não me ajudavam, pelo contrário, as vezes pareciam estar falando mal de mim. Como se nunca tivessem festejado pelo meu primeiro encontro com ela antes, eu não estava entendendo mais nada do que estava acontecendo.
Então, em uma de suas raras aparições, Natalia me convidou para ir em sua casa. Minha esperança aumentou e pensei em pedi-la em casamento. Achei que dessa forma estaríamos ainda mais unidos, ela não mais desapareceria e, meus pais teriam uma surpresa quando retornassem da viagem.
Ao pensar nisso notei o antigo colar deixado em cima da minha mesa. Estava em perfeitas condições, imaculado, como se nunca tivesse sido deixado de lado. Ele me parecia ainda mais belo do que antes nessa situação, então lembrei da promessa.
Chegou a hora.
Me aprontei, com o pensamento focado em meus pais enquanto o fazia. Lá dentro eu pensava que talvez o usando nesse momento especial...Talvez eles voltariam...
Limpei algumas lagrimas que ameaçavam cair dos meus olhos, os pequenos diamantes não atrapalhariam meu momento hoje. Tudo seria especial, minha vida voltaria a felicidade que eu antes tinha.
Com tudo pronto fui ao encontro e a encontrei no bueiro que nos conhecemos, como marcado. Era um lugar especial e eu normalmente a encontrava aí, por isso não poderia haver lugar melhor para nos encontrarmos.
Ela então estendeu a mão para mim, para que pudesse me guiar até sua morada. Aceitei prontamente, com resoluta vontade de cumprir o meu desejo ao chegar o fim do jantar. Ela então foi me levando através dos prédios e casas, ruas e calçadas, até o nosso destino.
Sem eu perceber, nós havíamos andado em círculos, retornando ao bueiro em que a encontrei pela primeira vez. Ela sorriu.
-Chegamos!
A rua estava deserta, não havia nem mesmo um carro passando, por isso pude ouvir quando a coisa estava vindo após sua fala. Algo subiu por entre o solo e saiu pelo bueiro. Uma lama de cor preta com pequenos pós dentro dela. Eu poderia chamá-la de qualquer coisa, pois nem mesmo os adjetivos que usei fariam jus ao que estava em minha frente. A coisa se estendeu até ficar do tamanho de uma casa, mas sem o formato completo de uma, ao invés disso parecia uma versão retorcida, distorcida e quebrada de um projeto de habitação.
-BEM-VINDO AO LAR!
Sai correndo com a coisa vindo atrás de mim, se não fosse por eu ter disparado primeiro ela com certeza teria me pegado. Sua velocidade era menor do que a de um carro, mas facilmente venceria campeões de corrida. A adrenalina era a única coisa que me permitia viver.
Pulei cercas de pedra de praças, fiz desvios, passei por prédios, tudo, tudo para fugir dessa gosma maldita que me seguia. Até que consegui, ao olhar para o mar da cidade me senti seguro, virei-me para trás e ela não estava mais lá. Eu havia escapado.
Não.
Não foi o que aconteceu.
A adrenalina do meu cérebro me fez um sonho, um delírio, onde eu conseguia escapar dessa situação, saindo vitorioso de uma corrida com este ser maligno. Mas a corrida nem ao menos aconteceu. Fui pego antes mesmo que pudesse ter a chance de correr. Meus pés paralisados, minha língua presa querendo gritar, o tempo que parecia parar ao meu redor.
As lagrimas ao descobrir que não era amado de verdade.
Tudo me impediu de correr, eu quis gritar o nome dela e, perguntar o porquê, mas, já era tarde demais.
Antes de ser pego pela coisa vi os olhos da Natalia se tornarem carmesim como sangue, eles eram belos para mim mesmo naquela situação. Brilhavam com desprezo e malicia. Desprezo por me ver ter caído em sua armadilha. Esses olhos continuaram a brilhar na minha visão mesmo depois a ser engolido, tornando sua faceta mais assustadora e fazendo-os perder rapidamente sua beleza.
Outras pessoas além de mim estavam lá, se é que poderiam ser chamados de pessoas. Seus corpos estavam completamente enegrecidos como a noite, com pequenas linhas ao redor brancas como se fossem giz de um cenário de morte. Suas faces e carnes estavam apodrecidas como se algo os tivesse sugado completamente. E seus cabelos eram as únicas coisas, além das linhas, que pareciam ter outra cor, uma cor de transparente.
Mesmo com tudo isso percebi que todos ali foram meus amigos, amigos do colégio e da faculdade. Os mesmos que me apoiaram quando me encontrei com a Natalia. Os mesmos que mandaram eu tirar meu colar. Todos eles pegos na mesma armadilha, todos eles mortos por essa mulher. Logo eu me tornaria como um deles e seria forçado a reagir como eles quando mais um tombasse.
Algo começou a brilhar. Olhei para baixo e notei que o pequeno colar de lã, que eu tinha finalmente vestido novamente, era o responsável por isso. O brilho foi afastando o ser gosmento que me pegou, fazendo-o fugir para dentro do bueiro com Natalia, que gritava de terror enquanto sua pele queimava até virar cinzas.
Senti como se um manto branco me protegesse enquanto meus inimigos eram afugentados, com a garota morrendo antes mesmo de conseguir bater completamente em retirada. Suas cinzas foram pegas e levadas pela gosma negra que conseguiu escapar de medo.
Sai correndo na primeira oportunidade que tive, determinado a nunca mais tirar o colar. Dessa vez nada me perseguia e nem ao menos era uma ilusão da minha mente. Vi minha casa ao longe, minhas pernas bateram mais rápido no chão. Me joguei para dentro sem me importar se a porta estava aberta ou não.
Ela estava e, eu acabei caindo no chão chorando de medo e tristeza. Que logo foram dissipados e deram lugar a lagrimas de alegria ao sentir um caloroso e amável abraço me envolvendo, um que me envolvia com proteção.
-Onde estavam esse tempo todo? -
-Aqui, filho, bem aqui... -
Eu era amado novamente.