Expulso do Paraíso

 

 

Meu pai sempre foi meu herói. Enquanto meus amigos de infância queriam ser o Batman, Homem-Aranha, bombeiro, policial, eu queria ser o meu pai. Em todas as minhas lembranças felizes, era ao lado dele que eu estava. Ele era meu companheiro, amigo e protetor. Ouvia meus amigos, aconselhava-os, indicava o melhor caminho e sempre, sempre, o resultado era satisfatório. Por fim, meu pai, e amigo, tornou-se também o herói dos meus amigos.

 

Se um brinquedo deles deixasse de funcionar, era em nossa casa a “oficina” que eles procuravam. Se a festa fosse longe, meu pai seria o pai da vez. Um amigo exagerava na bebida, nós não pensávamos duas vezes, o número do telefone do Seu Tonho que aparecia em nossa mente. Porém, era nosso cúmplice, guardava segredo absoluto dos “delitos” praticados na fase da adolescência.

Minha mãe era outra derretida pelas gentilezas do Tonhão, Tony para ela. Quando as coisas ficaram estranhas no nosso bairro, minha mãe ficou assustada, todos nós ficamos horrorizados.

 

Estava chovendo muito e acordei durante a noite, ouvi um barulho no quintal, sons que vinham da garagem, uma garagem proibida, só papai podia entrar lá. Olhei pela janela e notei uma luz fraca que vinha de dentro.

Ao amanhecer, percebi uma bota de meu pai toda suja de lama e gotas de sangue, pensei: deve ser tinta.

 

Eu, com 12 anos, não tinha a menor noção das coisas que aconteciam em nosso bairro, imagine no mundo. Ouvia uma coisa aqui, outra ali, mas nada de muito concreto que me deixasse na época com medo, ou que me fizesse suspeitar de algo. Minha vida ainda era perfeita, minha vida era um verdadeiro paraíso.

 

Hoje, tudo faz sentido, mulheres começaram a desaparecer, aparentemente, sem nenhuma ligação entre si. Apenas mulheres, idades variadas, profissões distintas. Nessa época eu não tinha ideia de nada. Vivia em meu mundo infantil, depois não tão infantil, um adolescente comum, egoísta e imaturo, alienado para as coisas que ocorriam ao meu redor. Porém, fatos isolados começaram a deixar de ser isolados. E eu, talvez por ter amadurecido, comecei a perceber certas atitudes de meu pai. Alguns comentários, que antes não teria notado. Eu comecei a desconfiar que meu pai pudesse ter algum envolvimento com o desaparecimento das mulheres. — Meu pai não poderia ser o monstro que sumia com aquelas mulheres, meu herói e amigo, não isso não poderia ser verdade.

 

Depois que as minhas suspeitas começaram, fui pesquisar os fatos e descobri que a primeira vítima sumiu em 1990, nossa vizinha tinha 16, era rebelde, como mamãe costumava dizer. Mas hoje seria considerada uma jovem que gostava de se divertir, frequentava baladas, saía com rapazes, uma jovem feliz. Então, essa vizinha, Amanda, desapareceu depois de ir a uma festa. E foi justamente na época que eu lembro de meu pai ter chegado em casa com as botas sujas de lodo, num dia de muita chuva. Como Amanda era “rebelde”, frequentava lugares diferentes das meninas, ditas de família, todas pensaram que ela havia fugido com o seu namorado, que também desapareceu.

No ano de 1995 uma professora do ensino médio também desapareceu. Ana Júlia, era a professora “gente boa” do colégio. Prô de matemática, a matéria que assustava a todos, mas ela fazia os números terem outro sentido para nós. Ela sumiu sem deixar rastro, nunca a polícia descobriu seu paradeiro. Familiares, amigos, alunos e o corpo docente da nossa escola, promoveram uma campanha para saber notícias suas. Fotos foram espalhadas, cartazes; os jornais anunciavam seu desaparecimento. Tudo em vão, nunca soubemos o que aconteceu com ela.

O tempo passou e o caso caiu no esquecimento da comunidade.

 

Em 1996, outro desaparecimento. A atendente da farmácia uma jovem senhora de 50 anos. Tinha os cabelos negros, olhos grandes bem pretos; ela me lembrava a Mortícia da família Addams. Foi nesse período que comecei a perceber algumas características de papai, um comentário aqui, um olhar diferente ali. Já estava com 18 anos e desconfiava de que coisas estranhas estavam acontecendo fora do meu paraíso, passei a observar os sumiços das mulheres, eram sempre mulheres. E para todas elas, meu pai apontava um defeito para desculpar o possível sumiço da vítima. “Como eu não havia percebido essa personalidade de Seu Tonho antes?”

 

Meu pai tinha uma oficina na garagem, um local proibido para mim e mamãe. Ele costumava ficar lá por horas e horas. Ouvíamos ele bater em coisas, afiando ferramentas, barulho de furadeira, martelos. Mas sempre depois desse arsenal em movimento ela aparecia com alguma coisa construída por ele. Um banco para o jardim, um baú para armazenar brinquedos…

 

Eu já estava me preparando para ir para a faculdade. Foi quando meu mundo desmoronou. Precisei de uma ferramenta para desmontar minha cama, fui na oficina de meu pai. Pensei que, como já era grande (quase adulto), ele não se importaria se eu pegasse sua ferramenta. E na oficina percebi que havia outra porta trancada. Parecia que vinha um barulho de dentro, gemidos. “Deve ter um animal morrendo”, pensei.

Tentei abrir a porta, mas ela estava trancada, procurei as chaves e não achei.

Lembrei-me que papai sempre estava com uma chave no bolso separada das demais — deveria ser aquela.

Peguei a ferramenta que procurava e deixei o local meio a contragosto, porque queria saber que animal estava ali sofrendo.

 

Fui para a faculdade, o tempo passou, mas a dúvida perante os sumiços das mulheres não saía de minha mente, das botas sujas de meu pai; comecei a me lembrar de coisas que na época pareciam ser sem importância, como a implicância de meu pai com a atendente da farmácia, o ciúme dele quando dizia que a professora de matemática era a melhor, ou quando mencionei na infância que gostaria de uma namorada bonita como Amanda, papai ficou bravo. Disse que teria que namorar alguém como a mamãe.

E aquele som vindo da garagem, um animal com dor. Fechei meus olhos para o sumiço da irmã do meu melhor amigo. Nunca ninguém soube o paradeiro da menina, doze anos apenas. Eu suspeitava, mas meu pai e herói não poderia ser o culpado.

Na faculdade conheci Suzan, ficamos amigos e logo um amor surgiu, e começamos a namorar. E não conseguindo mais guardar essa desconfiança apenas comigo, desabafei com ela.

— Su, tenho suspeita de crime, medo, vergonha e raiva — disse a ela, meio envergonhado.

— Fale, querido, o que te atormenta?

Contei a ela tudo o que aconteceu, desde o primeiro sumiço da vizinha, da professora, da atendente da farmácia e por último a irmãzinha do meu amigo. De minha suspeita sobre ser meu pai o culpado, tenho vergonha de pensar que poderia ser ele.

— Bom, primeiro lugar, temos que investigar os hábitos de seu pai. Você já fez isso alguma vez? O que ele estava fazendo nos dias que essas mulheres sumiram?

— Quando as primeiras mulheres desapareceram, eu era apenas uma criança e depois um adolescente. Mas de um tempo para cá, comecei a relacionar os casos — contei a ela sobre o dia que vi as botas dele sujas, o animal que pensei ter ouvido dentro da sua oficina.

— Tenho uma ideia. — Su disse. — Vamos fazer uma surpresa para sua família, você vai me apresentar como namorada neste feriadão. E podemos entrar na oficina proibida de seu pai.

 

Eu estava com vergonha de minha suspeita, meu pai sempre foi um homem de respeito, íntegro, de reputação intocável, como poderia pensar isso dele? Mas não tive opção, tinha que tirar essa história a limpo.

 

Em casa, eu e Suzan esperamos todos dormirem e fomos à oficina proibida. A porta estava fechada, não conseguimos entrar, teríamos que tentar pegar a chave com o papai. Mas como? ele não deixava essa chave por nada na vida.

Esperei ele dormir e entrei em seu quarto e peguei a chave. A cena que presenciamos foi de arrepiar. Nunca em minha vida eu imaginei me deparar com aquilo: uma mulher de aproximadamente 30 anos, amarrada numa cadeira, muito magra, abatida, chorava muito.

Meu mundo caiu, meu herói, meu amigo, não poderia ser o responsável por aquela atrocidade.

 

A mulher amarrada estava há dias sem comer ou comendo o mínimo para perder peso, muito magra e desidratada. Sua intenção era deixá-la só pele e osso, ele a mataria, esquartejaria e trituraria os ossos, não restando quase nada para o descarte. Assim elas evaporavam da face da terra. Descobri isso da pior maneira possível. Aquela oficina cheirava podre e produtos químicos, provavelmente para evitar a infestação de animais que poderiam ser atraídos por restos humanos. Infelizmente a polícia técnica constatou o que acontecia ali, que meu pai era o responsável por todos os desaparecimentos das mulheres que aconteceram nos últimos anos e a maneira que seus corpos eram decompostos.

 

Meu pai tornou-se meu pior pesadelo. Minha vida era um paraíso e fui expulso, minha inocência foi arrancada, destruída sem piedade. Passei a ver as coisas como elas realmente eram. Sabendo o que era bom e o que era um belo terror.

 

Juliana Duarte Honorato e Imagem de Neyla Cristina
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 10/11/2023
Reeditado em 10/11/2023
Código do texto: T7928837
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.