O TREM QUE ME ATRAVESSA - CLTS25
Durante aquela tarde de abril, quem estivesse pelos arredores da Candelária ouviria os gritos do povo e as palavras de ordem que as caixas de som faziam ressoar por boa parte do Centro do Rio.
Sentado num bar da Cinelândia, Humberto escutou o discurso convicto de FHC, os arroubos idealistas do jovem Dante de Oliveira, a fala manhosa de Martinho da Vila, a voz cava do sindicalista Lula da Silva. Enfim, um sem número de políticos e artistas que reivindicavam as “Diretas Já!”. Através do copo de chope vazio, o homem observava a águia do Theatro Municipal, que estendia suas asas de ouro contra a severidade do céu plúmbeo, onde se avolumava tremenda cumulonimbus.
— É bom mesmo que caia um pé d’água! — dizia para si. — Só assim para esses comunistas caçarem o caminho de casa.
Levantou-se, pagou a bebida e caminhou para o seu apartamento, ali perto. Quem o visse de longe sequer notaria que monologava em sussurros, como descobrisse segredos a um interlocutor pessoalíssimo. Veriam, só, a silhueta esguia e as pernas compridas a comerem os espaços até o prédio.
Chegando, cumprimentou o porteiro com um grunhido e tomou o elevador.
Dir-se-ia que a mobília velha, da qual se desprendia forte odor de madeira, retinha em si a própria alma daquele apartamento. E como um ídolo a ser perenemente cultuado, o espadim de oficial militar exibia-se na parede. O asseio do ambiente denunciava a boa escolha da nova doméstica, certa nordestina que chegara, fazia alguns meses, ao Rio.
— Já voltou, seu Humberto? — espantou-se a doméstica. — Ainda nem comecei a janta.
— Não se preocupe, Elvira. Estou sem fome. Quando terminar a limpeza, já pode ir.
— Oh, que patrão mais bonzinho eu tenho, minha gente! — alegrou-se. — Mas você vai comer, sim. Onde já se viu? Vou deixar um lanchinho em riba da mesa.
O homem a observava arranjar a refeição. Em pouco tempo, tal presença jovem, com suas doces investidas de caráter, derruíra boa parte daquele monumento de rabugice.
Humberto foi à janela e viu, na rua, uma concentração de manifestantes. Aquele entusiasmo vivaz, em conjunto com o perfume da doméstica, inspirava-lhe qualquer coisa de renovação, varrendo para longe (ou para debaixo do tapete) os sentimentos incrustados, antigos, de oficial reformado, entusiasta da Revolução de 64.
Mas já se haviam passado duas décadas. A glória no campo de guerra da burocracia, sonho antigo, revelou-se uma quimera inalcançável, preso que estava à frustração de seus cinquenta e seis anos sem louros e sem amor. Ou talvez um amor tirânico e bem peculiar.
Ainda diante da janela, Humberto estendeu a visão para as copas verdejantes da Praça Paris. Rompendo as cortinas do tempo, ele visualizou as arquibancadas ao longo da praça, onde famílias eufóricas agitavam bandeirolas auriverdes, onde moços e velhos vertiam lágrimas de sincera emoção patriótica. Sobre a Avenida Beira Mar a marcha dos militares avançava com tal impetuosidade, que se poderia atribuir-lhes o desejo de romper o asfalto com as solas dos coturnos. E, por fim, escutou-se o maior delírio popular: risonho, distribuindo simpáticos acenos, Getúlio Vargas desfilava em carro aberto. Ao lado do pai, Humberto contava apenas doze anos; via extasiado a festa que, com toda a sua pompa e ruído, mais parecia um eco daquele brado forte ouvido às margens do Ipiranga. Era 7 de Setembro de 1940. Tempos remotos... Humberto afastou-se da janela com os olhos marejados.
— Prontinho, meu branco. O rango tá servido.
Ele tomou lugar à mesa e pôs-se a comer o sanduíche lenta e silenciosamente.
— Que homem mais calado! — exclamou Elvira. — Ah, já sei como fazer você virar um tagarela. Quer ver?
Humberto sequer desviou o olhar dos farelos de pão que caíam no fundo do prato, mas nutria secreta curiosidade sobre o que a doméstica aprontava.
— Nossa... — ela começou, com voz de afetada comoção. — Deu para escutar daqui o Luiz Inácio discursando. Já te falei que ele é aparentado de um primo meu, lá de Pernambuco?
— Já. Quatro vezes.
— É um homem do povo. Tão humilde... Muito gente boa.
— E nunca foi preso à toa — sorriu Humberto.
— Ah, e não é que você também ri? — Elvira se divertiu. — Só assim, mesmo. E pare de mangar do meu Lulinha. Ele ainda vai ser presidente. Escreva o que tô dizendo!
Acabado o lanche, Elvira despediu-se.
Humberto cerrou as persianas, apanhou a bolsa de sangue, coisa secretamente guardada, e fechou-se no quarto. Parou diante do trem de brinquedo.
Tratava-se de uma miniatura robusta, feita em metal, com locomotiva e alguns vagões presos a ela. O conjunto descrevia voltas completas sobre os trilhos em círculo.
Aquele trem já não era mistério para Elvira. Ela, apesar dos seus vinte e cinco anos, por vezes deixava-se hipnotizar pelas voltas intermináveis do gracioso brinquedo. Fato era que jamais o vira em repouso.
— Esse trem não para nunca? — perguntou certa vez.
— É um mecanismo antigo, coisa dos anos quarenta — respondeu Humberto. — Você não vai entender.
— Hum. Tá bem, sabichão. Não pergunto mais nada.
— Duvido muito.
— Ah, é?! Vou ficar caladinha e você vai descobrir que está errado.
Por uns instantes, Elvira emudeceu, observando o trem. A explicação de Humberto foi eficaz em persuadi-la de que nada havia de estranho com o brinquedo. Ainda com os olhos pregados a ele, algo lhe chamou tanto a atenção, que seu temperamento sanguíneo fê-la quebrar a promessa de imediato.
— Quem é Dora? — perguntou, apontando para o nome riscado sobre um dos vagões em movimento.
— Ninguém.
— Como “ninguém”? Deixe de segredo! Anda, conte pra mim!
E foi neste momento que a voz gritou na mente de Humberto: “NÃO DIGA NADA! NÃO DIGA!”. E ele silenciou.
— Vamos! Me conte! Me conte! — a doméstica sacudia-lhe o ombro, numa teimosia quase infantil. — Não seja assim, por favor.
E a voz dos pensamentos reafirmava, severa: “NÃO DIGA, HUMBERTO!”. Mas Elvira insistia; a cada sacudidela que a moça imprimia ao ombro do outro, a estranha voz impunha a mesma ordem de silêncio. Essa confusão de insistências conflitantes chegou a tal paroxismo, que Humberto explodiu:
— Cale a boca! Não vou falar nada!
Tremenda foi a surpresa de Elvira. Ela recuou alguns passos, espantada. Já se havia habituado, era verdade, com a costumeira grosseria de Humberto; aprendera a não levar para o lado pessoal. Nunca havia sido vítima, por outro lado, de um daqueles transportes de fúria.
— Me desculpe, seu Humberto — falou baixo, num misto de embaraço e despeito. — Vou fazer o almoço.
— Olhe, escute aqui, Elvira — chamou o outro, recompondo-se — Não foi minha intenção...
Mas a moça saiu sem se virar.
Essas memórias ocupavam a mente de Humberto quando saiu do quarto com a bolsa de sangue já vazia. Felizmente conseguira desculpar-se com Elvira, e aquele desentendimento, tal como cola que necessita de calor extremo para grudar, uniu-os com força redobrada.
A chuva desabava na noite carioca. As manifestações — Humberto rendia graças ao Criador — haviam finalmente terminado. O apartamento penumbroso ainda guardava o cheiro feminino daquela que saíra há pouco. Um sorriso sutil arqueava os lábios do homem. Amava. O sentimento que tinha por soterrado em seus escombros pessoais estendera pequenas, discretas raízes, e agora desabrochava essa flor encontradiça nos jardins da juventude, mas que por vezes aparece nos canteiros rejeitados.
Na lavanderia, descartou a bolsa de sangue, ocultando-a cuidadosamente no saco de lixo. Desde a chegada de Elvira, Humberto vinha deplorando a vida de traumas antigos, de transfusões de sangue semanais, de se deixar consumir pelo maldito trem.
Como aquele, também era um crepúsculo chuvoso de abril, o de 1940, quando Humberto e Dora trocaram apaixonadas juras de amor sob a luz parca do quarto. O trem, que ele havia acabado de ganhar do pai da menina, circulava sobre o tapete alegremente, como se soubesse testemunhar a gênese de um grande amor.
Enquanto os namorados, em seus ingênuos e ardentes doze anos, estimavam-se no quarto, seus pais conversavam na sala.
Nesse cômodo elevava-se uma imponente estante de livros, que o pai de Humberto devorava quando saía da repartição pública. Engenheiro de formação, seus assuntos de interesse iam da eletrônica à anatomia humana; da religião à magia negra. Convencia-se de que, um dia, poderia realizar uma grande coisa com todo aquele conhecimento acumulado. Tal obsessão por livros e saberes bizarros resultou em separação. A mãe de Humberto os abandonou e saiu do país.
—Mas você não consegue adiar essa viagem? A situação na Europa está tensa, muito tensa — dizia ele.
— Sou um diplomata, homem. O que você esperava? O Brasil precisa se fazer ouvir nesse conflito, manifestar sua ação conciliadora.
— Estou com um mal pressentimento, meu primo...
— Ora! — exclamou o diplomata. — Que lenga-lenga é essa? Parece até que vou para o front combater os alemães... O pior que pode acontecer é Churchill me queimar com a brasa do charuto.
E foi com otimismo no coração que o diplomata e a filha Dora, graciosa menina loira, de cujas íris azuis irradiava-se profunda vermelhidão, sintoma de uma noite de muito pranto, foi com esse otimismo que embarcou para Londres. Humberto recusara a despedida; ficou no quarto, sentado no centro da linha do trem, o qual trazia em um de seus vagões o nome da amada, que a própria ali inscrevera. E o menino comprimia contra o peito a única lembrança deixada por Dora: um cacho de seu cabelo.
Quando o sol raiou na Cinelândia, Humberto se sentia particularmente feliz. Banhou-se, penteou os bastos cabelos grisalhos e atendeu o porteiro que lhe trazia o jornal. Acomodou-se ao sofá, abriu o periódico, mas o largou em seguida. Nada retinha sua atenção, exceto a agradável expectativa de ouvir soar a campainha.
— É ela! — exclamou, quando escutou o esperado toque.
— Hum... Tá cheiroso. Esperando alguém? — disse Elvira, quando Humberto lhe abriu a porta.
Ele olhou para o chão, encabulado, e nada respondeu. Tornou ao sofá, reabriu o jornal, elevando os olhos de quando em quando para a moça que fazia suas tarefas. Não pôde furtar-se à comparação: Elvira não possuía os modos discretos de Dora, que nascera nos domínios da alta política e recebera a pátina do glamour da diplomacia. Mas isso pouco importava a Humberto. A simples migrante pernambucana matou sua paixão de menino.
Metida num vestido de estampas florais que lhe caía até os joelhos, Elvira mostrava-se uma figura de grande atração. E o homem ficou ensimesmado: aquela mulher tinha graça e formosura; decerto muitos pretendentes, jovens e viçosos, requisitavam-na. A dura realidade o fez trancar o semblante. “Não passo de um velho idiota” — pensava — “Esse amor é uma tolice”. E a voz familiar em sua cabeça confirmou a conclusão.
Olhou para o jornal, viu as fotografias das manifestações, e o antigo ódio dominou-o. O governo militar estava no fim; suas aspirações, sepultadas definitivamente.
Elvira converteu-se então numa presença detestável. Sua carga horária foi reduzida à metade. Nos dias seguintes, enquanto ela trabalhava, Humberto permanecia trancado no quarto do trem. A doméstica sequer o chamava para o almoço; deixava tudo sobre a mesa e ia embora tristemente. E as terríveis reminiscências dominavam aqueles dias de Humberto.
Veio-lhe à memória a noite do 7 de Setembro de 1940. Após o desfile da Praça Paris, o pai de Humberto pô-lo no carro e seguiu para o Palácio do Catete, onde o presidente recepcionaria o alto funcionalismo. E foi quando o menino, ocupando um solitário banco no jardim do palácio, mantinha os olhos perdidos na lua, que seu pai lhe apareceu com o rosto sombrio. O homem sentou junto ao filho e depositou em seu ombro um pranto sentido e copioso.
— São coisas da guerra, meu amigo... — consolou-o um colega de repartição.
Logo em seguida, o próprio Getúlio chegou para prestar-lhe as condolências.
— Ele não era soldado, mas deu a vida pela Pátria no serviço diplomático. Mas a menina... Só doze anos... Vocês deverão ser fortes diante dessa grande fatalidade.
E o pequeno Humberto sentiu a mão rechonchuda do presidente sobre sua cabeça.
Ele cresceu, fez-se oficial nas Agulhas Negras, mas a paixão por Dora converteu-se num fardo a que se obrigou carregar. A nenhuma outra mulher entregou a flor de sua juventude. À menina loira, vítima dos bombardeios de Londres, naquele mesmo 7 de Setembro de 1940, resolveu se dar completamente. Estava morta, mas Humberto se comprometera em tê-la viva dentro de si e ser-lhe fiel até o seu último instante. Sabia como fazer isso; era arriscado e doloroso, mas fez.
Viveu uma estável e, à sua maneira, feliz união com a amada morta, até que Elvira surgiu.
A doméstica rompeu a antiga paixão, era fato, mas Humberto estava pronto a reatá-la. E foi assim que a moça tocou a campainha do apartamento pela vez derradeira.
— Bom dia — ela cumprimentou com receio, ao entrar.
Humberto bateu a porta e ordenou:
— Sente-se.
Elvira colocou-se a um canto do sofá, olhando temerosa para o homem.
— Não preciso mais dos seus serviços. Hoje será o último dia. Arrume tudo, faça o almoço e vá. Aqui está o seu pagamento.
O patrão estendeu o maço de notas, mas a outra não o apanhou. Só cobriu o rosto e pôs-se a chorar.
— Qual é o significado disso? — inquiria. — Essa é a vida de todos nós. Altos e baixos. Não é motivo pra choramingar.
Ele procurou manter-se firme, mas aquele pranto lhe partia secretamente o coração. Já estava em vias de revogar sua ordem radical, quando ao semblante comovido impôs-se uma tal fúria, que Elvira, ao ver o patrão, estremeceu.
— Então, sua vadia, você acha que vai roubar o meu homem? — falou Humberto, com um discreto timbre feminino que fazia coro à sua voz habitual. — Minha história com ele já dura quarenta anos. Ninguém tem o direito de atrapalhar. Isso acaba agora!
Ele foi até o espadim de oficial e arrancou-o da parede.
— É bem capaz que uma negra da ralé vá conseguir tirar Humberto de mim! — e ameaçou Elvira com a arma.
A moça fugiu para o corredor, movida pelo objetivo de se proteger em algum dos quartos, mas as portas estavam trancadas. Girava as maçanetas, chutava, esmurrava as portas: tudo era inútil. Tencionou escapar do apartamento, porém Humberto já se interpunha no caminho da saída. Mesmo diante das circunstâncias adversas, Elvira investiu contra o homem, esperando que resvalasse pelos braços dele e alcançasse a fuga dali. Mas os membros fortes retiveram-lhe o impulso, e a pobre foi lançada de volta ao corredor, caindo à porta do quarto do trem.
— É aqui que você morre, vagabunda.
A empunhadura do espadim atingiu a testa de Elvira, cujo rosto imediatamente cobriu-se de sangue abundante e lágrimas.
— Humberto... — ela chorava. — Por favor...
— Oh, a negrinha quer dizer as últimas palavras.
— Eu... Eu... — a moça lutava contra o pranto.
— Anda! Desembucha!
— Eu te amo, Humberto! — gritou.
O outro emudeceu ao escutar essas palavras. Ouvira-as há mais de quarenta anos pela voz de Dora; prendera-se a tal declaração, apaixonara-se. Mas quando Elvira as proferiu, o encanto antigo perdeu toda sua força e um influxo novo aqueceu-lhe docemente o coração.
Daquela mente confusa, onde duas personalidades travavam luta renhida, Humberto reassumiu o controle.
— Deixe Elvira fora disso, Dora — falou para si. — Essa questão cabe só a nós dois.
Destrancou o quarto do trem e foi resoluto em direção ao brinquedo. “NÃO FAÇA ISSO! NÃO SE ATREVA, HUMBERTO!” Nada poderia, porém, demovê-lo do propósito. Arrancou com fúria o trem dos trilhos e até estes lançou pelos ares. Erguendo o tampo por sobre o qual o brinquedo funcionava, faíscas e pequenas explosões escapavam do compartimento antes oculto.
Quando tudo foi destruído, Humberto levou a mão ao peito e caiu abatido pela dor lancinante.
Elvira entrou no quarto, apavorada. O homem debatia-se violentamente; seus olhos reviravam, saliva espumava pelos cantos da boca. Hedionda visão. Mas nada poderia ser tão terrível quanto o que veio em seguida: das narinas, da boca e dos ouvidos saíam jatos de fumaça negra, como chaminés de uma locomotiva. Tamanho foi o desespero de Humberto, que, num brevíssimo instante de lucidez, apanhou o espadim caído ao lado e o segurou contra o chão, na vertical — a ponta aguda na direção do pescoço. Olhou a moça nos olhos:
— Também te amo, Elvira — e deixou-se cair sobre o gume fatídico.
A doméstica permanecia embasbacada. O homem amado estava morto. Do compartimento, elevava-se uma fumaça tênue, e Elvira, quando olhou para dentro, não evitou o grito de verdadeira perturbação.
Ao centro de um circuito elétrico, de cujos fios corriam juntos vários tubos para a circulação de sangue, um coração pulsava debilmente na redoma de vidro. No canto do compartimento, dois cilindros faziam as vezes de pulmões e oxigenavam aquele sangue.
Se, em vez de fugir desesperada, Elvira pusesse o ouvido sobre o peito de Humberto, escutaria ainda um “tic-tac” doentio.
— O que a acusada diz em sua defesa? — o juiz pronunciou.
Os olhos de Elvira percorreram o tribunal: inúmeras feições severas fitavam-na ameaçadoramente. Quando se pôs a gaguejar a defesa desastrada, uma voz ressoou no plenário:
— Essa jovem é inocente!
— Ordem! — o juiz percutiu o malhete. — Ordem! Peço que a audiência não se manifeste.
— Sou eu o responsável pela morte de Humberto — insistiu a mesma voz, que então se revelou partir de um idoso.
Todos se voltaram àquele homem, que iniciou a explicação, no mesmo instante em que o juiz gesticulava uma ordem à segurança.
— O maior desejo dele era se unir a Dora. O trem compartilhava o seu organismo; todas as semanas era necessário que Humberto transferisse sangue novo ao mecanismo. Mas não era só isso. O sistema continha a alma de Dora. Os dois se uniram por meio da minha criação, o que envolveu engenharia eletrônica, cirurgia cardíaca e, sim, magia negra.
— Hum. E você quer mesmo que eu acredite nessa baboseira? — o promotor ironizou.
— É difícil acreditar; mas essa jovem não pode ser presa injustamente.
Puxou do bolso um saquinho de pano, abriu-o e dele tirou um cacho de cabelo.
— Vejam todos — e expôs aos presentes. — Foi através do cabelo de Dora que aprisionei sua alma ao trem.
— E o que o senhor é? Um feiticeiro? — debochou o juiz.
— Sou um homem que acredita na justiça, Meritíssimo.
Apesar da zombaria das autoridades, alguns presentes impressionaram-se com as estranhas exposições daquele idoso. O cabelo de Dora causou, também, grande espanto ao júri. O juiz, por outro lado, permanecia implacável.
— Mas me diga: como o senhor conheceu Humberto?
E o inquirido, empertigando o tronco, olhou ao redor com tranquila convicção e disse:
— Ele era meu filho.
Ato contínuo, um segurança passou-lhe o braço pelo pescoço e o levou para fora do plenário, desacordado.
Elvira percebeu encaixarem-se todas as peças. As palavras do idoso eram verdadeiras, e ela sabia que dificilmente poderia comprová-las. O juiz e o promotor cochichavam risonhos, lançando olhadelas furtivas à acusada, que naquele momento sentiu muitas saudades do Nordeste.