ABELHAS NA CABEÇA - CLTS 25

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Tive um pesadelo naquela noite. As pessoas escrevem naquela noite em seus contos e o leitor não sabe que noite era. Eu também só sei que foi naquela noite, não sei qual. É quando começa a história.

Acordei Odete.

— Mulher, tem um bicho morto em nossa casa.

— Não se assusta, Murilo. Foi um peido que eu soltei. Levanta que tá na hora de ir pro trabalho

O casal, quando se ama, aguenta o peido de cada um. Até peida debaixo da coberta e diz para o outro ir lá embaixo ver uma coisa, mas é só pra sentir aquele fedorão. Sacanagem! Mas eu já não aguentava mais aquela peidorreira, me levantei, mudei de roupa, joguei uma xícara de café e um sanduiche pra dentro do estomago, peguei o meu velho fusquinha e segui pra obra de um prédio, onde trabalho como capataz. Mal eu entro no canteiro de obras, um trator desgovernado, abalroou meu carro.

O lado esquerdo do meu crânio apenas rachou. Algumas costelas quebraram, quadril esquerdo também quebrou e o meu braço esquerdo foi esmagado.

Quando acordei no hospital todo enfaixado, a primeira coisa que perguntei foi;

— E ele, como está?

— O operador do trator não teve ferimentos graves. – respondeu a enfermeira.

— Não. Quero saber como o meu fusquinha ficou.

— Murilo, você quase morreu e tá aí preocupado com o carro! – reclamou Odete.

Tentei tocar nela com a mão esquerda e percebi então, que tinha só um toquinho de braço pendurado no meu ombro. Um toco enrolado com ataduras. A realidade era meio confusa e não me importei de ficar sem braço. Um zumbido soava em minha cabeça. Em seguida comecei a xingar Odete, como se ela fosse a culpada de tudo de ruim na minha vida, principalmente daqueles peidos fedorentos. Para me acalmar, a enfermeira aplicou uma injeção.

Não sei quanto tempo dormi. Quando acordei, vi a enfermeira consultando um prontuário. E um palhaço parado na porta, com um sorriso besta na cara pintada, a roupa de arlequim e um chapéu de cangaceiro. Fiquei irritado com aquele cara esquisito.

— Manda aquele palhaço ir embora.

— Eu também acho que o doutor Queirós é um homem bem divertido. – respondeu a enfermeira.

— Não estou falando do médico, estou falando dele – apontei com o dedo o sujeito na porta.

A enfermeira torceu a cabeça, olhou pra porta e voltou a me encarar.

— Não tem ninguém ali.

— Não tem? Estou vendo coisas? Quer dizer que meu braço não desapareceu?

— O seu braço ficou muito ferido e os médicos tiveram que amputar.

— Como, não tenho braço, se estou sentindo coceira na mão esquerda?

— É uma ilusão dos sentidos. É a síndrome da mão fantasma.

— A Odete esteve aqui?

— Não. Faz dias que ela não aparece.

— Estou sentindo o fedor dos peidos dela

— É porque o senhor cagou no pijama. Fique quieto que já vou limpar.

***

Quando fiquei um pouco melhor, me mandaram para casa. Comecei a implicar com Odete. Tudo que ela fazia me deixava irritado e certa vez atirei o prato de comida nela. No dia seguinte ela disse que iria me deixar. Que continuaria cuidando de mim, das minhas contas, das minhas finanças e providenciaria tudo que eu precisasse, afinal, ganhei uma boa indenização e aposentadoria por invalidez.

Ela contratou uma enfermeira, uma cozinheira/arrumadeira e foi embora. Por um lado, fiquei triste, por outro, fiquei aliviado por ficar livre dos peidos dela. Eu já era considerado um inválido. Minha cabeça não tava boa, sentia um zumbido em meus ouvidos, era como se houvesse um enxame de abelhas dentro do crânio.

Ainda não podia me levantar, os quadris e as costelas doíam. Certa manhã, acordei com uma boneca de pano sentada na beira da cama. Uma grande boneca de olhos azuis, estranbelhada. Achei que alguém estava fazendo uma brincadeira e eu imaginei que fosse Odete. Com a única mão que eu dispunha, peguei-a pelo pescoço e sacudi

A boneca começou a gritar e apertei com força, mas a coisa safou-se com um safanão. A vista clareou e vi que era a enfermeira. Isso prova que minha cabeça estava em cacarecos. Depois dessa, Odete trocou a enfermeira por um enfermeiro, um sujeito grande e largo como um guarda-roupas. O nome dele era Valdemar, mas eu o chamava de Nanico, só para chatear. Nanico é teu braço, respondia ele.

Nanico gostava de ler e ele lia para mim, embora eu não ouvisse o que dizia por causa daquele zumbido. Engraçado que o zumbido aparecia quando ele lia.

— Conhece a história do pequeno príncipe?

— Não gosto dessas histórias pra criança.- respondi, entediado. — Quero assistir um filme com o Izvazeneguer, aquele do Conan.

— O médico proibiu o senhor de assistir filme. Algumas imagens podem servir de gatilho pra despertar a sua raiva.

— Me sinto calmo como um lago.

— Esse lago deve ter um monstro nas profundezas.

Não gostei da ironia e mudei de assunto, ou quase.

— Você gosta de pescar?

— Sim. Será que a lua ta boa pra pescar?

— Não sei, nunca pesquei lá.

***.

Semanas passaram e como fui bem-comportado, Odete dispensou Valdemar e contratou uma fisioterapeuta para eu recuperar o movimento dos joelhos e quadris. Bruna usava uma legging que deixava em evidencia, as linhas de seu corpo escultural e eu achava que era só para me provocar.

O palhaço voltou a me incomodar, parado lá e rindo, assistindo Bruna flexionar minhas pernas, movimentar meus quadris. Melhorando as dores, com o passar dos dias, ela aconselhou-me a caminhar, começar com curtos passeios pela calçada.

Certa manhã, não sei qual, não importa, saí para caminhar pela calçada, apoiando-me numa bengala que eu não sei quem me deu. A vizinha em frente, do outro lado da rua, estava regando suas plantinhas quando me viu.

Imagina a cena, digna de um filme da franquia de Premonição;

Dona Suely larga o regador com cuidado, ergue o braço e com um sorriso, acena e me chama;

— Seu Murilo! –diz ela e começa a atravessar a rua, mas para ao ver um carro se aproximando. Na calçada de cá, tem um garoto dos infernos empinando pipa com linha de cerol. O carro passa, pega na linha que derruba a velhinha. Apreensivo, corro, aliás, ando mais rápido que posso para ela. Vejo seus cabelos grisalhos sujos de sangue. Seguro-a no meu peito com a única mão e braço que me resta. Ela abre os olhos e pergunta:

— Seu Murilo, meu filho depila a bunda. O senhor acha que ele é gay?

— Dona Suely, quem limpa e arruma a casa, está esperando visita.

A velhinha solta o último suspiro e morre nos meus braços, aliás, braço. Ouço vozes, sirenes apitando, minha vista fica vermelha, as abelhas acordam.

Alguém me sacode pelo ombro.

— Senhor, larga a cabeça, larga a cabeça!

Só então, vejo que estou segurando a cabeça da dona Suely, o corpo dela está do outro lado da rua.

Alguém me leva para casa. Sinto algo apertando o peito. Enquanto dona Maria, a cozinheira, telefonava para Odete, sentei-me no sofá. Olhei para o peito e vi a dentadura de dona Suely grudada na minha camisa. Tirei com cuidado e pedi para Maria entregar para a dona dos dentes. Minha vista começa a ficar vermelha e ouço as abelhas fazerem zum, zum na minha cachola. O palhaço tinha agora, a cara da Odete. Peguei a bengala que alguém havia trazido, e comecei a quebrar tudo dentro de casa.

Um vulto fantasmagórico aplicou uma injeção no meu braço bom, inteiro, vivo e faceiro, e apaguei. Acordei em outro lugar, paredes brancas poucos móveis, algumas pessoas aqui e ali, enfermeiros, médicos. Me vejo sentado numa cadeira de rodas. Um homem de branco curvou-se na minha direção.

— Como o senhor está se sentindo hoje?

— Onde estou? Quem é o senhor?

— O senhor está numa clínica de internação psiquiátrica. Sou o doutor Vladmir Frankenstein, Vlad para os íntimos.

— Frankenstein?

— Não se assuste, sou apenas descendente do Victor.

Logo entendi que era um manicômio camuflado. Achei que estava precisando de tomar alguns remédios para acalmar os nervos. Se conseguisse me curar, logo estaria de volta a minha casa. Os dias foram passando e comecei a gostar dali. O tratamento era bom, enfermeiros e médicos eram bons, a maioria dos pacientes eram calmos, só que alguns achavam que eram outras pessoas, como Napoleão, por exemplo. Tinha um que precisava estar amarrado o tempo todo, ele dizia que era o doutor Hannibal Lecter, o psicopata e canibal do filme, O Silencio dos Inocentes. Ele vivia chamando Clarice Sterling.

Um dia conheci Merlin, o mago, profeta e conselheiro do rei Arthur da Távola Redonda. O nome real dele não sei. Ele dizia que sabia tudo, que via o futuro. Resolvi fazer um teste.

— Posso lhe fazer algumas perguntas?

— Faça.

Havia tantas coisas que eu queria saber, que não sabia por onde começar. Escolhi uma.

— Gostaria de saber algo sobre o meu futuro.

— O seu destino é traçado de acordo com alguns eventos aleatórios normal no sistema em que você vive, alguns deles você pode controlar através de decisões corretas, visando um futuro melhor.

Merlin, o lógico.

— O que o meu horóscopo diz?

— É uma bobagem acreditar em horóscopo! Fico espantado quando me deparo com alguém em pleno século vinte e um que não consegue extirpar de si o temor e a ignorância ancestral! Como algumas pessoas ainda acreditam que os planetas são deuses e que eles governam suas vidas?

— Gostaria de saber quando o mundo vai acabar.

— A catástrofe pode ser provocada pelo próprio Homem. Degradação do meio ambiente, guerra, e o mau uso do conhecimento científico. A tecnologia, o conhecimento científico, avança rápido, mas o sistema social é imperfeito e os valores morais são ignorados. A distância que separa a Igreja da Ciência separa o homem da sua verdadeira natureza. Precisa o apocalipse acontecer para depurar a humanidade?

O tom de voz de Merlin foi duro e eu fiquei a pensar se aquela pergunta era hipotética ou uma advertência. Resolvi mudar de assunto.

— Existe vida fora da Terra?

Merlin meteu a mão no bolso e pegou uma bala de menta. Calmamente tirou o invólucro. Tinha a lerdeza de uma lesma. Tive a impressão de ouvir a risada do palhaço em algum lugar daquele hospício.

— Você existe, não existe?

— Sim, claro! Mas, não entendi o que estais a dizer.

— Conhece a piada da minhoca?

— Não.

— Duas minhocas conversavam debaixo da terra. Disse uma: —Ouvi dizer que existe vida fora da terra. A outra respondeu: — Só pode ser vermes com duas cabeças!

Merlin começou a rir, ficou vermelho, parecia que ia explodir. Não achei nada engraçado, mas ri da mesma forma, só para ser solidário. Depois ele se acalmou. Fiquei a pensar no significado daquela parábola, mas logo desisti. Resolvi fazer outra pergunta.

— Sempre me preocupei com meus atos aqui na Terra e com meu futuro na eternidade. Quando eu morrer irei para o paraíso?

O mago inclinou-se e começou a se sacudir, parecia rir, mas fez gestos estranhos até que entendi. Com a mão aberta bati nas costas dele. Ele havia se engasgado. Cuspiu a bala, respirou fundo e relaxou, embora o rosto continuasse avermelhado.

Merlin, o Imperfeito.

— Estou te dando à oportunidade de fazer perguntas importantes e você me vem com asneiras! Inferno e Paraíso não são lugares. - respondeu de mau humor. Para não o aborrecer mais, procurei mudar de assunto.

— Bem, vejo que o senhor sabe de tudo, gostaria de saber se têm outros poderes. Poderia fazer alguma coisa sobrenatural? Fazer aquela mesa voar, por exemplo.

— Estou de férias, portanto, não farei mágicas nem milagres, e também por questões morais me abstenho de tal coisa.

Merlin, o Justo.

. — Você já me fez muitas perguntas. Não vou responder a mais nenhuma.

— Só mais uma.

Ele olhou para mim como se fosse me transformar num micróbio. Após uma pausa, disse:

— Está certo. Vou lhe dar a chance de responder a sua última pergunta se você resolver um enigma. É muito fácil!

— Pode fazer.

— O que é que, de manhã anda com quatro pés, meio dia anda com dois e à tarde com três?

Merlin, a Esfinge.

— Essa é muito fácil! É o meu vizinho Juvenal, semana passada ele saiu de manhã com o carro, meio dia voltou a pé, por que o carro estragou, no caminho machucou o pé e voltou para casa à tarde, de bengala.

O homem olhou-me, espantado.

— Errado! É o ser humano. Manhã é a infância, quando ele engatinha, meio-dia é a fase adulta, quando anda com dois pés, e tarde é a velhice, quando anda com dois pés e uma bengala.

—Ah! Tá!

— Faça a sua pergunta, vou continuar o meu passeio recreativo.

— Sabe quando eu vou morrer? É que eu não quero estar lá quando isso acontecer.

— Um dia a gente dorme e quando acorda, descobre que tá morto. Bem, vou terminar o meu passeio matinal. Até outro dia,

Merlin afastou-se, caminhando encurvado pela idade, e com uma mancha amarela no traseiro.

***

Duas noites depois, resolvi dar uma caminhada para conhecer o lugar. Os enfermeiros não deixavam ninguém vagar a noite pelos corredores e eu procurei andar pelas sombras e em silêncio. Passei por corredores vazios e portas trancadas. Encontrei uma escada que descia por um vão estreito e no fim dela tinha uma porta, e por baixo dela aparecia uma nesga de luz e foi por aquele vão que escapou um grito abafado. Sem hesitar, torci a maçaneta, abri a porta e entrei num cômodo largo, fedendo a produtos químicos.

Sobre uma mesa estava uma mulher seminua, amarrada e ao lado de pé, um homem alto, usando jaleco branco, com uma seringa na mão. Poderia ser um médico aplicando remédio em seu paciente, mas o homem usava uma máscara de porco e considerei que isso não era normal. Achei que ele fosse o Vlad Frankenstein e que faria uma experiência macabra com a moça.

Sem hesitar, de novo, peguei um taco de basebol, sempre tem um nos filmes e livros, e taquei na cabeça do caramanhão. Ele caiu desmaiado, largando a seringa que rolou para debaixo de um armário. A máscara soltou-se da cabeça dele e com horror, vi que ele tinha cara de porco, aquelas orelhas compridas e nariz de tomada. Corri para a moça e comecei a desamarrá-la.

— Quem é você? - perguntou ela, assustada.

— Murilo Xavier, um novo paciente. E você?

— Sou enfermeira. Me chamo Jasmine. Não sei como vim parar aqui, sou de outro conto do Antônio.

— Que conto?

— Anomalia.

— Eu também sou de outro conto. Não importa, temos que fugir. Vamos.

Desatei a garota das cordas e corremos para a porta, mas ela já estava trancada. O homem havia recuperado os sentidos e apertado um botão que trancava a porta. Ele deu um sorriso sinistro de suíno. Jasmine agiu rápido, contornou a mesa, pegou um vidro com um liquido, do armário e atirou na cabeça do sujeito.

O frasco quebrou, inundando a cabeça do brutamontes com ácido sulfúrico. Ele caiu e ficou esperneando, enquanto Jamine, aliás, Jasnime, Janine, apertava o botão e abria a porta. Fugimos daquele porão infernal. A administração acordou e tomou providencias para abafar o caso e o resto seguiu normal.

***

Hoje, estou aqui, escrevendo essas memórias, com uma mão só, batendo nas teclas do notebook. Não ouço mais as abelhas e nem vi mais o palhaço. Agora tem um lagarto me olhando pela janela. Ele não ri, mas pisca os olhos e bate com a língua na vidraça.

TEMA; Terrir

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 06/11/2023
Reeditado em 07/11/2023
Código do texto: T7925976
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