* Adriana Ribeiro

 

     Era véspera de Natal no Sertão nordestino e uma atmosfera pesada pairava sobre a pequena povoação sertaneja de Lagoa Santa no extremo Norte do interior de Sergipe. As estrelas brilhavam no céu sem nuvens e uma brisa fresca se espalhava na paisagem noturna mas não dissipava os resquícios do calor inclemente que persistira durante o dia naquela região onde a seca castigava a terra. À atmosfera sombria daquela noite somava-se um clima de mistério sinistro, evocando o medo e o pressentimento de que algo terrível estava prestes a acontecer.

     No coração da pequena cidade, erguia-se a Paróquia centenária São Judas Iscariotes. Mais conhecida pelos moradores como a "Igreja dos Suspiros”. Uma construção antiga considerada por todos como mal-assombrada, pois, dizia-se que o espírito de um antigo sacristão de nome José do Patrocínio, vagava pelas sombras da noite, dentro e fora da velha capela, durante os dias de comemorações natalinas desde que fora amaldiçoado pelo crime cometido por causa de um amor não correspondido.

     Apesar das especulações e crendices da população mais antiga, a arquitetura da velha igreja era bastante admirada e valorizada, pois, remetia ao período da chegada dos primeiros colonizadores ao Brasil. E, seja por seu passado histórico ou pela estrutura física forte e imponente que a mantivera de pé apesar do completo abandono por mais de meio século, aquele ano a velha construção recebera especial atenção da Unesco e fora contemplada com um moderno projeto de restauração.

     Por essa razão, a festa de inauguração e reativação dos serviços religiosos da renovada Paróquia estavam marcadas para aquela noite, com a celebração oficial da Missa do Galo, uma comemoração tradicional da cidade em louvor ao Padroeiro.

     O sino já havia tocado várias vezes naquela noite para convidar a comunidade paroquiana e já passava das 23 horas quando o Prefeito e demais autoridades políticas convidadas fizeram uso da palavra sobre o palanque armado para a festa de inauguração em frente ao prédio restaurado.

     O último a discursar foi o novo sacerdote escolhido para administrar a paróquia. Um jovem baiano, de cor preta, recém ordenado na capital sergipana e totalmente alheio às superstições locais, pois ainda não tivera tempo para se inteirar das maledicências e crendices que circulavam naquela povoação interiorana.

     Ao final das falácias palanqueanas, o Padre Jaime Trindade - era assim que se chamava o novo religioso - convidou os fiéis a entrarem na igreja onde a missa comemorativa seria celebrada. Porém, assim que todos se acomodaram nos assentos de madeira e o padre tomou o seu lugar no altar de onde a estátua do famoso apóstolo estendia seu “olhar de arrependimento” sobre a nave, uma estranha ventania tomou conta da praça e invadiu o pequeno salão paroquial, fazendo as velas nos polidos castiçais se apagaram misteriosamente e tudo ficar escuro.

     Um grande alvoroço começou a se formar e muitos fiéis ali presentes disseram sentir uma presença maligna no ambiente. De repente uma jovem mulher, quase uma adolescente, levantou-se em meio à multidão e dirigiu-se ao altar, onde parou diante da mesa e voltou-se para o salão começando a gritar e gesticular apontando com muita aflição para um homem alto e magro que adentrava à igreja trajando as mais simples vestes talares da Ordem dos Franciscanos e se dirigia em direção ao altar com o rosto parcialmente encoberto pelo capuz do manto religioso.

     Tudo isso parecia acontecer como se fosse em câmera lenta. As velas se acenderam como que por milagre e quando os olhares que acompanhavam o recém-chegado finalmente miraram o altar da igreja, a comoção foi geral.      O susto e o medo arrancaram exclamações uníssonas de terror tão intensas que algumas pessoas chegaram a desmaiar, enquanto outras saíram correndo, se acotovelando e gritando pelas imensas portas, que agora pareciam estreitas devido ao desespero causado pelas cenas sobrenaturais testemunhadas.

     Apenas quem ficou - seja porque a curiosidade falara mais alto ou por haverem paralisado devido às circunstancias bizarras que vivenciavam - pôde acompanhar o desenrolar daquele drama, cujas personagens, ações e cenário mais parecia uma gravação de filme de terror.

     O espaço diante do altar reformado estava,então, completamente desconfigurado. A estátua e toda a estrutura do ambiente voltaram a ser os mesmos das antigas ruínas. O padre já não era o jovem negro baiano, mas um homem branco, de olhos azuis e cabelos loiros apresentando a tradicional tonsura dos frades franciscanos.

     E foi nesse momento em que o tempo parecia ter sido rebobinado em mais de seis décadas que as vozes dos três personagens do fatídico caso que assombrava o velho prédio começaram a ser ouvidas e acompanhadas por uma plateia atenta.

     __ José! Não faça isso! Eu imploro! Pelo amor de Deus não o mate!

     Era o grito aterrorizado da jovem que pedia ao invasor, agora identificado por todos como o Sacristão José do Patrocínio, para não matar o amor da sua vida, o jovem pároco francês que ainda segurava a Hóstia Sagrada suspensa no ar, pois a chegada intempestiva do noivo traído coincidira com o momento exato da celebração do ritual da Bênção eucarística, quando os pecados dos homens são perdoados pelo sacrifício do Cordeiro de Deus.

     __ Saia da minha frente sua traidora! Como ousa implorar misericórdia para esse impostor? Respondeu o espectro do jovem Sacristão empurrando a jovem Maria das Graças que, agora caída, suplicava soluçando que o noivo poupasse a vida do jovem clérigo por quem havia se apaixonado.

     __ Ele não fez nada José! Não é por culpa dele que eu deixei de te amar. Por favor escute-me! O Frei é inocente. Ele nunca me deu esperanças. Por Deus não o mate! Você vai se arrepender!

     __ Jamais me arrependerei por lavar minha honra com o sangue desse herege sedutor! Retrucou o assassino em som gutural, fazendo todos os presentes estremecerem e se arrepiarem dada a vibração do ódio que havia em suas palavras ameaçadoras.

     E foi assim que, em poucas passadas largas e apressadas o homem transtornado subiu os rústicos degraus que separavam a nave do altar e alcançou o Frade Pierre Martín que, sem esboçar qualquer reação de defesa, foi apunhalado três vezes diante dos olhos da insólita plateia formada pela jovem chorosa, a imagem do padroeiro e os horrorizados fiéis remanescentes.

     __ Por que está fazendo isso meu amigo? __ Perguntou o Frade enquanto caía no chão de pedras ensanguentadas.

     Ao ver o padre já sem vida, o noivo, possuído pelo imenso desgosto, ajoelhou-se e chorou copiosamente. Maria, vendo o amado morto, correu até o noivo, arrebatou o punhal de suas mãos inerte e desferiu um golpe fulminante no próprio peito morrendo na mesma hora. Olhando os dois inocentes ali sem vida, o jovem ficou transtornado e subiu correndo a escada que dava para a torre do sino. O relógio, coincidentemente, marcava meia noite. Horário das doze badaladas tradicionais.

     Quando finalmente o sino silenciou o ambiente estava em completo suspense.

     De repente um corpo se joga por entre as tábuas do assoalho de madeira do último degrau da escadaria. Era o pobre Sacristão com o pescoço amarrado e suspenso por uma corda. O som dos ossos se partido e dos suspiros exalados pelas testemunhas da cena macabra, reverberaram no recinto ao mesmo tempo em que uma rajada de vento forte saindo de dentro da igreja fechava as pesadas portas e tudo escurecia.

     Quando as luzes da igreja foram acesas novamente pelo mestre de cerimônias, as pessoas com os rostos ainda lívidos de terror não sabiam o que estava acontecendo. O terror havia tomado conta da vila, e a festa de inauguração, assim como a celebração do Natal se transformou em uma terrível batalha contra o sobrenatural.

     Os moradores, tomados pelo pânico, enfrentavam o desafio de apaziguar os próprios ânimos sem saber se haviam assistido a uma representação teatral ou a uma verdadeira manifestação de um espírito assassino furioso e descoberto o segredo sombrio que envolvia a origem do nome "Igreja dos Suspiros".

     E mesmo vários dias após o encerramento das festividades, as pessoas ainda especulavam sobre a lenda urbana envolvendo a triste história do triângulo amoroso formado pelo pároco da vila, o imigrante francês chamado Pierre Martin que havia tomado para si a noiva do Sacristão - José do Patrocínio - e Maria das Graças, que, sendo moça devota, ia diariamente à igrejinha, onde conheceu e se apaixonou irremediavelmente pelo jovem franciscano recém-chegado à comunidade.

     Diziam que foi a ameaça de uma iminente perda da amada que levou o devotado Sacristão à loucura e fez com que o mesmo, na noite que antecedia ao Natal, cometesse tamanha atrocidade no pequeno vilarejo. Alguns comentários mais impiedosos diziam que o jovem noivo ouvira da boca da própria amada que ajoelhara-se para confessar seus pecados na tarde daquele dia festivo para que pudesse comungar sem culpas na Santa Missa do Galo.

     Porém, quis o destino cruel que o noivo, a pedido do novo Pároco estivesse limpando o gabinete do confessionário naquele fatídico momento e acabasse por ouvir a confissão da jovem. Atormentado pelo que acabara de ficar sabendo perdeu a razão e alucinado pelo ciúme planejou a terrível vingança. O que ele não sabia, no entanto, era que a jovem Maria remoía-se de culpa pelo que sentia, mas nunca havia se declarado para o clérigo. E este, inocente, não fazia nenhuma ideia do infortúnio que se abatera sobre o casal.

     Desde então, quando o relógio da igreja badalava anunciando o horário de meia-noite, um lamento angustiado ecoava pelas paredes de pedra da pequena capela. Diziam ser o choro soluçante do noivo traído que, no auge do desespero acabava de cometer vários pecados mortais.

     A equipe cerimonial, logo após o ocorrido, assumiu a responsabilidade pelas cenas horripilantes testemunhadas, afirmando ser tudo ficção e arte. Mas a verdade era que ninguém sabia em quem acreditar. E, embora a Missa do Galo tenha prosseguido após as doze badaladas do sino, o povo sertanejo no fundo sabia que havia testemunhado um confronto entre o mal, o amor e a fé.

     Até hoje os moradores e visitantes da cidadezinha de Lagoa Santa se veem desafiados a fazer uma escolha: esquecer o passado atormentado e libertar a alma de José do Patrocínio por meio do perdão, ou ceder ao medo dos espectros sombrios que se abrigam nas sombras da "Igreja dos Suspiros" e aceitar que tudo não passou de encenação teatral.

 

     E você, o que escolhe?

 

 

 

 

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 04/11/2023
Código do texto: T7924684
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