Última Morada

 

Sabe aquelas histórias que você ouve quando criança? Histórias macabras e assustadoras! Então, tenho um “causo”, assim, para contar. Um que senti na pele e vi com esses “zóios” que a terra há de comer.

 

Mamãe era uma pessoa muito pitoresca, tinha gostos exóticos. Seu passeio preferido era andar pelos cemitérios, ler as lápides, saber quais os motivos que levaram as pessoas até sua última morada. E eu adorava esses passeios; devo ser estranha como a mamãe.

 

Em uma dessas andanças macabras, mamãe trouxe um vaso para casa. Era dourado com pedaços brancos e flores multicoloridas ao seu redor. Lindo e delicado. Minha mãe o colocou numa mesinha no centro da sala. Tinha muito ciúme daquele vaso, o qual, apesar de ter sido encontrado em um velho cemitério, era brilhante como se tivesse acabado de sair de uma loja muito cara. Com certeza era uma relíquia, ao menos para nós.

 

Apesar de ser apenas uma criança, sentia um aperto no peito sempre que ficava perto daquela relíquia. Um arrepio, um medo sem explicação. Às vezes ouvia vozes me chamando, risos fantasmagóricos, aquelas risadas de bruxas que víamos em filmes de terror que só passavam de madrugada na televisão, de tão assustadores que eram.

 

Um dia, mamãe estava fofocando com a vizinha, e eu, como adorava escutar a conversa dos adultos, estava atrás da porta de “zoreias” e “zóios” bem atentos à prosa das duas.

 

— Mirtis do céu, tu não sabe o que me aconteceu essa noite! — disse minha mãe.

— Se tu não me contar não vou saber mesmo né, mulé? — Ela foi até a porta, olhou para os lados, eu, bem safada, me escondi.

— Mulé, acordei essa noite às 3h15 da manhã, e quase tenho um cagaço, tu imagina que na porta do meu quarto estava a mesinha do centro da minha sala.

Pensei: as crianças devem ter tirado a mesinha do centro para brincar e não devolveram ao lugar.

— Também né! Seus filhos são uns pestinhas. — “Cês” acreditam que a bruxa da vizinha falou isso de mim e de meu irmão?

— Nada disso, não fala assim dos meus terroristas, só eu que posso xingar.

— “Tá” bom, desculpa! Vai, termina logo.

— Fui ao banheiro e, quando abri a porta, tive sorte que já tinha feito as necessidades. Sabe o que eu vi? A mesa do centro com o vaso que eu trouxe do cemitério estava interrompendo minha passagem. Gelei o corpo, esquentei o rosto, amoleci as pernas, meu cabelo arrepiou. Lembra o filme que a garota “revira o pescoço e os “zóios’’? Era eu, quando abri a porta.

— Cê tem que devolver o vaso! O dono veio atrás dele, só pode!

 

 

 

Hahahahaha! Saí de lá correndo e escondi o vaso maldito, enterrei embaixo da casa da vizinha bocuda. Quem manda falar mal da gente! Mamãe procurou pela casa inteira, nunca achou o vaso. Eu nunca abri a boca para dizer que escondi.

 

Meu prazer era escutar dona Mirtis rezando e pedindo a todos os santos que conhecia para que o capiroto a deixasse em paz. As portas da casa da bruxa se abriam e fechavam, as luzes acendiam, ela chorava e eu ria. Noite e dia, a casa da vizinha ganhou vida ou morte; aquela casa parecia mesmo a moradia da irmã do capiroto.

 

Hoje, depois que a vizinha cantou para subir, esperei todos irem embora. Seu enterro foi lindo, todas as vizinhas fofoqueiras do bairro vieram desejar um bom descanso eterno. E, eu, o que vim fazer aqui? Vim deixar um último presente à grande amiga da mamãe. Fui lá, desenterrei o precioso, comprei uma cola baluda e estou aqui colocando a relíquia em sua sepultura. Um tesouro desse tem que estar num lugar como esse, numa casa perfeita e na companhia de quem o merece.

 

— Dona Mirtis, prometo colocar algumas florzinhas sempre; eu juro!

 

 

 

Juliana Duarte Honorato e Imagem: Neyla Criatina Castor
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 03/11/2023
Reeditado em 03/11/2023
Código do texto: T7923643
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