Meia-Noite que Atormenta
Treze de outubro de dois mil e vinte e três. Um dia de sorte ou seria azar? Quantos números três podem estar num mesmo lugar?
Eu arrasto meu corpo rígido através da penumbra até a cozinha. A lâmpada pisca como um inseto. Com as mãos apoiadas na bancada, eu forço minha mente a se lembrar o porquê tinha ido até ali. A cabeça pendendo na diagonal, fitando uma sujeirinha no rejunte da parede. Meu cérebro se recusa a servir ao seu propósito, ecoando um grande vazio.
Um barulho no corrimão de metal da sacada me chama a atenção. Eu vou até lá. Devagar. Minhas pernas pesam tanto. Abro a porta e uma luz intensa atinge meus olhos desacostumados. Não era o sol. A lua redonda parecia estar perto demais da Terra, iluminando como um poste de mil watts. Não há nada na sacada. Deve ter sido apenas a imaginação, me pregando outra peça. Tem acontecido com frequência, isso de ouvir barulhos que não estão lá. Às vezes, é uma batida à meia-noite, uma voz às seis ou um gato miando às três. Logo que paro para escutar, apenas o silêncio se manifesta.
É sexta-feira, as pessoas deveriam estar fazendo barulho a esta hora, mas lá fora o vento frio canta baixinho entrando pela janela… uuuh! “Falou alguma coisa?” Delírio de uma mente ensandecida. Volto para a cozinha. Comer, era isso! Disponho os vegetais sobre a bancada. Da gaveta pego a faca grande, ela me reflete. Eu me vejo na superfície. Seguro o cabo com mais força. A mente sussurra “e se…”, e se? Eu repito. Confiro a lâmina. Está afiada. Vegetais. Um a um, os corto milimetricamente. Meu pensamento pesa enquanto a lâmina desce, de novo e de novo.
O telefone notifica, uma tempestade está chegando. O vento canta mais alto. Já era sem tempo! Acendo o fogo que brilha mais intenso quanto mais o encaro, se desviar os olhos, ele se apaga. Quero tocá-lo e sentir o calor até a pele arder. Sentir…
Uma voz chama meu nome. “São nove horas”, respondo em voz alta. O fogo continua aceso, não me trapacearam dessa vez. Invasão. Sem aviso, tudo está claro. A lua está dentro de casa. Protejo os olhos do seu brilho lancinante com os braços estendidos. Caio de joelhos. Meu corpo se dobra em direção ao chão. De repente, a luz se apaga e um som rompante anuncia sua chegada. Tremor. E se? Não. Não posso deixar que toque à meia-noite.
Eles estão vindo! Preciso silenciá-la antes que escutem os tambores da meia-noite. A voz chama meu nome. “Cale a boca!”, eu respondo. Vão nos encontrar. “Cale a boca!”. Ela implora uma vez mais. Agarro a faca na bancada. “Cale a boca!”. Eu não aguento mais te carregar. Não suporto mais esse peso me prendendo com grilhões invisíveis, marcando meus punhos e tornozelos. “Cale-se! É quase meia-noite. Eles estão aqui.” A tempestade violenta as janelas, sacoleja o telhado. Eu gargalho, em um urro animalesco. Eles estão aqui. Seguro a faca com força. É hora de você ir. E se… Estou no chão e ela segura a faca ensanguentada repetindo freneticamente “eles estão aqui”.