O POÇO DE COBRAS

1969:

“Eu vi o pássaro e a mulher de preto com furo nos olhos. Todos os dias eles param em minha janela. O pássaro é o corvo e a mulher, a mulher é a bruxa. Eu não sei se ela é uma bruxa ou a velha de pele enrugada que vem aqui todos os dias.

Os meninos, as meninas, eles dizem coisas sem sentido, eles se mutilam, eles gritam, o tempo todo.

Papai e mamãe me deixaram aqui, eu não sei por que, nem por quanto tempo, mas eu não vou mais esperar, a velha me protege e me chama todos os dias, ela me mostra o vale, o vale escuro, de fogo, mas ela é forte e eu serei forte. Eu não sou louca, a velha senhora já me mostrou tudo, eu vou embora com eles e os anjos negros que sentam aqui na minha janela.

Minha corda, meu banco, tenho que levá-los comigo, eu já estou indo.

Eu sinto uma nova brisa me invadindo, vou saindo daqui, agora, ela me carrega nos braços”.

A carta de Berenice Dickens fora encontrada sobre o balcão de jatobá envelhecido na sombria mansão Osbourne, alguns dias após ela dar cabo à sua vida, em um trágico enforcamento. O teor da missiva revelara assustadoras visões, medo, e perturbações de ordem mental, da menina que havia sido deixada naquele lugar; uma instituição para crianças com deficiência intelectual.

O tempo passou, mas as paredes escuras e avermelhadas e a grande escada de pisos destruídos da mansão, ainda pareciam resistir ao tempo. Um Antigo Junghans Wurttemberg 1892, enfeitava as paredes, embora não pudesse mostrar as horas.

Dede então, a sinistra residência continua abandonada e sua fama ainda permeia os arredores de Willowbrook.

No entanto, isso não fora problema algum para a peculiar Madame Eleonor, que, dentre outros propósitos, adquiriu a propriedade da velha mansão com um intento intrigante. Ela havia chegado a Willowbrook há pouco tempo e quase nada se sabia dela, sendo apenas conhecida pelos moradores de Willowbrook, como a herdeira milionária.

Aproveitando-se das histórias e da sinistra reputação da velha mansão, que um dia serviu como sanatório para crianças com “deficiência mental”, ela pretendia realizar a maior festa de halloween de que se tivera notícia nos arredores de Willowbrook, mas na verdade, madame só pensava em capitalizar em cima das lendas que cercavam o local.

A enigmática Madame Eleonor estava radiante no saguão da sua mansão, recepcionando os convidados. Bandejas de champanhe, vinho e outras bebidas, passavam a todo vapor. Fantasias de vários modelos, propícias à ocasião desfilavam pela vultuosa mansão. A atmosfera era eletrizante. Música, máscaras e decorações macabras transformavam a antiga mansão em um cenário perfeito para uma festa assustadora de Halloween.

Mas, à meia noite, algo diferente aconteceu, as luzes dos enormes candelabros, que enfeitavam o salão da mansão, piscaram de forma intermitente por seis vezes.

Os convidados julgaram que fosse apenas algum defeito na chave de luz ou alguma brincadeira e não deram importância.

Mas, à medida que a madrugada se aproximava, aquele clima festivo iria se transformar em uma prisão mortal.

A querida Madame Eleonor propôs um sinistro desafio aos corajosos e curiosos da festa. Ela incitou a todos no salão, dizendo que, quem quisesse, poderia partir, mas àqueles que tivessem coragem de permanecer até o clarear do dia, uma grande recompensa seria dada.

Assim, a aposta fora lançada: Madame Eleonor trancou todas a portas da mansão e guardou a chave em um cofre. A senha só seria então revelada através de um telefonema que seria recebido no clarear do dia.

Desse modo, todos aqueles que ficaram, seriam obrigados a passar aquela noite no casarão.

O som aumentou freneticamente, a festava continuava e as luzes piscaram novamente por seis vezes e voltaram ao normal. Porém, depois de mais algum tempo, as luzes piscaram outra vez pelas mesmas seis vezes, formando um lapso de três vezes de seis, o que simbolicamente se manifestava como “666”.

E, logo após uma pausa na música, todas as luzes se apagaram.

Já não podiam mais ver uns aos outros. Chamavam por Madame Eleonor e seus criados, mas o silêncio era sepulcral.

Um grupo de jovens de quatro pessoas se separou dos demais e subiu a imensa escada da mansão, no andar de cima, à procura de quartos ou um lugar mais aconchegante para passarem a noite.

Esse grupo de quatro pessoas, era formado por: Virgínia Kenton, filha do prefeito de Willowbrook; ela se achava a dona do pedaço e a melhor de todas, na escola, achava que os meninos só tinham olhos pra ela e adorava ostentar. Peter de Mark, filho do xerife de Willowbrook, metido a valente e galanteador, Jussara Prestew, filha do dono da farmácia, completamente sem noção, era uma verdadeira “doida varrida” e Smith, o mais modesto da turma, era de origem humilde, negro e falava pouco, aliás, nem se sabia a razão de ele andar com o grupo da “panelinha”, os filhos da elite de Willowbrook, talvez por ajudar Virgínia e Peter a tirarem nota, na escola. Os dois viviam “se pegando,” quando dava, mas nada de compromisso.

Eles toparam o convite e o desafio de Madame Eleonor e, com exceção de Smith, tiravam a maior onda, zombando do local e da suposta brincadeira.

Logo em seguida, um barulho de abrir e fechar de portas silvou pelo andar de cima da mansão. As luzes se acenderam por um segundo e eles avistaram uma menina com cabelos desgrenhados andando lentamente pelos corredores, carregando uma boneca de pano.

Peter de Mark, o valentão de Willowbrook ficou pálido e soltou um grito de horror:

— Ei, que diabos está acontecendo aqui? Que brincadeira é essa?

Smith não disse nada, Jussara ria de modo estridente e Virgínia se atirou nos braços de Peter. Embora ela estivesse com muito medo, não queria dar o braço a torcer e passava imagem de quem não tinha medo e iria até o fim.

— Vocês não toparam a merda da brincadeira, agora vamos até o fim, está claro que isso é um tipo de jogo de luzes, ou um truque da ricaça aí, para a gente fugir e perder a tal da recompensa—rosnou a filha do prefeito.

Smith, precavido e talvez prevendo que pudesse precisar, trazia no bolso da calça uma pequena lanterna. Ele acendeu o pequeno facho de luz e olhou para os amigos, perguntando se estava tudo bem.

Quando Smith clareou o local eles não avistaram mais Jussara. A filha do farmacêutico de Willowbrook, que estava a poucos segundos ao lado dos amigos desapareceu misteriosamente.

Às três da manhã, um tilintar agudo, como se fosse o sino da igreja soou dentro da residência. Um corpo ensanguentado rolou pelos degraus da imensa escada. Smith clareou a lanterna em direção ao corpo. Era Jussara.

A luz se acendeu, novamente por segundos e uma velha de roupas pretas, com pele bastante enrugada e com furos nos olhos, tinha o pé direito sobre a cabeça de Jussara. Eles viram aquilo e ficaram horrorizados. Smith clareou a lanterna incontinenti, mas não havia mais nada. Nem mesmo o corpo de Jussara.

O clima da festa de halloween estava mudando e eles já não sabiam mais o que poderia ser verdade ou uma brincadeira.

Smith clareou a lanterna e olhou para o relógio, eram quatro da manhã e o silêncio desde o momento em que a festa parou, era, de fato, assustador.

Virgínia começou a chamar por Jussara em total desespero.

A luz se acendeu mais uma vez e a menina de cabelos desgrenhados, com sua boneca de pano nas mãos, agora caminhava pelo corredor, de mãos dadas com Jussara, que tinha um corte profundo no rosto. Atrás delas, dois anjos negros, um menino peculiar e acima da cabeça de Jussara uma corda espessa que parecia estar entrando em seu pescoço.

Jussara lançou um olhar paralisante em Virgínia que não esboçou reação, a não ser correr hipnotizada em direção à amiga. Smith gritou e tentou segurá-la pelos braços, mas Virgínia correu em direção à Jussara. Peter gritou negativamente para Virgínia, e correu para impedi-la, mas ela não parou.

A luz se apagou mais uma vez e quando acendeu, a imagem de Jussara transmudou-se na velha de preto que eles tinham avistado e ela segurava Virgínia nos braços, toda ensanguentada no meio do salão; não havia mais ninguém ali, a não ser o corpo da estudante, filha do prefeito.

Virgínia Kenton se foi.

Mas seria real? Será que Jussara também estava morta, já que seu corpo desapareceu, mas o de Virgínia ainda estava ali?

Peter gritou alucinado e começou a discutir com Smith, dizendo a ele que queria sumir daquele lugar e chamar a polícia, e que se ele soubesse de alguma coisa, era para parar com aquela brincadeira.

—Ei, Peter, do que você está falando, cara. Foram vocês que insistiram para que eu viesse nessa porcaria de festa! Seja lá quem for que esteja fazendo essa brincadeira, vamos sair daqui, vamos em busca de ajuda, isso já passou os limites.

— Ei, Smith, espere. Por que você trouxe uma lanterna, cara?

— Eu não acredito que você esteja me perguntando isso? Por precaução, cara, por precaução, qual é, Peter?

As luzes se acenderam novamente e o corpo de Virgínia não estava mais ali.

Os dois amigos se desesperaram e tentavam achar uma saída. Eles correram por toda a casa, encontraram duas portas enormes e bateram forte com uma acha de madeira, mas sem êxito algum.

Um clarão veio da janela e eles avistaram uma mesa com quatro meninos jogando cartas. Peter ria de modo insano e antes de balbuciar algo para Smith, um vulto preto passou pela casa e os pedaços de Peter de Mark voaram pelos ares.

O dia clareou, não houve nenhuma chamada de telefone. Smith andava aturdido e com muito medo pelo imenso salão da mansão. Ele gritava desesperadamente por Madame Eleonor, mas não havia ninguém ali.

Às sete horas da manhã ele avistou a lucarna da imensa mansão e conseguiu fugir daquele lugar demoníaco.

Após os relatos assustadores do jovem estudante que teria sobrevivido aos horrores daquela noite, a polícia foi até a mansão Osbourne e no interior da residência encontrou os corpos dos amigos de Smith, todos ensanguentados e com marcas de profundas perfurações.

As investigações da polícia concluíram que naquela noite, não havia mais ninguém dentro daquela residência, a não ser os quatro amigos e que Smith estava completamente alucinado, e como ele havia aparecido naquela manhã, junto ao departamento de polícia de Willowbrook, todo ensanguentado, eles não tiveram dúvidas, prenderam o jovem estudante e o encaminharam ao manicômio judiciário de Willowbrook. A família de Smith tentava acreditar em sua versão, quando ele gritava, implorava e pedia por Deus que acreditassem nele. Então, a família de Smith buscou ajuda da comissão de investigações paranormais.

RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO DE INVESTIGAÇÕES PARANORMAIS:

“Berenice Dickens morava com seus pais e sua avó materna na mansão Osbourne.

A senhora Osbourne era a proprietária da imensa residência e dona de outras terras nos arredores de Willowbrook. Mas, ela travava um conflito com o genro, já que os dois não se davam bem, porque ele bebia, era agressivo e mentiroso. Sua filha o defendia e os dois passavam os dias jogando, fumando e bebendo muito.

Após entrarem em crise financeira, os pais de Berenice Dickens resolveram vender a mansão Osbourne, mas a avó era o grande obstáculo e então, para firmarem seu intento, eles assassinaram a avó materna para ficarem com toda a herança, seu corpo jamais fora encontrado e há relatos de que tenha sido jogada no rio ao lado da residência, após ter seus olhos perfurados. Uma roupa preta com cordões de ouro fora encontrada às margens do rio, à época.

Os pais de Berenice ocultaram tudo e relatavam que a senhora havia saído para pescar e nunca mais tiveram notícias dela. Como não havia qualquer vestígio, as investigações foram arquivadas.

Eles venderam diversos imóveis, inclusive a amada mansão Osbourne de sua avó, que fora adquirida pelo estado para funcionar como sanatório para crianças com problemas mentais.

Com o passar do tempo, o comportamento de Berenice ficou estranho e agressivo e ela começou então a questioná-los sobre o assassinato de sua avó.

Para não serem descobertos, eles alegaram que a menina Berenice sofria de problemas psiquiátricos e a internaram no manicômio para crianças, a mansão de sua avó que fora transformada, com o tempo no sanatório peculiar.

Berenice ficou ainda mais revoltada e tinha constantes alucinações, ouvia vozes e gritava, até o dia em que se enforcou.

Mas o espirito da senhora Osbourne jamais saiu da mansão e no dia em que os pais de Berenice foram até lá, uma única vez, com a desculpa de visitarem a filha, eles morreram com cortes no rosto, nos olhos e pelo resto do corpo após as luzes do então sanatório se apagarem completamente. Pessoas relataram que antes de morrer, eles gritaram com uma mulher de preto e uma menina que carregava uma boneca.

O sanatório funcionou durante anos, mas com os horrores e mortes inexplicáveis das crianças que iam pra lá, ele foi desativado, ficando a mansão abandonada até que madame Eleonor veio então adquiri-la.

Com relação à noite de halloween e a suposta festa de Madame Eleonor, esta, jamais fora encontrada, em nenhum lugar, nos arredores de Willowbrook. Parte da população afirma que jamais avistou essa mulher na cidade. Outros moradores dizem ter visto alguém com as características relatadas por Smith, mas ninguém ouviu barulho de festa na velha mansão naquela noite.

No entanto, os especialistas em paranormalidade, os ghostbusters e religiosos que visitaram a mansão, afirmam seguramente que espíritos de Berenice e sua amada vovó passeiam pela sinistra residência. Eles avistaram a senhora de pele enrugada e uma menina de cabelos desgrenhados, com sua boneca.

Por fim, a comissão reuniu demonstrações de ordem sobrenatural, de que Madame Eleonor, era na verdade o espírito de Berenice Dickens, que transmudando-se, voltou para vingar sua avó, dos homens mais poderosos de Willowbrook. Os homens maus, que destruíram seu lar. E nada melhor do que eles pagarem com a vida de seus filhos”.

A polícia não acreditou na história que até hoje é contada com veemência pelos moradores de Willowbrook e nem mesmo no relatório da Comissão e Smith seguiu seu destino no Sanatório Harper, na cidade vizinha.

No porão da velha mansão, um escrito fora encontrado, amarelado, com tintas quase apagando: “Eles transformaram meu lar em um poço de cobras”.

Danilo Seraphim
Enviado por Danilo Seraphim em 19/10/2023
Código do texto: T7912236
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