Hell Hill

Era 12 de outubro de 2000, um dos dias mais aguardados do ano. Naquele ano, era o mais especial para minha irmã, Tina, de 7 anos. Eu queria fazer daquele o melhor dia de sua vida, então junto a meus pais e meu irmão, fomos a um parque novo que acabara de inaugurar na parte da cidade próxima aos alpes. A viajem foi um pouco longa, mas estávamos muito otimistas com o que veríamos por lá.

“No comercial disseram que haviam muitos brinquedos para menores de 15 anos. Acho que a Tina vai gostar” – disse Gael, o irmão do meio.

“Provavelmente vai estar lotado” – disse eu.

“Por isso temos que ficar perto uns dos outros. Entendeu senhor Gael?” – papai disse chamando a atenção de Gael.

Embora educado, Gael se perde muito fácil, ele costuma andar e precisamos estar de olho nele o tempo todo. Ao chegarmos no parque, vimos uma frase logo abaixo do nome escrito assim: ‘Dominus subito dominus’, não entendia latim e só ignorei seu significado, mas achei interessante como o tema do parque era algo bem peculiar, havia uma área para crianças onde o cenário era mais rosa e com bichinhos fofos, e uma área para jovens com uma pegada mais dark e caveiras, era bem dividido para atender o público em geral.

Obviamente, fomos para o lado mais fofo do parque, Tina brincou muito nos carrinhos-doces, eram carrinhos pequenos que rodavam em torno de um eixo e sua temática era doce, então cada carrinho fazia referência a um doce, Tina foi no carrinho jujuba. Gael queria ir ao “Nos olhos do tigre” um brinquedo na ala dos jovens, que ficava um pouco distante de onde estávamos, era um jogo em que os participantes entravam numa câmara com alguns locais de esconderijos, ao apagar as luzes o jogo se iniciava e uma pessoa fantasiada com cabeça de tigre entrava no local escuro com uma câmera noturna, o último a ser encontrada ganhava o jogo. Gael insistiu tanto que meus pais o levaram.

“E tu não vai brincar não?” – mamãe me perguntou.

“Eu vou, mas estou com fome” – respondi.

Então fomos todos merendar, meus pais estavam aproveitando aquele momento que subitamente escapei dos meus olhos lágrimas de felicidade, era mais um ano do meu pai lutando contra um câncer que houvera descoberto recentemente, ele já tomava seus medicamentos controlados, mas não se sabe a cura ainda e por isso a grande preocupação. Os tratamentos são caros, mas com o salário que recebo eu posso ajudá-lo a pagá-los, minha mãe cuidava das outras despesas, meu pai sempre foi um homem muito forte e mesmo agora ele tem continuado com sua rotina de trabalho e não daria o braço a torcer a nenhuma doença. Aquele momento na mesa com meus pais e meus irmãos era coisa rara, quase nunca conseguíamos nos reunir assim, por isso aquele dia era especial. E depois daquele dia meus pais continuaram a trabalhar no Brasil, meu pai abriu um supermercado e minha mãe, uma loja de artesanatos. Eu me mudei para a Europa. Meu irmão se formou em Fisioterapia, se mudou após alguns anos para a Europa e passou a trabalhar numa clínica na Espanha com sua namorada. Eu raramente saía de casa, mas eu tinha que continuar minhas pesquisas e estava terminando meu doutorado na Itália.

“Tá tudo bem filho?” – minha mãe me perguntou.

“Sim mãe, tudo ótimo” – respondi com um sorriso.

“Teu pai vai levar o Gael no ‘Suspiro maluco’, se você quiser ir em algum aproveita logo que depois já vamos embora. Vou ficar aqui na lanchonete tomando sorvete com a Tina”

“Certo então, vou dar uma olhada nos brinquedos para ver se gosto de algum” – e fui andando pelo parque.

Haviam montanhas altas com teleféricos, e uma trilha que me deixava intrigado, pois nunca havia passado algum trem por ali pelo que me lembro desde que cheguei ao parque. Perto da casa do terror encontrei uma montanha-russa, o nome do brinquedo era Hell-Hill, um nome sugestivamente ameaçador, mas criei coragem de ir. As barras de segurança estavam bem firmes e eram individuais, segundo as normas de segurança, os participantes deveriam tomar uma pílula antes de partirem e assinarem um termo de responsabilidade (eles deixaram muito claro em letras de forma vermelhas que não era permitido gravar, fotografar ou causar qualquer danificação no brinquedo). Porém acabei mordendo e senti o sabor extremamente amargo e cheiro ruim, cuspi rapidamente para que ninguém vesse. Após a partida, fiquei um pouco tonto no início, e depois de um tempinho, percebi que o trem havia desviado o caminho, ele estava indo em direção oposta aos caminhos dos trilhos que o ligavam ao parque. Achei que fazia parte da brincadeira e só esperei. Ele deu várias e várias voltas passando por florestas, lugares lindos que nunca tinha visto antes, quase uma completa volta nos alpes, a viagem foi um pouquinho longa que até me perguntei se o trem voltaria ainda no mesmo dia hahaha, mas então avistei um túnel, escuro e com algumas tochas em volta, havia escrito em suas paredes a mesma frase que havia na entrada do parque ‘Dominus subito dominus’, foi quando eu ainda acreditava na ideia de que poderia ser algo da empresa responsável pelo parque, infelizmente eu havia mudado de ideia quando de repente um arpão de pequeno porte surgiu do meio da fumaça que cobria os trilhos e atravessou o crânio de um cara que estava gravando um vídeo para seu canal do Youtube, a barra de segurança de seu assento fora desativada e abriu-se permitindo que a corda do arpão o puxasse para fora do brinquedo fazendo-o desaparecer nas fumaças, muitos ficaram horrorizados e haviam pelo menos 30 assentos lotados, contando com o meu.

Nesse ponto, muitos já queria sair do brinquedo, mas a velocidade com que partia só aumentou e mal podíamos nos mover e com a baixa oxigenação ou possível gás presente por lá, todos nós desmaiamos. Quando acordamos, estávamos dentro de um trem com assentos sem barras, numa velocidade constante em que podíamos nos mover tranquilamente lá dentro, era um trem enorme, o maior que já vi e cada vagão era diferente. Porém, meus colegas estavam dava-se para contar pelo menos 12 meninas ali, que formaram um grupo para caminhar pelos vagões do trem, haviam apenas dois caminhos, então me reuni com mais 12 meninos e os outros 5 ficaram no local vigiando. Não fazia muita lógica nos dividirmos assim, mas era como queriam então só fui seguindo.

Nós fomos pelo caminho norte, enquanto as meninas foram pelo sul, logo no primeiro vagão que entramos, avistamos camas, de ambos os lado do trem, pareciam tipo beliche, e segundo vagão, mais camas e algumas mesas, o terceiro vagão era desproporcional aos dois anteriores, era muito maior que nem parecia fazer parte do trem, só podia ser um delírio coletivo eu pensei, mas não era, eu podia sentir os objetos que estavam lá, eram concretos, então era um lugar cheio de camas, que era posicionadas nas paredes do trem e de forma vertical para que levasse a três portas distantes (sim, ficou cada vez mais louca essa viagem), os garotos queriam se dividir, mas eu disse que juntos seria mais seguro, então fomos, a primeira porta continha uma frase escrita em latim “Hoc est, ubi te deserit Deus”. Por incrível que pareça me assustei quando percebi que havia sinal de celular e minha internet funcionava, traduzi a frase como “É aqui que Deus te abandona”, só me deixou mais preocupado, mas com coragem entramos pela porta, era como se tivéssemos sido transportados para um gigante supermercado, as pessoas eram muito diferentes que dava até pavor, elas claramente não falavam nossa língua, mas sinalizavam com gestos. Algumas até que dava para sustentar um momento amigável para obter mais informações de lá, mas tinha um cara com sua barriga cortada e com seus intestinos delgados enrolados nas suas costas e ele agia como se fosse algo normal. Pensamos em sair o mais rápido daquele lugar, e a porta ainda estava lá então saímos. Jonas, um dos nossos colegas estava passando mal, ele contou que uma moça o havia dado um sanduíche de atum e que ele havia comido só um pedaço porque ela insistira muito. Jonas começou a se debater no chão e gemer de dor, todos tentaram segurá-lo, mas ele estava piorando muito rápido e antes de conseguirmos estabilizá-lo, ele já havia sofrido uma hemorragia interna, provavelmente o sanduíche estava envenenado. Hiago amigo do falecido entrou em aflição e queria volta para tirar satisfação com a moça que envenenou Jonas, mas sozinho, certamente morreria por lá.

Passamos para a segunda porta, essa não era de madeira, mas de ferro e sem tranca, rangia à medida que a abríamos, inicialmente nos levava a um corredor escuro, ninguém queria entrar, mas fomos mesmo assim com as lanternas de nossos celulares, o corredor terminava numa porta semiaberta de madeira, nela escrito com sangue estava “Lock the door!” (Tranque porta!), nessa hora me arrependi de saber inglês, Herlison, que era o mais malhado de nós, manjava de artes marciais, foi na frente. Quando entramos, haviam tantas ladeiras naquele lugar que me fez lembrar minha cidade natal, Manaus. Parecia tudo bastante calmo, haviam arbustos, inclinações nas ruas e parecia como se estivéssemos ainda no nosso mundo e as pessoas por lá era “normais” digamos assim, mas esse pensamento não durou tanto tempo. Frank, o mais baixo de nós era também o mais levado e dava em cima das garotas, enquanto andávamos pelas proximidades, marcamos o local da porta para não nos perdermos, Toni ficou responsável por garantir que a porta estivesse semiaberta para nossa possível fuga, caso necessário. Em comparação ao supermercado que vimos anteriormente, mas pessoas não se comunicam por voz, mas por telepatia, e eu descobri quando encontrei uma mulher que começou a sussurrar nos meus ouvidos à certa distância e sua boca não se mexia. Prestei um pouco mais de atenção e percebi que a luz do sol incidia em seu rosto e refletia sobre a poeira do ar próxima à sua boca revelando fios transparentes suturados a partir de seus beiços carnudos. Tentei disfarçar o olhar para não parecer alarmado, mas certamente eu já queria sair daquele lugar rápido. Fiquei assustado e com medo que a mulher talvez pudesse ler mentes assim como se comunica por telepatia e a segui até sua casa.

[Não tenha medo, eu não vou te machucar!] – Ela me disse por telepatia.

[Quem fez isso com você?] – Perguntei

[Não abra sua boca, use telepatia] – Ela me respondeu.

[Como?]

[Olhe para mim e pense que está falando] – Ela lançou um olhar sério.

[Mas...] – de repente percebi que já podia me comunicar telepaticamente com ela e continuei.

[Então, quem fez isso?] – Voltei a perguntar.

[Os censuradores] – Disse ela.

[Aqui é proibido falar, se os censuradores te pegam falando com a boca aberta, eles te castigam costurando sua boca com uma linha especial] – Ela completou.

[Não podemos cortar essas linhas?] – Perguntei.

[Não mesmo, elas são especiais porque são mágicas e inquebráveis. Se você tentar tirá-las, elas apertam a sua boca causando uma dor horrível, é como uma maldição] – A mulher falou para mim num tom de choro telepático.

[Tem uma lenda que nos contam que um anjo caído dominou esse lugar, no tempo em que meus pais eram jovens, todos podiam falar e todos eram felizes, mas quando ele chegou aqui, com seus súditos abomináveis, houveram confrontos, mas não fomos capazes de nos defender contra os ataques sobrenaturais e nossas terras foram tomadas por censuradores que vagam por aí impedindo que qualquer um que entre saia daqui].

[Mas você sabe que há uma porta para sair daqui certo?] – Eu perguntei.

[Não! Não se deve passar por aquela porta, está enfeitiçada. Você veio sozinho?]

[Trouxe alguns amigos...] – Eu disse.

[Vocês correm grande perigo. Fujam antes que os censuradores os capturem!] – Ela exclamou mentalmente, foi até seu quarto e voltou com duas armas, revólveres que eu nem sei como usava. Ela então pegou uma faca na cozinha e me acompanhou à procura dos outros.

Henry foi o primeiro que encontramos, ele era medroso e não queria explorar o local, estava sentado lendo seu livro de bolso numa cadeira na praça. Expliquei a situação para ele e ele segurou o pânico momentâneo antes de irmos procurar os outros. Ensinei a ele como se comunicar telepaticamente e ele pegou rápido a técnica.

[Sabe onde estão os outros?] – perguntei a Henry.

[Disseram que iam ao mercado procurar, procurar por comida e suprimentos] – Henry respondeu.

[Essa não. Esses lugares são rigorosamente vigiados pelos censuradores, se não souberem usar telepatia, eles irão ser punidos] – Disse a mulher.

[E quem é essa?] – Henry perguntou.

[Uma amiga] – lhe respondi.

A mulher (vou chamar de Joana, já que esqueci seu nome verdadeiro) nos levou até o supermercado mais próximo, era bem organizado e silencioso, obviamente já que ninguém falava. Não foi difícil encontrar os meninos, ao menos Hiago, Herlison, Timothy e Frank, esses já sabiam do lance da telepatia de alguma forma descobriram. O lugar havia três andares, um de supermercado, um para lojas em geral e outro para cinema e coisas do tipo, foi quando percebi que era um shopping, pois não sabia que haviam outros andares, fomos então para o segundo andar, e encontramos eles, de longe estavam David, Lucas, Samuel e John. Infelizmente eles não sabiam como se comunicar por telepatia e falaram muito alto para nos cumprimentar o que acabou chamando atenção dos guardas que eram os censuradores. Tentamos manter a calma, mas Joana nos disse para não nos metermos com eles, senão todos nós iríamos morrer.

[Se não fizermos nada, vão matá-los] – Disse Hiago

[Vocês não vão fazer nada, vão ficar parados assistindo eles morrerem?] – Frank se indignou.

[Não podemos fazer nada Frank, vão nos matar] – Timothy o respondeu.

[Não esperava menos de um fresco como você] – Frank respondeu rudemente.

[Não esperava menos de um homofóbico] – Timo não se calou.

[Parem com isso pessoal, não podemos brigar, e Timo está certo, precisamos nos salvar senão todos aqui morreremos. Inclusive nossos colegas que estão no trem nos esperando, temos que levar suprimentos, comidas para eles] – Eu chamei a atenção deles.

Dois censuradores agarraram David pelos braços o imobilizando, Samuel e Lucas tentaram ajudar o amigo enquanto John correu. Samuel e Lucas foram imobilizados também após certa resistência e tiveram suas bocas costuradas ali mesmo, sem anestesias eles gemiam de dor. Na correria, John fugia dos guardas e ele corria muito para salvar sua vida, quase foi pego no caminho. Um censurador bloqueou a saída, mas nós nos unimos, Joana deu um tiro na cabeça dele e John pôde escapar, saímos todos correndo o mais rápido possível, Joana conseguiu roubar um carro que estava estacionado e fomos rapidamente em direção à saída. A porta onde Toni estivera aguardando ainda estava lá.

Corremos o mais rápido que pudemos, os censuradores tinham a forma de um ser humano comum, mas seus olhos eram negros e brilhantes, o que diferenciava dos outros cidadãos daquele lugar. Antes que pudéssemos todos passar pela porta, um censurador que nos perseguia assumiu uma forma de um monstro com tentáculos e se agarrou em Herlison que foi brutalmente arrancado de dentro do carro. Ao saírem para atravessar a porta, avistaram Toni tirando um cochilo, eu o chutei rápido para que ele acordasse e quase não conseguimos sair de lá, pois a porta estava semiaberta e enterrada, só podia passar uma pessoa por vez. Toni foi o primeiro, depois eu, Frank, Henry e Timothy. Joana não conseguiu passar pela porta, pois um dos censuradores a agarrou e a levou. Outros censuradores estavam tentando passar pela porta, e estavam quase conseguindo ainda tínhamos que passar pelo corredor escuro com as lanternas dos nossos celulares, e tivemos que dividir pois os celulares de Timo, Frank e Hiago estavam descarregados. Felizmente passamos pela porta de ferro e a fechamos antes dos censuradores passarem. Foi um momento muito tenso e fiquei triste por Joana, ela havia me dito que a pena por tentar escapar do lugar é a morte da forma mais lenta e dolorosa possível.

Estávamos sem comida, sem água, perdendo a sanidade aos poucos e com medo dos possíveis horrores que haveria por trás daquela porta. De uma coisa já tínhamos certeza, nem todos voltariam vivos de lá. Não conseguíamos mais usar telepatia, de alguma forma aquele lugar permitia isso e não sabia como.

“Podemos voltar e contar para os outros que aconteceu, deixar todo em pânico e esperamos morrer de fome. Ou podemos seguir e tentar de novo, essa é nossa última chance, última porta”. – Disse Timo.

“Mas também poderíamos ir atrás das garotas, talvez elas tenham encontrado algo...” – Disse Frank.

“Ou coisa pior do que o que encontramos. À essa altura, me pergunto até se ainda estão vivas” – Respondi com certa preocupação.

“Que isso cara, não vamos pensar assim. A gente não sabe o que tem do outro lado” – Hiago olhou pra mim com cara de preocupação.

Demos uma pausa para descansarmos, aproveitamos aquelas camas do vagão anterior. Após carregar seu celular, Timo tentou mostrar os vídeos que gravou enquanto estava por lá, ele gravou os censuradores também. Mas a câmera não conseguiu captar a imagem deles, era como se eles fossem invisíveis, mas podíamos vê-los enquanto estávamos lá, na gravação as coisas estavam muito distorcidas. Durante a captura de Lucas, David e Samuel, era como se algo invisível os imobilizassem, algo assustador. John estava deitado e não conseguia se acalmar, era como se aquele evento estivesse ocorrendo incessantemente em sua mente. Eu sentei ao seu lado e tentei acalmá-lo, disse que íamos encontrar um jeito de sairmos daquele lugar, embora nem certeza eu tivesse mais, mas só um pouco de esperança. Timo era gay e Frank hétero homofóbico, Hiago me contou que viera ao parque de diversões com seus dois amigos, mas que eles brigavam muito desde o tempo da escola, Frank implicava muito com Timo por sua orientação sexual, e Timo tinha problemas com apostas, era um vício que permaneceu mesmo após adulto o que fazia ele perder muito dinheiro e até já causou problemas com agiotas. Hiago tinha uma namorada tóxica, controladora, mas que ele amava, me contou que a deixou após a mesma sugerir que ele matasse seus pais para viver com ela. Claramente não eram pessoas bem equilibradas, mas era o que eu tinha e eu sabia que precisaria da ajuda deles para atravessar aquela porta. A porta era muito pequena, só se podia passar um por vez e engatinhando. Para dificultar mais as coisas, ela era posicionada verticalmente o que significaria ter de ir contorcendo até chegar ao outro lado dela, suas paredes eram lisas e parecia uma entrada de tubulação. Achei melhor deixar John por lá, visto que ele ainda não estava bem recuperado.

“Descansa John” – eu disse.

Nós apoiamos em uma das camas mais altas e fomos entrando, eu fui o primeiro. As paredes eram de metal e estavam frias, mas não a ponto de congelar algo, dava para se esgueirar e ir subindo aos poucos, à medida que subíamos, sentíamos o sentido do corredor se alterar. Era como se a gravidade mudasse de direção, e na metade do caminho, ela passasse a cooperar com os nossos movimentos assim conseguimos alcançar o outro lado. Nos encontramos em um lugar clareado por tochas, e por incrível que pareça era um ambiente frio. Havia marcas no chão, coisas pintadas e escritas por todas as partes.

Eu não conseguia ler muito bem, estavam escritos em vários idiomas, a única parte que consegui ler era inglês, algo como “The door is your mind” (A porta é a sua mente). Caminhamos mais um pouco e fomos em direção a uma luz que cobria uma porta de ouro cravejada com diamantes. Certamente pensei que fosse uma armadilha e hesitei em me aproximar, peguei uma pedra que havia guardado em meu bolso e a taquei na porta, a pedra bateu na porta e caiu nos limites da luz forte, que rapidamente a fez desintegrar em chamas. A chama que havia sido gerada da pedra tomou forma e assim a luz intensificou-se e a porta do ouro se derreteu juntos com seus diamantes. A chama se dividiu e para cada um de nós, ela tomou a forma de nossos rostos, estampados em uma porta que logo se abrira nas paredes. Cada um tinha sua própria porta com seu rosto estampado em fogo. Já tínhamos ido longe e não havia volta, então entramos, cada um em sua porta. “Não pense no seu maior medo”, estava escrito na porta, ao atravessá-la tentei focar meus pensamentos em coisas boas, uma piscina, um passeio no parque, momentos com meus amigos, diploma da faculdade. Me deparei com um espelho, nele eu não controlava meu reflexo, ele fica estático enquanto eu me movia. Não sabia o que fazer e já estava ficando assustado, então virei e a porta havia sumido. Meu reflexo no espelho então gesticulava me chamando para entrar dentro do espelho, ao atravessar, eu fui levado a momentos que já vivi antes, outros, que eu só havia imaginado. Tive que assistir meu nascimento do início até o fim, algumas cenas até pesadas, mas também tive que assistir a separação dos meus pais, meu maior medo era de ficar sozinho e eu fiquei. Tive que assistir minha vida passando em um telão, os bullyings, os castigos, minhas dores diárias, e sem poder fazer nada, eu vi a morte da criança dentro de mim, o sorriso fechando como a porta de ferro, e eu só queria que as pessoas pudessem saber o que eu estou querendo dizer, por telepatia, como no mundo de Joana, e até hoje me lembro dos meus pais dizendo “não aceite nada de estranhos” infelizmente Jonas não recebera tal educação dos pais quando fomos ao supermercado da primeira porta. Meu medo estava ali, espelhado. Meu medo era ser eu mesmo, um direito que o mundo me negou e que por vezes tive que tomar à força e ser chamado de rebelde. Tive que liderar meus colegas na maior parte dessa viagem e me eu nunca me imaginei líder ou alguém que as pessoas iriam seguir e confiar.

E de repente, estava preso em uma prisão para humanos, como se eu tivesse um dono, dentro desta, fui alimentado com sobras, fui acorrentado e me tomaram os direitos básicos de cidadania, eu era apenas um pet. Eu servia para mero entretenimento de um garoto mimado. E ele escolhia meu destino, ele pautava o que eu podia ou não fazer, o que eu podia ou não comer, o que eu podia ou não ser. E eu me sentia cada vez mais cansado e burro, ele não me deixava dormir, ele não me deixava ir. Eu tentei escapar, mas ele me segurou e me castigou, enquanto minhas costas ferviam de dor, o cenário mudava. Meu reflexo à margem de um lago se tornou clone e tentou me afogar, eu nadei, mas não consegui voltar. Enquanto estive desacordado, lembrei das frases que li nas portas antes de entrar. As frases em sequência são: “É aqui que Deus te abandona”, “Tranque a porta!” e “Não pense no seu maior medo”. Então, encontrei uma porta, que me levou até a saída, eu podia assistir Timo e Frank, mas não podia chegar até eles. Timo estava preso num lugar estranho, aparentemente ele devia estar apostando seus órgãos em troca de muito dinheiro, mas ele perdeu, então os cobradores o sequestraram e o desmembraram por completo numa sala de cirurgia. Frank era bissexual, mas por conta de não se aceitar, devido a questões de sua família e religião, ele acabara se envolvendo com um cara e o matou para que ninguém descobrisse seu caso, assim, ele é preso e levado a um presídio, onde é sexualmente abusado por seus colegas de cela. Ele acabou falecendo por conta dos abusos. Eu pude ver o destino de Henry também, ele amava livros e sempre andava com algum de bolso, era um garoto muito introvertido, mas certamente, assim como todos nós, ele não conseguiu evitar que pensasse em seu maior medo, e Henry sofria de aracnofobia. Rapidamente ele foi levado a um local cheio de teias de aranhas, ele correu e tentou se livrar, mesmo sendo mordido por diversas aranhas, mas então acabou sendo picado por um escorpião. Ele então, quase sem conseguir respirar, imaginou fortemente que aquilo não passava de uma ilusão, ele conseguiu escapar daquele lugar e seus ferimentos e sangramentos se curaram instantaneamente. Toni tinha um canal no Youtube em que ele era desafiado a fazer coisas bizarras, então ele foi transportado para um lugar onde seus fãs lhe pediam para realizar os mais loucos desafios. Para impressionar uma garota loira linda que avistou em sua plateia, ele realizou o desafio do apagão, um jogo que propõe que os participantes se sufoquem por alguns segundos na intenção de chegar a um suposto estado de euforia, ele pensou que se tratava de um mero sonho e assinou um termo de responsabilidade, durante o desafio ele foi asfixiado e faleceu. Hiago se viu em uma situação turbulenta, entre escolher a vida de seus pais ou sua namorada Mikaela. Sua namorada estava o traindo com uma garota que havia conhecido anos atrás, mas não tinha boas condições financeiras então tentou dar o golpe do baú em Hiago. Sua mãe nunca foi conivente com a relação deles, sempre desconfiou das intenções de Mikaela, mas Hiago defendia a namorada. A ponto de ser deixada pela amante, Mikaela convenceu o namorado de que seus pais iriam afastá-los e ambos decidiram armar um plano para se livrar deles. Hiago hesitou muito, mas sua namorada era filha de um coronel, sacou a arma do pai e atirou contra os pais de Hiago. Naquela noite a amante estava a esperando no carro, quando Hiago perguntou quem era ela, a mesma sacou uma faca e o esfaqueou até a morte. As duas fugiram e o destino de Hiago já teria chegado ao fim.

Após todas essas cenas horríveis que assistimos na câmara atrás da terceira porta, Henry e eu estávamos sem reação alguma, só queríamos sair o mais rápido daquele lugar. Foi então que uma porta se abriu no fim do corredor, ela era pequena e tivemos que passar engatinhando. Parecia ser outro vagão, nem sinal do Henry e o caminho de volta estava indisponível, como se as portas tivessem sumido.

Havia apenas uma porta para outro vagão. Ao passarmos por aquela porta, haviam muitos monstros, achei que seria o nosso fim. Mas eles ficavam na deles, eram até civilizados para monstros. Aquele vagão em específico tinha janelas de vidro onde podíamos ver o que havia lá fora, estávamos bem, uma senhora com patas de caranguejo saindo de sua cabeça, se aproximou e nos ofereceu assentos. Apesar de sua aparência, ela falava a nossa língua e era gentil.

“Descansem, aqui todos somos amigos. Ninguém vos fará mal algum”. – Mesmo desconfiado, cansado demais para manter-me atento, fui dormir e Henry e fez o mesmo. Ao acordarmos, o trem estava passando novamente por aquele mesmo túnel escuro do início da viagem. Foi então que Henry me disse:

“olha Brian, estamos voltando para o parque, vai ficar tudo bem!”. E eu não conseguia enxergar o que ele via, era como se a aparência não houvesse mudado para mim, ainda o via como monstros, mas pela personalidade que apresentavam, certamente eu estava num delírio individual. Quando repentinamente, após o túnel o trem já estava sobre os trilhos do parque, e mesmo assim eu continuava a ver as pessoas com aparências horripilantes. Quando desci do trem, fui direto falar com o maquinista.

“Passei dias ali, como que vocês não chamam a polícia?” – Disse eu apavorado.

“O senhor cuspiu a pílula?” – Ele me olhou sério.

“Sim, eu não consegui engolir” – Respondi.

“Senhor, no termo que assinou está escrito que o brinquedo causa alucinações devido à diferença de altitudes e acelerações durante o percurso. A pílula inibe esses efeitos e sua viagem completa durou apenas 15 minutos. Tome essa pílula e vá para casa jovem”. – O maquinista me deu outra pílula.

“E os outros estão bem?” – perguntei.

“Sim, estão todos aqui, estão todos bem. Mas teve um garoto, Henry que também não tomou a pílula. Acabei de dar uma pra ele também” – O maquinista falou se afastando.

Após engolir a pílula, uns 5 minutos depois tudo voltara a ser como era, eu já não via mais nenhum monstro, vai ver era só as alucinações como disse o maquinista. Encontrei minha família na lanchonete e fomos para casa. Ia me despedir do Henry, mas os pais dele já o haviam levado. Os outros também agiam como se não me conhecessem, acho que não passou de um delírio.

“Vai um sanduíche de atum? Eu sei que você gosta” – Meu pai havia comprado para mim.

“Não pai, obrigado, pode deixar o Gael comer” – Não conseguiria comer isso de jeito nenhum depois do que passei no parque.

Lembro-me desse dia como se fosse ontem, daria tudo para ter a chance de passar mais um feriado com a minha família, mas meus pais já se foram e meu irmão se mudou para os EUA. Espero que esteja bem por lá.