Aquele mundo, aquele lugar
Lembro como se fosse hoje. Tudo o que aconteceu, todo o zumbido, toda a falta de luz...
O tic tac do relógio doía meus ouvidos, pois anunciava que eu ainda estava vivo. O tempo passando não me interessava e parecia me odiar tanto quanto eu o desprezava.
Deitado no meu quarto eu pensava em como daqui a uns dias seria meu aniversário, mas não me importava, odiava saber que teria que reunir com mais pessoas que iriam vir falsamente me desejar felicidades. Incapaz de aguentar a raiva e esses pensamentos, eu pulei da cama e me vesti, deixando para trás a prisão de madeira.
Não escutei minha mãe falando comigo preocupada enquanto descia as escadas, na verdade a ignorei, como sempre. Abri a porta para fora e sai. Coloquei meus fones de ouvido para que não pudesse escutar ninguém me chamando na rua e parti.
Tudo me deixava irritado, eu não precisava de nada e nem de ninguém. Se não me ajudaram antes, quando eu precisava, se não se importavam antes, quando eu queria, então por que se importariam agora? Hipócritas! Não havia exceção para o caso. Ficar sozinho, esse era o caminho.
Era o que eu pensava naquele tempo...
Até que uma estranha mosca apareceu na minha frente, não sabia de onde ela vinha ou para onde ia, mas por algum motivo, embora fosse insignificante, ela me atraía. Naquele tempo eu não sabia, mas ela estava me levando para um mundo estranho, um lugar distorcido.
Outras moscas foram aparecendo, me cobrindo, e me levando junto da primeira. Eu já estava tão fascinado que nem ao menos percebia a bizarrice da situação.
A entrada do lugar era por um beco estreito, tão estreito que as paredes de madeira das casas, que pela arquitetura eram do século 17 e construídas por algum arquiteto Estadunidense, pareciam quase se tocar. Ao me aproximar senti meu corpo sendo puxado, amassado para virar uma caixinha melhor dizendo, e logo após isso girar como pião para ir diminuindo e de alguma forma caber na entrada.
E lá estava eu, em um mundo estranho e noturno. Onde a lua e as estrelas riam de escárnio de mim, com mares de saliva saindo de suas bocas e caindo no chão torto e pintado de vermelho. Vermelho que as babas se tornavam ao tocar como se este fosse seu pintor e, paradoxalmente, as babas fossem as telas. Todo o universo, desde as casas até às plantas, desde os ossos humanos até as peles animalescas, estavam espalhadas pelos cantos, jogados como lixo, e ondulando como se eu estivesse vendo por debaixo d’água. E lá estava o constante zumbido das moscas, penetrando meus ouvidos como faca embora eu não conseguisse vê-las.
Quis ir andando, embora não soubesse para onde ir, então pensei ter ficado parado. Digo “pensei” por que ao mesmo tempo sem notar comecei a andar e observar o distorcido e estranho lugar onde fui parar. Estava encantado com tudo, tal local me parecia deslumbrante.
Logo meus pés estavam me levando para diversos lugares do novo mundo onde parei. Meus olhos fitavam os ossos e peles sem se importar muito, embora estivesse um pouco curioso, mas não o suficiente para fazer um alarde.
Entrei em uma casa aleatória, poderia dizer que a cor dela era preta, mas seria inútil, todas as casas do local só possuíam duas cores: escuro como a noite e vermelho feito sangue.
A casa estava vazia, as únicas coisas que lá estavam eram tigelas em cima de uma mesa, um fogão, uma geladeira, uma pia com alguns pratos quebrados, enfim, apenas móveis e utensílios. Olhei para baixo e notei que perto de meus pés também havia algumas tigelas quebradas, me fazendo pensar que algo poderia ter acontecido.
Um pequeno corredor se estendia ao lado da geladeira, o que me levava acreditar que eu havia entrado pela cozinha e que o corredor levava aos outros cômodos. Fui andando até ele para averiguar, mas logo parei ao dar uma olhada melhor nas paredes.
Desenhos estranhos de giz estavam gravadas nela, ou melhor, pessoas com contorno de giz estavam desenhadas nas paredes. Seus corpos pareciam almas que foram forçadas ao tormento eterno de serem postos, cada um, nessas casinhas. Suas aparências me pareciam distorcidas, assim como a visão das peles e ossos jogados nesse estranho mundo. Suas faces demonstravam um pavor enorme, como se tivessem sido pegos de surpresa e jamais escapariam desse desespero.
Me virei novamente para o chão e o mesmo desenho estava lá, milhares de corpos desenhados ao redor da mesa, corpos que eu não tinha percebido antes, como se só agora tivessem se aproximado de mim. Para meu maior espanto e medo, os desenhos pareciam estar se movendo, tanto os das paredes quanto os do chão, que pareciam estar rastejando em minha direção pedindo ajuda- coisa que eu jamais poderia fazer.
Dei uma cambaleada para trás assustado e logo sai da casa correndo. Estranhamente isso não foi o bastante para me tirar o deslumbre do local, pelo contrário, só me fez ficar ainda mais curioso sobre o mundo e esses bizarros desenhos. Logo fui percebendo que não apenas as casas, mas até mesmo as plantas pareciam ter esses corpos desenhados em si.
Olhei curioso para o céu, querendo saber se tinha algo lá. Isso me fez duvidar de como eu conseguia ver, pois as estrelas e a lua brilhante pareciam não ter luz, como se fossem feitas de papel, embora toda a baba demonstrasse o contrário e elas aparentassem ser reais para mim.
Então eu andei ainda mais, cada passo me admirando ainda mais com o lugar que me foi apresentado. Não sei ao certo o que me fez ficar tão encantado, mas não conseguia mais parar, eu queria explorá-lo. E foi desse modo que, sem perceber, acabei dando de cara com uma macieira.
A macieira era belíssima, mais ainda seus frutos que pareciam reluzir por aquele lugar com um vermelho tão belo que nem mesmo o sangue pareceria melhor e nem mesmo o melhor pintor conseguiria copiar. Sua forma, a da fruta, isto é, era perfeitamente esférica, quase cartunesca e, junto da árvore, parecia ser a única coisa que não estava ondulando e jogada por aí.
Foi das folhas verdes como esmeralda que ela saiu.
Uma mosca, com seu zumbido belo, veio em minha direção. De beleza soberba e a única que eu conseguia ver, seu corpo era negro como a noite, mas visível como o noturno céu, suas asas batiam de forma elegante e formosa, e seu zumbido, como já falei, era sublime como uma sinfonia.
Ela voou lentamente, quase como uma dança, quase como se quisesse que eu prestasse atenção a ela, e pousou na minha cabeça, mais especificamente minha testa. E então eu vi.
Ou melhor ela me mostrou.
A morte de todas as coisas. O vazio para qual eu caminhava. Onde meu corpo era estraçalhado e devorado, onde minha alma era dilacerada em um tormento eterno que muitos que chegaram aqui viram e vivem.
Um vento frio e negro, vindo de suas asas, bateu em mim, me trazendo de volta para a realidade, me tirando da nefasta visão. A pequena mosca havia se tornado gigante, um demônio que planejava mais que tudo me devorar. Ela possuía incontáveis braços e seu zumbido parecia me envenenar, suas asas batiam com malícia e seus olhos me observavam risonhos de desgosto em cada faceta.
Pensei desesperado em fugir, mas o medo não permitiu. Cada fibra do meu ser vibrava de terror, minha boca estava cada vez mais seca e meus pensamentos, embora soubessem o que fazer, pareciam não funcionar direito. Meu corpo ia amolecendo, como se eu realmente tivesse sido envenenado por seu zumbido, transmitido pelo ar gélido, e logo vi que não teria escapatória.
Achei que morreria ali, engolido pelo monstro que eu achei que era uma pequena mosca, o monstro que ignorei. Até que um pequeno “corte”, uma pequena rachadura podemos dizer, apareceu na lua como um sinal. As estrelas foram parando de sorrir. Até que pararam. E então a lua quebrou com diversos pedaços desaparecendo no céu e do buraco formado saiu um manto verde.
O manto veio rapidamente em minha direção e por onde passava o mar de saliva avermelhada ia desaparecendo dando lugar a uma estranha areia esbranquiçada. Estranhei, mas me enchi de esperança ao ser coberto com carinho maternal do tecido que agora me abraçava.
Do chão rosas começaram a aparecer espantando o distorcido anoitecer e em fileiras se puseram a voar em direção ao monstro, o perfurando diversas vezes e o fazendo fugir rapidamente, temendo uma possível morte.
Aproveitei a chance para fugir com o manto me protegendo e, sem eu perceber, sendo meu guia. No lugar onde antes eram moscas e zumbidos agora estavam diversas rosas e flores que as substituam com seu perfume.
Dei uma rápida olhada para trás e vi como o monstro mosca saiu voando em disparada para fora antes de me olhar. Ele novamente me pegou em seus olhos e em fração de segundos tentou virar de direção para vir atrás de mim. Me virei também, dessa vez para a saída, mas consegui ouvir o som das rosas indo mais rápido e o cobrindo de espinhos, servindo de escudo para minha fuga.
Não senti o estranho puxão de como entrei, pelo contrário, foi como passar por uma doce porta de volta a casa. O manto ainda estava comigo e um colar de rosas estava agora no meu pescoço. Não os tirei desde então, com exceção do manto que troquei por um de cor branca como a neve, porém as rosas nunca envelheceram ou murcharam.
Penso ainda nas pessoas que estiveram lá antes de mim e não conseguiram sair, se perdendo e sofrendo na mão das estranhas moscas. Porém, graças a isso estou tentando impedir outros de chegaram lá e torcendo para que, um dia, ele esteja fechado completamente entre as paredes das casas.
Não vejo mais motivo para o ódio que antes sentia, pois sabia que agora havia alguém me protegendo e eu podia fazer o mesmo para os outros que estavam em necessidade. Talvez tudo tenha acontecido para que eu percebesse o valor da vida que eu tinha.
“Achamos mais um!”
Bem, ao trabalho!