O debate dos anjos.

Já ouço o que os anjos dizem entre si, mas não sei bem se entendo a conversa. Eles me olham com semblante esquisito, pouco angelical: dolência. Parece pena, porém também nojo. De qualquer forma, a luz deles livram um pouco da trevidão da noite ao redor, posso dedicar esse momento à contemplação dessas criaturinhas essencialmente boas, levitando sobre mim... hesitantes? Essas mãozinhas deles, tão fininhas e delicadas de recém-adolescentes. Um manto tão fino e branco que parece transmutar-se em ouro com a infinitude gloriosa do céu atrás deles. É tão bom ouvir esse Instante, quando os sons da Terra se calam, aqueles estrupidos e ruídos, e escuta-se apenas o... bem? Um dos anjos pareceu argumentar, como se incitasse os outros para, com ele, levarem-me, finalmente, para a morada celeste. No entanto, ainda era perceptível os rostinhos cândidos com muito receio de... tocar em mim? O que tinha eu, afinal? O pecado? E anjo tem medo disso? Me purificariam, com certeza, com seu toque, todo meu ser ficaria limpo só com tal graça, mas eu parecia deveras sujo; certo que errei bastante na vida, como qualquer outro. Garanto, porém, não ter matado, roubado nem feito covardia alguma. Sou apenas um alguém normal, talvez apenas um pouquinho miserável demais para estar na normalidade. Achei, entretanto, que isso fosse garantir algo no céu! Parece que me enganei. De qualquer modo, por que esses meninos não me levam de uma vez? Notei fixarem-se particularmente para minha barriga e minha testa. Que tem nelas? Sequer posso mexer meu corpo para averiguar algo estar errado. Lástima. Com os olhos, pouco posso ver — estou estirado no chão. Sinto apenas algo quente. Na discussão dos seres, um deles pareceu decidir: que não e que não! E os outros fizeram coro. Aquele que delegou a minha assunção pareceu ter se conformado, talvez porque ele mesmo não quisesse propriamente fazer o serviço. Achei: vão eles embora e serei condenado a penar pelas ruas? Virar encosto? Deus me livre! Eles novamente debateram e chegaram a uma conclusão... aleluia. Só que sumiram. Pra onde iam meus anjos? Para o céu luminoso, sem mim. Que me sobrou, afinal?

— Eu, meu filho.

E um braço esquelético me ergueu. Ora, era a Morte. A caveira branca cara a cara comigo. Foi nesse momento que pude ver meu estado e o porque daqueles belos seres terem se negado a mim: meu abdome ostentava um grande buraco, e várias outras marcas espalhadas. E não era só, a Morte me fez ver os também abertos em meu crânio e a minha cara desfigurada. Lembrei-me, então, dos momentos antes de cair. Eu andava em busca de um lugarzinho sobreado para passar a noite que ameaçava ser de chuva. Eu, meu mulambo e meu papelão. Foi quando ouvi os malditos sons de moto bem fortes chegando perto, e também gritos. Diante da minha visão, havia um grande morro: o da Serrinha, com as luzinhas do barracos de lá. Queria poder ter ao menos uma casinha ali, mas a rua era o meu lar. Foi meu lar e também meu túmulo, quando brilharam de lá vários pontos. Um empurrão me levou pra trás e a visão escureceu. Foi essa a minha morte. E pela Morte, compadecida do meu estado, eu caminhava rumo ao infinito.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 07/09/2023
Reeditado em 08/09/2023
Código do texto: T7880429
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