O Troféu

Fazia muito tempo que ela estava desconfiada de Sandro. Despertou no meio da noite após sonhos não muito apetecíveis. Uma angústia terrível se lhe assomou. Ele parecia dormir profundamente, percebeu ela enquanto ouvia seu respirar muito baixo. Haviam brigado algumas horas antes como nunca anteriormente. Uma discussão estapafúrdia. Ele não encontrara sua gravata para a reunião que faria na manhã seguinte e desferiu-lha adjetivos os mais absurdos.

Indignada, Rosa retirara-se após também dirigir-lhe impropérios e fora dormir. Não dormira muito bem. Ele quase a agredira. Arremessou-lha um objeto que ela acreditava ser um cinzeiro de cerâmica que compraram na Argentina alguns anos antes. Ela não sabia mais o que fazer com o marido – que tornara-se um homem agressivo e arrogante de uns meses para cá. Quinze anos de relação que ora está abalada.

Ela hesitou muito antes de se levantar. Ele continuava imóvel. Só percebia-o vivo porque o peito arfava morosamente. Acendeu o abajur. Ele não se mexeu. Ela precisava tomar rédeas daquela situação. Não podia lidar com a impunidade. A humanidade anda desmedida de suas virtudes. Se a acertasse horas antes, estaria ela agora na UTI de um hospital público – pois não têm convênio – e ela estaria lutando por sua vida. Tomaria uma atitude diante de tais brutalidades a cargo do marido. Na manhã seguinte, pensou, pediria o divórcio. Não queria mais ter de lidar com tanta agressividade. Suportara demais até ali. Sentou-se à cama. Ele continuava imóvel. Puxou o telefone para si e ao colocar o gancho ao ouvido, percebeu-o mudo.

Ela levantou-se. Conferiu se Sandro ainda continuava dormindo. Ele, paralisado. Notou que o fio da linha do telefone estava cortado. Um súbito desespero correu-lhe à espinha. Ela encheu um copo d’água e bebeu-o sofregamente. Estava descalça. A passos lentos, abriu a porta do quarto e vislumbrou o marido sobre a cama – a parecer que jazia morto. Saiu do quarto e caminhou pelo corredor escuro. Chegou à sala de estar – que estava desordenada por conta dos impulsos agressivos de Sandro – e acendeu a luz. Acercou-se do outro telefone: nenhum sinal. Os fios também estavam cortados. O breu da noite a assustava. A janela estava aberta, porém jamais conseguiria sair, pois moravam no décimo andar.

Vasculhou gavetas dos móveis da sala. Nenhum sinal de suas chaves. Seu celular também desaparecera. Não sabia a senha do celular de Sandro. Por essa razão, não sabia tampouco com quem ele falava. Tornara-se um homem misterioso depois de muito tempo. Pensou ela uma situação absurda: e se pegasse uma faca e findasse seu sofrimento a desferir-lhe sete facadas em seu peito? Não tinha impulsos assassinos. Pediu perdão a Deus por tais pensamentos. Contudo, estava presa. Sentia-se um animal acuado. E se ele acordasse?

Ela voltou à porta do quarto e vislumbrou-o com medo. Ele continuava dormindo. Parecia fingir, mas estava imóvel da mesma maneira fazia quase trinta minutos. Ele, de fato, não se mexia muito enquanto dormia. Porém, o fato de tampouco ter-se mexido, ter-se virado para um lado, ter-se tossido ou algo do tipo, a fazia desconfiar. Por que ele escondera as chaves, o seu celular, cortara o fio dos telefones? Se ela gritasse para chamar a atenção dos vizinhos, ele também despertaria. Iria inquiri-la o porquê da cólera. Começariam a discutir novamente.

Ela precisava agir. Lembrou-se da bolsa que ele guardava na lavanderia com algumas ferramentas: chaves de fenda, furadeira, parafusos, pregos e martelo. Além de uma variedade de coisas que ela não sabia suas alcunhas tampouco suas funções.

Tomou algumas ferramentas e dirigiu-se à porta. Com uma chave de fenda em mãos, tentava tirar os parafusos presos à fechadura.

De repente, sentiu o arfar de uma respiração atrás de si. Demorou-se um pouco para virar e percebeu o marido, com olhos de fúria, parado atrás de si.

- Está pensando em ir embora? – inquiriu ele, com uma voz sombria.

Em sua mão direita, estava um troféu que ganhara em uma competição de boliche. A estatueta consistia em um homem, bastante altivo em sua posição, a segurar uma bola de boliche.

Ela começou a chorar copiosamente. Não teve forças para responder-lhe. Impaciente, ele deu dois passos adiante e desferiu-lhe o troféu em seu rosto. Uma mancha de sangue sujou a porta. Ela caiu, a arrastar-se para a esquina da sala. Ele, incólume, continuou sua brutalidade: a ajoelhar-se perto dela, bateu por três vezes com a estatueta em várias partes do rosto da mulher. Ela ficou desfigurada. Ele só parou quando sentiu que suas funções vitais se haviam esvaído.

Uma poça de sangue formou-se sob o corpo da esposa. A parede que sustentava sua cabeça estava salpicada de manchas. Ele parecia triunfante. Notou algo diferente naquela cena. Limpou o suor da testa, dirigiu-se a um outro cômodo e tomou sua máquina fotográfica. Fotografou-a ali, toda ensanguentada. Por fim, ele colocou o troféu em sua mão direita e tirou sua última foto. Sentia-se como um verdadeiro artista e aquela era sua maior obra-prima.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 07/09/2023
Código do texto: T7880225
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