Eu era um lobisomem juvenil - Parte Final
Lembram daquela máxima de que quando estamos diante da morte, vemos nossa vida passar? Pura mentira, nessa hora você se apega ao presente! No meu caso, me concentrei na certeza que meus amigos viriam ao meu auxílio, novamente fui um tolo...
"De onde vem a indiferença, temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fábrica?" Fábrica - LU
Caído, tornozelo com o dobro do tamanho e sabendo que logo algo viria me recepcionar, fiz uma oração silenciosa para que alguém surgisse e me resgatasse daquela situação. Lembro de continuar ouvindo o desespero de Mônica querendo saber o que estava acontecendo, Maurício implorando para que tentassem me ajudar e Jhonny, o mais velho, o mais forte a quem eu nutria uma admiração enorme, o cara que eu sabia que em pouco tempo estaria em algum autódromo representando nossa cidade, nosso país, puxando Daniel pelo braço e falando para Maurício, que se ele quisesse salvar alguém que fosse sozinho, que eu já deveria estar morto, foi a partir daí que esse papo de revisar a vida, foi por água abaixo, pois, a única coisa que me venho na cabeça, foi a deslealdade daquele cara, a sacanagem com alguém que ele conhecia 9 anos, a raiva e a vingança, mas, tinha os olhos, os olhos que agora me encaravam e mostravam uma raiva maior que a minha.
Mesmo nas sombras o terror já chegava na minha mente me deixando paralisado, quando se mostrou, aí foi que percebi que na verdade nós seres humanos, estamos neste planeta por acidente, pois, só um acidente poderia colocar uma "Coisa" daquela no mesmo lugar de criaturas sem garras ou presas. "Ele" era a definição da morte, nada de caveira, manto e foice, a morte era um Lobo, um lobo monstruoso, olhos amarelos que fixavam no seu alvo e não desviavam por nada, com presas que destruiriam qualquer coisa ou pessoa, do tamanho de bezerro, mas, a pior parte é que bezerros não ficam em pé e tudo acabou de piorar, por que o que estava na minha frente acabou de ficar!
"Ou então espécie rara só a você pertence,
Ou então espécie rara que você não respeita
Ou então espécie rara que é só um objeto
Pra usar e jogar fora depois de ter prazer" A Dança - LU
O tumulto acima de mim já tinha terminado, me dando a noção que agora era eu e a fera, não sei por que, mas, só consegui sentir tristeza, não pela morte eminente que se anunciava, mas, por me sentir abandonado de não ter pelo menos alguém pra ouvir meus gritos de agonia(meio mórbido eu sei). Sei que vocês devem tá se perguntando: Cadê esse monstro que não ataca logo?, mas, veja bem! Para o participante de um momento tão louco como esse, uma fração de segundos é possível ter vários pensamentos, sentimentos e percepções , parecendo que se passaram horas e pode acreditar, mal tinha começado, pois, não sei de onde, vejo alguém cair bem na minha frente e ficar entre mim e o lobisomem sacudindo um pedaço de madeira, era Maurício, ele olhava pra mim e dizia: Tudo vai ficar bem cara! vou te tirar daqui!, Se eu pudesse dizer a Ele o que aquele ato me causou, o ânimo de achar que talvez não estivesse tudo perdido, que às vezes a vida pode sim acabar como filme, porém, lembrei da Sessão das 10 e que na verdade nós nunca ganhamos. A corrente se partiu, o barulho desse acontecimento, até hoje não sei como foi perceptível aos meus ouvidos, lembro de tentar avisar a Maurício que algo não estava certo, ele estava confiante que conseguiria, chegou a brincar que iria levar o "Coro" do bicho para expor no colégio, olhou pra mim e pela última vez nossos olhares se cruzaram, pois, ao tentar voltar seus olhos pra fera que ele tentava afugentar com pedaço de madeira, essa já se fazia presente ao seu lado e só com uma patada arrancou metade do seu abdome, vi um monte coisas cair do corpo de meu amigo e ele não gritou, ele não chorou, apenas disse: Foi mal cara! E naquele momento pra mim? fodasse! já não estava nem aí pra mais nada.
Mesmo tendo no tornozelo uma melancia de tão inchado que estava, quando vi aquilo destroçando o corpo do meu "irmão", consegui levantar, a minha frente estava o pedaço de madeira com o qual Maurício tentava me proteger e seria ele que iria por fim naquele pesadelo(poético não?)Mas, de poesia aquela noite não tinha nada. Tentei acertar o bicho o mais forte possível, nas costelas, mas, o miserável nem sentiu, estava tão entretido com a carne de meu amigo que apenas dispensou uma "mãozada"(se é que aquilo era uma mão) Para que eu não incomodasse seu banquete, senti meus pés saírem do chão e fui parar do outro lado daquela sala. Momentaneamente perdi os sentidos e não sei como não partir dessa pra uma melhor, pois, mesmo percebendo que ele apenas quis me afastar da sua "refeição" foi um golpe forte(o qual forte aquela besta era?)
Quando recobrei os sentidos percebi que o barulho dos osso se partindo tinha parado, havia caído atrás de uma máquina que deveria ser usada para moer a cana de açúcar e percebi que próximo a mim havia uma abertura na parede, o corpo estraçalhado do meu amigo e o sangue retirado e espalhado por metade do ambiente conseguiu camuflar meu cheiro, pois, de onde eu estava notei que o lobisomem farejava, deveria ter acabado de terminar sua refeição e já procurava a sobremesa.
sempre achei que os Heróis ou vestiam capa ou usavam máscaras, mas, acabou que o verdadeiro herói se apresentou pra mim de bermuda, camiseta e com um pedaço de madeira na mão e no final ele me salvou mesmo, seu sangue disfarçou meu cheiro, sua carne tirou a atenção em mim, tudo ficaria bem meu amigo.
"Tudo é dor e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor" Quando o sol bater na janela do teu quarto - LU
A vontade de sair e vingar meu amigo passou na minha cabeça, mesmo sabendo que seria morte certa, mas, a dor de saber do sacrifício dele, me impulsionava para levantar e enfrentar aquele bicho, mas, aí a valentia acabou, por que no momento em que decidi retroceder e ter minha vingança depois, entrando na abertura que havia na parede, ouvi aquela respiração e um grunhido que se fosse falado, teria dito: te achei!. Rapidamente tentei acessar aquele espaço que por sorte cabia apenas um garoto de 14 anos, porém, como disse, de poético aquela noite não tinha nada, com o tornozelo machucado não tive desenvoltura nem rapidez e quando já achava que estava seguro no meu esconderijo, sentir a segunda pior dor da noite, uma mordida que por sorte não arrancou meu calcanhar, foi algo excruciante, o lobisomem tentava me puxar para fora, mas, não sei como sua mordida não foi suficiente para me segurar, com a outra perna chutei seu focinho e consegui ir mais para o fundo daquele pequeno buraco. Ao ver que não conseguiria me alcançar, ele se pôs a se jogar contra a porta, em todo aquele tempo que fiquei ali, não havia percebido nenhuma tentativa de fuga daquela criatura, mas, acho que a nossa presença, Maurício e agora meu sangue, despertou o instinto predador e ele sabia que tinha mais gente lá fora e durante toda madrugada eu fiquei rezando para aquela porta não ceder, para Mônica já está bem longe dali e que eu sobrevivesse, pois, queria minha vingança.
Acordei com alguém me chamando, sim, por incrível que pareça adormeci, mesmo com aqueles urros e pancadas o cansaço e a perda de sangue me derrubou, mesmo sendo visitado de vez em quando pelo lobisomem que ainda tinha esperanças de me alcançar, meu cérebro me desligou. Ouvi a voz de um ser humano, depois de uma noite uivos e grunhidos, foi uma benção, até o momento que descobri de quem era a voz, meio confuso, meio tonto, fui conseguindo distinguir o a voz de quem me chamava, era Jeremias, o ódio tomou conta de mim, me rastejei até a saída já planejando uma forma bem dolorosa de acabar com a vida daquele maldito, fingiria que não tinha ligado os pontos, esperaria ele se distrair e o mataria. Sai do buraco, fiquei um tempo escondido atrás da velha máquina, achei uma pedra e dei início ao meu plano, a mente estava tão voltada para vingança que não me fiz as duas perguntas mais lógicas de todas: como sobrevivi com um pé quase decepado? e como consigo andar? Vejo isso depois! O ambiente que na noite anterior era em sua grande parte coberto pela escuridão, hoje estava totalmente iluminado, vi o corpo(ou o que restou dele) de Maurício e vi Jeremias, ele estava ajoelhado, do lado do corpo, com a mão no rosto, deveria tá envergonhado, maldito, vai ser mais fácil do que pensei, me aproximei bem devagar, pedra na mão, olhar fixo, faltavam só alguns metros, ergui a pedra, foi quando ele ergueu o rosto, que estava enxarcado de lágrimas e seus olhos passavam uma dor que eu só poderia ter visto se tivesse me olhado no espelho ontem, ele olhou pra mim e disse: Faça! por favor faça! e eu fiz, não sei quantas vezes aquela pedra subiu e desceu na direção do rosto dele e mesmo assim ele permaneceu plácido. Acho que para o velho Jeremias os Heróis mancam e tem uma pedra como arma, ele achou a paz.
"Mas agora a coragem que temos no coração
Parece medo da morte, mas não era então" Soldados - LU
Mancando, com o corpo dolorido, encharcado de sangue que não era meu, consegui chegar em casa, na qual se encontravam várias viaturas, repórteres e emissoras de TV's, meus pais ao me ver vieram correndo na minha direção, Mônica estava junto, mas, acho que não deve ter contado o que realmente aconteceu ou que já sabia o que tinha acontecido, apenas me abraçou e sussurrou que me amava, não dei muita importância, afinal eu tinha visto meu melhor amigo morrer, meus amigos me abandonarem e tinha matado alguém, com certeza um "Eu te amo" não melhoraria meu dia, ela percebeu e se afastou triste. Depois muitas de explicações, desculpas e mentiras o resultado foi: 5 amigos saíram para uma aventura e um se perdeu na floresta, o sangue no corpo não foi muito levado a sério, não me perguntem porque , por que nem eu mesmo sei, mas, uma coisa eles haviam errados, pois, o único amigo que eu tinha morreu naquela noite tentando me salvar e hoje a noite eu provaria isso.
Dizem que todo mundo espera alguma coisa de um sábado a noite e na verdade eu também, e apesar da pouca idade, nunca fui burro, sempre segui a lógica e era apaixonado por filmes de lobisomem, portanto, se alguém é mordido e no outro dia ao invés de estar morto, esta sentando fazendo um lanche, alguma coisa tem ai e eu já sabia o que tinha e diferente do normal aceitei, planejei, pois, Maurício não tinha morrido em vão. Os gritos de Mônica ainda estavam na minha memória, por isso, seu nome não fazia parte da minha lista, a noite caiu, a febre veio junto, a queimação na pele, a dor e ódio, por coincidência meus pais saíram, falei que queria ficar sozinho, aproveitei a situação da noite passada e sabia que eles iriam fazer minha vontade. A transformação só é lembrada nos espasmos iniciais, depois é só a escuridão, mas, havia uma memória que nem o lado bestial me fez esquecer, era imagem de Maurício erguendo aquele pedaço de madeira e me dizendo Tudo vai ficar bem cara! vou te tirar daqui!" e as trevas se apossaram de mim
"Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira
E quando chegar a noite, cada estrela parecerá uma lágrima" A Via Láctea - LU
O domingo amanheceu sombrio, 02 garotos foram achados mortos, um morto em casa e outro na velha usina, no mesmo local foram achados os corpos em decomposição de um garoto que depois foi identificado como Paulo Maurício e de um idoso identificado como Jeremias o vendedor de algodão doce, ambos mortos com sinais de violência, o garoto parecia ter tido partes do corpo devoradas e o homem parece que teve o rosto desfigurado. Acordei com meus pais falando sobre estas manchetes do Jornal local, fingi que não ouvi, sentei para tomar meu café, pois, mais tarde teria que ir para o enterro coletivo no ginásio de esporte. Durante todo o tempo, fiquei ao lado do caixão de Maurício, todos estranharam, até surgiram comentários já que nos 04 éramos inseparáveis, mas, não iria deixar meu irmão sozinho, Mõnica se aproximou e disse "eu pedi que eles te ajudassem" como se estivesse se desculpando e senti um pouco de medo na sua voz, a olhei e respondi "Eu sei!" e me retirei
São 20h de um domingo maluco, sem meu amigo, sem minha namorada, sei que daqui pra frente nada será igual. Minha simples presença neste mundo coloca todos que ainda amo em perigo, trará sofrimento aos que conheço, destruirá vidas daqueles que nunca conheci, mas, que podem se encontrar comigo em noite de Lua. Hoje é a última Lua Cheia do mês, não quero passar este fardo para ninguém mais e por experiência própria sei que para matar um lobisomem é só matar o homem em que a fera habita, mas, o espasmo estão chegando, não vai dar tempo de pegar a arma, a dor chegou, confusão mental: Maurício me ajuda! Ainda não será esta noite, não sou covarde! mas, antes de perder os sentidos, escuto a porta atrás de mim abrir..."Renato!?"... NÃO! MEUS DEUS! MÔNICA? escuridão!!!!
"Quem um dia irá dizer que não existe razão, nas coisas feitas pelo coração
E quem me irá dizer que não existe razão" Eduardo e Mônica - LU