Depois daquela praia...- CLTS 24
O sinal do celular estava oscilando apesar de estar em um local que tinha uma cobertura de internet muito boa. O que mais lhe chamou a atenção foi o fato de não ser apenas o seu aparelho de telefone que estava dando esse problema. O televisor do restaurante também ficou temporariamente sem sinal, mas antes da falta de luz ela ainda conseguiu ver que o jornal falava sobre uma tempestade solar que estava causando pequenas interferências na eletricidade e nos telefones.
Por um momento, Sally olhou em direção ao céu ensolarado e começou a pensar se as tempestades solares poderiam ser mais graves do que falavam. Começou a se perguntar se o Sol poderia se mostrar um inimigo. Lembrou de algumas correntes e boatos que recebeu por uma rede social. Estava com esses pensamentos em mente quando sua sobrinha voltou do banheiro e constatou:
-A senhora parece com o pensamento distante.
-Não é nada. Apenas pensando em umas mensagens e boatos que li esses dias.
-Esqueça essas coisas. E estava pensando acho que devemos ir à praia depois do almoço, acho que isso vai lhe ajudar a relaxar. Conheço uma que não terá quase ninguém. O vento que vem do mar vai mandar essas paranóias para longe.
Sally concordou, mas continuou pensando no assunto.
*
Havia somente os três na praia e eles gostavam disso, pois tinham a sensação que aquele belo lugar pertencia somente a eles. Hugo o irmão do meio olhava para as simples cabanas de pano que eles haviam montado. Iriam acampar naquela noite.
Vivi, a irmã caçula, estava brincando na areia enquanto Dani, a irmã mais velha ,olhava para eles com o seu olhar de constante atenção. Ela cuidava deles desde que a mãe deles os deixou. Dani se esforçava para cumprir o prometido à mãe antes dela partir para outro mundo.
Moravam perto da praia e o costume de acampar começou como uma forma de lidar com a saudade e de aproximar os irmãos. Às vezes eles acampavam na praia, outras no quintal da casa deles, que era cheio de legumes e árvores frutíferas e quase fronteira com uma floresta. Estavam acostumados com aquela vida tranquila e Dani não via motivos para levar os irmãos à cidade, a não ser durante os períodos de aulas, mas como eles estavam de férias escolares aproveitavam para ficarem isolados com aquela praia só para eles. Também não sentiam falta das tecnologias que viam pelas ruas da área urbana.
Estavam tão habituados a serem somente eles naquela imensidão de areia que estranharam quando viram uma senhora e uma adolescente se aproximando.
-Essa praia é nossa!-gritou Vivi para espanto de todos, correndo na direção dos visitantes. A senhora e a adolescente se olharam espantadas.
-Vivi!- brigou Dani de forma firme, mas gentil ao mesmo tempo.
-Sinto muito pelo que minha irmã disse. Mas é que não estamos acostumados a receber visitas por aqui. Pouca gente conhece essa praia.
-Tudo bem. Sabemos disso. Por isso escolhemos essa praia. Às vezes tudo que queremos é tranqüilidade. – a senhora sorriu de forma gentil e se apresentou- Meu nome é Sally e essa daqui é a minha sobrinha Andréa.
-A senhora fala de um jeito diferente.- disse Vivi novamente deixando os irmãos envergonhados.
-É que não sou daqui. Vim de outro país, mas digamos que o país de vocês me conquistou.
-Acho legal esse jeito.-disse Vivi sorrindo. Logo estavam todos sentados na areia e conversando. Em algum ponto da conversa surgiu o convite para que elas acampassem com eles. Andréa agradeceu o convite, mas disse que precisavam ir. Sally por algum motivo, mesmo que tivesse acabado de conhecer os irmãos, ficou tentada a ficar um pouco mais naquela praia. Não sabia explicar o porquê de achar que ficaria mais segura naquele local, assim como não sabia explicar o porquê dos pensamentos sobre ter algo de errado com aquelas frequentes faltas de energia e com a tempestade solar que comentavam no jornal.
*
No dia seguinte enquanto iam para o supermercado Andréa falava animadamente, mas a conversa agradável teve que ser encerrada de forma abrupta no momento em que Sally teve que frear o carro de repente.
-Tia, que foi que aconteceu?- perguntou a menina. Olhava pela janela tentando entender toda a confusão que via ao seu redor. Pelo que conseguiu perceber os semáforos tinham parado de funcionar de repente, provavelmente devido a mais uma das frequentes falta de energia. Percebeu que o celular também estava sem sinal ou com a internet oscilando.
Os donos de carros que foram batidos na confusão estavam tentando ligar para algum guincho, mas pela expressão não estavam tendo muito sucesso na chamada. O céu estava ficando nublado como se fosse chover o que aumentava ainda mais a urgência da situação.
-Temos que chegar logo em casa. –disse sua tia descendo do carro carregando seus pertences.
-Como assim? Vamos deixar o carro aqui?- disse Andréa confusa.
- Não sabemos quando essa luz vai voltar e é melhor estamos logo em casa rápido.- disse sua tia pegando uma lanterna, porque a cada minuto o céu ficava mais nublado. – Acho que podemos precisar disso.
A menina não disse mais nada e logo seguiu a tia, pois pelo olhar da mulher soube que ela suspeitava de algo pior. Pelas ruas da cidade viu pessoas pegando guarda-chuvas como se esperassem que fossem chover e outras pessoas ainda tentavam usar o celular ou tentavam chegar em casa em meio ao trânsito descontrolado.
O clima nublado foi se intensificando em poucos minutos, era como se o Sol fosse se apagando cada vez mais. Andréa começou a dizer para si mesma que talvez fosse um eclipse que não previram, porém quando tudo ficou escuro um grito escapou da sua boca. As únicas luzes restantes eram de lanternas e da tela dos celulares que formavam pequenos pontos luminosos na escuridão.
Sally estava tão nervosa quanto Andréa, mas conseguiu acalmar a sobrinha o suficiente para que conseguissem chegar até a casa delas, pois o medo fazia a menina correr em círculos. Respirou aliviada quando finalmente atravessaram a porta do local onde moravam.
A mulher tentou manter o controle e foi procurar velas para iluminar os cômodos escuros, como sempre faziam quando faltava luz, porém dessa vez Sally pensou que talvez fosse melhor economizar velas. Usou apenas uma, após colocar o foco de luz no cômodo as duas ficaram um tempo que não souberam precisar apenas se abraçando, esperando que uma delas dissesse alguma coisa que aliviasse a tensão.
Sally queria dizer algo, mas palavras fugiam de sua boca e os temores em que pensou ao longo do dia voltaram a dançar por sua mente como as chamas da vela.
A sensação de isolamento era sufocante e foi se intensificando com o passar do tempo. Sem internet e televisão não tinham como saber como estava o resto do mundo e nem se tinham cientistas e profissionais da área buscando uma solução para o evento. E essa sensação piorava por estarem trancadas em casa. Parecia que as paredes encolhiam e o local se tornava mais apertado conforme as dúvidas e medos tomavam os espaços. Sabiam que não era seguro sair, pois estava uma confusão do lado de fora.
A escuridão sempre foi um medo muito antigo do ser humano e não demorou para que Andréa começasse a pensar ter visto coisas. Era quase como se pudesse ouvir garras pegajosas se arrastando lentamente pelos lugares que não eram iluminados pelas velas, o silêncio dentro do apartamento intensificava tudo. Pensava que ela não era a única, pois as pessoas na rua pareciam meio desequilibradas. Não sabia precisar quanto tempo tinha se passado, mas o escuro, a ausência de comunicação e mais o medo faziam parecer que tinham se passado dias.
Fogueiras começaram a se espalhar pelas ruas a medida que as horas de escuridão continuavam. As pessoas estavam quebrando móveis e outras coisas para que pudessem manter o escuro e o que eles pensavam que se escondia nele o mais longe possível.
Em um certo momento Andréa teve a impressão que sentiu cheiro de carne queimada vindo de algum lugar da rua, ela fechou rapidamente a fresta da janela em que estava olhando para o lado de fora, não queria ter a confirmação de suas suspeitas. Preferia não saber mais o que estava ocorrendo nas ruas. Mas o barulho continuava a chegar até ela. Vozes diversas gritavam tentando arrumar uma explicação ou brigando, som de tiros e de discussões que se intensificavam conforme o fogo das fogueiras iam diminuindo.
Tentava abafar o barulho de fora e os medos de dentro, falando com a sua tia. Mas com o passar do tempo era difícil se concentrar em algum assunto, por causa da sensação de incerteza que permeava o ambiente a cada dia que elas dormiam e acordavam e o Sol continuava adormecido e apagado.
Em um certo momento o cheiro de comida estragada começou a se espalhar pelo local, sem geladeira não tinham muito o que fazer e não achavam seguro ir até a rua levar o lixo para fora. E Andréa achava que não ia adiantar muito, pois um aroma azedo parecia entrar pelas frestas da janela vindo do lado de fora também. Outra coisa que a assustava era o silêncio vindo da rua, em algum momento os barulhos de confusão pararam e apenas a ausência de som era ouvida. As fogueiras pareciam queimar mais ao longe.
Elas estavam se alimentando dos alimentos que não precisavam serem refrigerados, mas sabiam que uma hora iriam acabar e não tinham como sair para comprar, até porque uma boa parte dos alimentos do mercado teriam já estragado ou sido roubados pelo povo desesperado. Mas o que também a preocupava era a alimentação a longo prazo, pois se o Sol não voltasse a brilhar normalmente não teriam como fazer plantações. Tinha medo do futuro e mais medo ainda do presente.
E o medo de garras pegajosas se espreitando na escuridão de vez em quando voltava a mente de Andréa, principalmente quando a luz das velas ficavam mais fracas ou tremiam. Esse pensamento estava presente desde o primeiro dia, mas naquele ponto do tempo tinha a certeza que tinha ouvido o barulho de algo arranhando a parede, perto dela.
-Andréa?-ouviu a voz da sua tia lhe chamando. Estava concentrada no barulho dos arranhões que não respondeu imediatamente.
-Querida, pare de arranhar a parede.- sentiu as mãos de sua tia segurarem o seu pulso, havia preocupação na voz dela. Andréa por um momento não entendeu nada, mas quando olhou para uma de suas mãos notou suas unhas gastas e uma das unhas moles. Estava tão nervosa naquela situação que em algum momento começou a arranhar as paredes sem notar.
- Devíamos ter ficado naquela praia. -comentou Andréa quando conseguiu se acalmar um pouco, ainda sentindo que a tia segurava com carinho delicadamente nas suas mãos.
-Não iria mudar nada. - respondeu Sally com a voz cansada, mas ainda carinhosa. No fundo ela também de vez em quando se pegava pensando naquela praia, havia sido o último local de calmaria em que estiveram antes de se verem mergulhadas naquela nova realidade de escuridão pós apocalíptica.
-Mas pelo menos estaríamos sentindo o cheiro do mar. -respondeu Andréa um pouco mais calma, aparentemente se apegando nas lembranças de tempos melhores onde o Sol brilhava forte.
Sally passou o braço ao redor do ombro da sobrinha de forma carinhosa, tentando a acalmar, pois tinha notado que a última vela que tinham estava quase no fim. Fechou os olhos, convidou a sobrinha para lhe acompanhar em uma oração.
*
-Essa noite está demorando a acabar. A gente acampou, comeu frutas, dormiu dentro de casa e a noite ainda não acabou. - comentou Vivi que havia acordado e dormido várias vezes ao longo dos dias. Em sua inocência achava que estava o tempo todo vivendo a mesma noite. Os irmãos preferiam que ela continuasse assim, sem as preocupações e os medos.
-É apenas impressão sua. Como está tudo quieto temos essa impressão, já comemos vamos voltar a dormir. - disse Dani voltando a se deitar perto da garotinha e de Hugo. Com aquela noite sem fim, ela preferia ter os irmãos o mais perto possível dela. A luz da velha lamparina iluminava o ambiente. Mesmo antes da escuridão, eles já viviam sem eletricidade.
Do lado de fora as únicas coisas que se ouviam era a calmaria do vento e o som do mar que parecia suavemente os convidar para dormir mais um pouco, os sons dos gritos e confusões da cidade e o cenário de despero não chegavam até eles. O fim do mundo ainda não tinha alcançando aquela praia.
Tema: Mundo pós apocalíptico