Cangaço: Amor e Morte — CLTS 24.
By: Johnathan King
1.
Matando o cão, se acaba com a raiva.
Venâncio cresceu à sombra do pai cangaceiro, o sanguinário e impiedoso "João Pestana", guardando em segredo que não poderia seguir os passos do mesmo e alimentando no mais profundo da alma o desejo de viver outra vida longe de toda a violência que seus pais e o cangaço representavam para ele. Embora Pestana e a mulher, Verona, fingissem ou não quisessem enxergar a realidade dos fatos, era nítido para todos os outros do bando que Venâncio tinha algo diferente. O achavam um "moço sensível", mas não se atreviam a esboçar abertamente o que pensavam do filho do chefe, temendo por suas vidas, mas nas entocas os falatórios maliciosos a respeito da intimidade do rapaz era o assunto preferido dos cangaceiros.
Nas profundezas da noite e longe do olhar curioso e acusador dos outros, quando o luar lançava suas sombras sobre a vegetação rasteira da caatinga, Venâncio e Lêlito saíram furtivamente de suas redes de dormir armadas próximas e recuada do restante do bando. Os dois jovens cangaceiros e amantes pisavam macio no chão, procurando não fazerem barulho ao andarem, feito um casal de gatos vadios pulando nos telhados nas madrugadas quentes para namorar escondidos. Venâncio e Lêlito viviam uma tórrida e proibida história de amor sobrepondo todos os perigos possíveis, os dois amantes se entregavam em ardentes e picantes encontros sexuais no mato, buscando sempre evitar serem vistos por alguém do bando.
No entanto, o cangaceiro Bira do Pindaré que já estava de olho na dupla fazia algum tempo e até desconfiado de que rolava algo entre o filho de Pestana e o novo homem de confiança do chefe, resolveu seguir os dois e viu quando eles entraram disfarçadamente mato adentro, sumindo da sua vista na penumbra da noite. Não contendo mais a curiosidade que o consumia e matava que nem gato, Bira do Pindaré adentrou pelo mesmo caminho que Venâncio e Lêlito fizeram momentos antes e os pegou em flagrante na hora do ardente sexo.
— Entonce essa é a safadeza que às duas florzinhas fazem toda noite quando saem escondido, num é? — disse Bira. — Deixa o capitão e os outros do bando ficarem sabendo da pouca-vergonha de cês dois, seus sodomitas lazarentos.
Num silêncio ofegante, o casal de amantes cangaceiros ficaram paralisados pelo temor de serem descobertos por todos.
— Ocê num vai fazer isso, seu desgramado dos infernos — disse Lêlito, avançando para cima de Bira com um pedaço pesado de pau nas mãos — Eu num vou deixar. — Uma súbita explosão de ira irrompeu nos olhos do cangaceiro. Ele atacou o outro sem dar chances de defesa, golpeando mortalmente na cabeça, fazendo os miolos saltarem para fora com violência.
Bira do Pindaré caiu morto!
2.
Meias verdades, grandes mentiras.
Venâncio demorou um momento para recuperar a voz.
— Tu mataste ele, Lêlito. Quando painho ficar sabendo, ele mata nós também.
Lêlito respirava com dificuldade, tentando recuperar o controle.
— A gente... a gente... Vai se livrar do corpo do cabra, eu e tu, e nós vamo guardar esse segredo até a morte, tu me ouviu, Venâncio?
O filho de Pestana acenou com a cabeça e disse calmamente.
— Ouvi, sim!
Lêlito fitou Venâncio, os olhos brilhando, e apertou a mão dele.
— Ninguém vai nunca ficar sabendo que a gente fez aqui, e nem também do nosso amor, Venâncio. Isso eu te prometo em nome da minha finada mãezinha que tá lá no céu com minha Nossa Senhora e meu padim padi Ciço.
Um momento depois, os dois cangaceiros estavam se desfazendo dos restos mortais de Bira do Pindaré, cortando o corpo do bandido em pedaços pequenos e colocando num saco de couro feito com as próprias roupas do morto. Colocaram pedras grandes dentro e fecharam. Em seguida, correram até um rio que cortava a região onde o bando estava se abrigando, e então, jogaram o corpo em pedaços ensacado lá dentro.
Quando a noite foi se agonizando no clarão da aurora, antes mesmo do primeiro canto do galo, Lêlito e Venâncio já estavam de volta ao acampamento e em suas respectivas redes de dormir, enquanto olhavam para o céu cinzento do amanhecer em silêncio.
Nas primeiras horas da manhã, João Pestana deu pela falta do cangaceiro Bira do Pindaré.
— Cadê o Bira? — perguntou o chefe dos cangaceiros. — Num vi as, fuça dele ainda hoje. Chamem o cabra pra mim.
Venâncio fechou os olhos e lembrou da morte de Bira, os pensamentos transformados em uma rodopiando tempestade de medo e arrependimento.
— Ocê viu o Bira? — perguntou alguém para Venâncio.
Os olhos do rapaz se abriram.
— Vi não — respondeu ele, evitando encarar o outro de frente. Sentindo um súbito desconforto.
Lêlito observava do outro lado do acampamento Venâncio ser interrogado. O cangaceiro inclinou a cabeça, fazendo sinal para o amante.
Ao longo daquele dia não se soube qualquer notícia do paradeiro de Bira do Pindaré, e Lêlito se empenhou pessoalmente em espalhar informações falsas aos companheiros de cangaço para confundi-los, coisas do tipo: "Bira fugiu com uma rapariga que conheceu numa currutela no meio da estrada". Ou então: " Bira conheceu uma bandoleira de outro grupo e fugiu pra lá com ela". Ou: "Bira foi ser jagunço numa fazenda do Pernambuco".
Lêlito fez um bom trabalho espalhando meias verdades e grandes mentiras para os outros cangaceiros, e com o tempo ninguém mais se lembrava de que Bira fez parte do bando deles. O segredo do amor proibido dele com Venâncio estava seguro outra vez, assim como a verdade sobre a morte e ocultação do cadáver do facínora praticado pelo casal.
— Ocês dois acham que me enganaram?
— perguntou Maria Flor para Lêlito e Venâncio. Ela era caso antigo de Bira — Eu nunca que acreditei nas lorotas que esse aí contou a respeito do meu Bira — Ela falava apontando uma carabina na direção dos dois, como uma forma de intimidação.
— Eu posso saber o que se assucede aqui? — perguntou a mãe de Venâncio e rainha daquele bando de cangaceiros, Verona.
Maria Flor emudeceu.
— Nada de mais, mainha — disse Venâncio, tentando aparentar tranquilidade nas palavras. — A Maria Flor só veio nos mostrar a carabina que ela ganhou na última invasão que a gente fez, num é Flor?
— É... É só isso mermo — disse ela. — Agora deixa eu ir pro meu canto.
Maria Flor saiu da presença dos três aterrorizados, sendo acompanhada pelo olhar de águia de Verona.
3.
A história de Lêlito.
Lêlito estava deitado em sua rede, meio que cochilando, quando lembrou por um vislumbre do seu passado.
Na memória veio o dia que foi salvo por João Pestana e seus homens na estrada poeirenta e pedregosa do sertão cearense, delirando de fome e exaustão. Já quase perdendo a coinciência, se viu ao entardecer sendo cuidado por Verona e outra cangaceira num acampamento próximo de onde os trilhos de trem cortavam a paisagem sertaneja.
— Donde é que eu tô? — a voz dele soou oca.
— Aqui e em lugar nenhum, moço — respondeu Verona, enquanto cuidava dos ferimentos que Lêlito tinha por todo o corpo. — Mais um pouco e eles tinham dado cabo de ocê de tanta coça que levou, oia quanto ferimento. Foi padim Ciço que te sarvou dessa emboscada do mardito.
— É. Foi sim.
Quando seus olhos cruzaram com os de Venâncio, foi num fim de tarde, quase antecedendo o crepúsculo. O sol tingindo de rosa e laranja as nuvens no horizonte, e rios de luz prateada corriam pelo sertão agreste.
Era um entardecer perfeito.
Lêlito observava o rosto do jovem cangaceiro passar por uma série de mudanças, da indiferença à curiosidade e ao interesse.
— Meu nome é Lêlito — disse ele, afinal, estendendo a mão para cumprimentar Venâncio.
— É. Fiquei sabendo pelos outros. Chamo-me Venâncio.
Com o tempo, ambos se descobriram irresistivelmente atraídos física e amorosamente um pelo outro, não conseguindo mais manter o controle da paixão avassaladora que os estava consumindo.
Saíram numa noite de lua cheia, tendo o céu azul e frio ao fundo, olhando ao redor; de um jeito furtivo e secreto, temendo serem seguidos. Então desapareceram no mato.
Lêlito era um amante versátil, ardente e hábil na arte de amar. Era insaciável e o sexo durou quase ao amanhecer.
4.
O alvorecer do dia vermelho.
Os grandes olhos de criança do pequeno Lêlito perderam a inocência muito cedo, numa manhã cinzenta e chuvosa, viu quando os cangaceiros invadiram sua casa e mataram seu pai bem diante dele com um tiro de fuzil no peito, ceifando sua vida de maneira instantânea.
Testemunhou o estupro da mãe e das duas irmãs mais velhas, e depois seus assassinatos. A criança chorava copiosamente enquanto era acalmado por sua cuidadora, uma velha senhora chamada carinhosamente pelos pais do menino de "Bá".
— Reza pra subir tu e o menino, véia — disse Bira do Pindaré, apontando sua espingarda para os dois.
— Se ocê relar a mão na véia ou no moleque, vai ser a última coisa que tu vais fazer nessa tua bosta de vida desgramada, seu lazarento mardito — disse João Pestana, com o cano da sua párabelo encostado na cabeça do outro. — Eu já disse pra ocês tudim que a gente num mata nem rela a mão em véio e em criança, seu desinfeliz dos infernos. Ninguém aqui é do bando daquele lazarento do Lampião.
Os olhos de Bira do Pindaré fuzilaram tanto a velha quanto a criança, e seus bigodes negros se eriçaram, como se fosse um gato nervoso.
— Tá certo, capitão — disse ele, virando as costas e saindo.
— Pode ficar sossegada, aqui ninguém vai relar a mão nem em ocê e nem na criança, tem a palavra de João Pestana.
O pai de Lêlito, Sebastião Camargo era um fazendeiro muito rico e conhecido na região de Bororó, no sertão do Ceará. No passado havia usado dos serviços escusos de João Pestana e seu bando de cangaceiros para se livrar de desafetos e se apropriar das terras deixadas por esses.
Usando de artimanha e do poder que o dinheiro pode comprar, Sebastião tramou um plano ardiloso para se livrar de seus novos companheiros de crimes.
Caindo numa cilada orquestrada pelo fazendeiro, Pestana viu metade dos seus cangaceiros serem assassinados, e ele mesmo escapou por muito pouco de ter sua cabeça cortada e enfiada numa lança.
Fugiu para o Piauí e lá ficou por um tempo tramando a sua vingança.
5.
A grande mentira.
— Você tem certeza de que esse plano maluco vai da certo mesmo, Lêlito?
— perguntou Paulo Freitas, o delegado de Bororó.
— Tem que da certo homi de Deus, eu passei todos esses tempos buscando o paradeiro desse mardito do Pestana
— disse Lêlito, com os olhos vermelhos de raiva. — Ele matou a minha família, eu nunca vou me esquecer daquele dia.
— Então tá certo.
Lêlito era volante na cidade de Bororó tinha pouco tempo, logo fez amizade com o novo delegado, Paulo Freitas, e confidenciou para o mesmo seu plano de se infiltrar no bando de João Pestana e os levar para uma armadilha, onde seriam mortos.
Mas se apaixonar pelo filho do seu maior inimigo não estava em seus planos.
Lêlito sempre soube que não gostava de mulheres, mas sim, de homens, e buscava sempre manter essa parte da sua vida em segredo.
Até conhecer Venâncio.
— Pode bater com força, cabra — disse Lêlito. — Tem que parecer que foi de verdade a coça que eu levei.
Lêlito estava junto com o delegado Paulo e outros volantes no meio de um descampado, onde estava sendo sumariamente espancado pelos companheiros.
Toda aquela encenação fazia parte de seu plano de se infiltrar no bando de João Pestana e os arrastar para a morte. Na cabeça de Paulo, no entando, tudo aquilo era uma grande de uma loucura.
Aquele plano nunca daria certo.
Lêlito havia passado boa parte do seu tempo buscando encontrar o paradeiro de Pestana e seus bandoleiros, mas apenas encontrar e os entregar para a polícia não estava em seus planos.
Ele queria sentir o prazer da vingança.
Sabendo da localização do chefe do cangaço na região de Bororó, Lêlito pós seu plano em ação: se disfarçou de cangaceiro, simulou uma falsa coça e por sorte engenhosa do destino os caminhos dele e de João Pestana se cruzaram.
6.
A grande cilada.
O dia do acerto de contas entre Lêlito e João Pestana se aproximava feito tempestade se formando num céu cinzento e raivoso, com raios iluminando a escuridão e cortando as extremidades de uma ponta a outra.
— Ocê tem certeza de que os macacos não vão tá lá? — perguntou Pestana para Lêlito.
— Tenho sim, capitão — respondeu ele.
Os bandoleiros então se organizaram e marcharam rumo ao pequeno município de Estância Velha, distante pouca coisa de Bororó. Eram poucas horas para um novo dia, as estrelas no céu iam se apagando lentamente e o clarão da aurora ia surgido no horizonte.
Lêlito olhou para trás e encarou Venâncio em sua montaria. Os dois tinham um olhar de cumplicidade.
Venâncio parou.
7.
Conspiração palaciana.
— Ocê tem certeza disso, Venâncio? — perguntou Lêlito.
— Eu te amo mais-que-tudo nessa vida, Lêlito .— respondeu ele.
— Vou matar teu pai, tua mãe e todo o resto. Ocê num sente nada?
— Eles fizeram por merecer. Eu nunca quis essa vida mardita pra mim.
Durante a noite, enquanto todos dormiam, Lêlito e Venâncio aproveitaram para retirar a munição das armas, fazendo assim com que os cangaceiros ficassem totalmente vulneráveis durante o ataque da policia.
Quando a emboscada aconteceu, todos foram pegos de surpresa, Lêlito e Venâncio estavam olhando tudo de longe. João Pestana e Verona foram abatidos quase que simultâneo, os outros também.
Lêlito e Venâncio se viraram dando de frente com Maria Flor apontando sua carabina para os dois.
TEMA: Cangaço.