SALÃO DEVIL - CLTS XXIV

DO DIÁLOGO

”Bom dia, Braga. Estou fascinado com tua última obra literária. Não fosse o toque da tua mão no meu ombro não teria voltado ao nosso mundo.”

”Há uma forma em especial de sair completamente da nossa realidade e ficar preso no universo paralelo contido nas obras literárias, meu caro Bernardo”, disse o autor da obra.

”Eu li teus textos e não vi lá essas coisas”, disse o outro, colocando o celular no bolso de uma das suas vestes.

”Tu falas como um lunático. Mas diga-me de que maneira eu posso ter um prazer na leitura de teus textos e mais além diga-me como posso visitar o mundo paralelo de tuas obras?”

”Resposta simples meu nobre. Tudo depende do meio. Veja bem que comer em um local fétido não é nada bom. Do mesmo modo, dormir em um local barulhento dificulta o descanso dos sentidos. Então tu achas que ler em um local silencioso é o bastante para ser abduzido pelas minhas histórias? Devo dizer que não! Há certos ambientes que favorecem o prazer da leitura de uma forma muito peculiar.”

”Tu estás me deixando curioso.”

”Muito bem. Ouso agora dizer, com todo o respeito, que ficarias paralisado ou até mesmo morreria de tanta excitação se apreciasse minha obra em um local propício… Isso não significa ler em tua casa sem o filho ou a esposa ao lado tagarelando, é necessário um local apropriado para penetrar em meus escritos.”

”O que é e onde fica esse local favorável?”

O sujeito que assim falara parecia aborrecido e levantou-se do banco da praça. O autor olhava para ele muito admirado, imaginando por qual motivo um simples comentário poderia dar lugar a tal diálogo.

”Ora tu deves saber muito bem o que quero dizer, Coutinho. A leitura de uma história de terror é o que proponho e em minhas condições.”

O indivíduo chamado Coutinho com um sorriso irônico perguntou:

”Então diga sem demora o local e a forma que deverei ler a tua história audaciosa?”

”Deves estar a sós. Durante a noite. À luz de uma lanterna. Entretanto, para que haja um efeito notável, deve deixar o medo visitar teu ser ainda que por um breve instante, um sutil vestígio do sobre-humano. Permita-se sentir o que tento provocar.”

”Queres dizer”, bradou ele, ”que diante e de acordo com tuas instigações eu me puser, poderás tu com teu escrito causar em mim abdução? Uma sensação gélida em minha alma?”

Braga levantou-se de súbito, e fitou-o nos olhos, cara a cara.

”Bem sei que não serias capaz de tal coisa… Vejo em teu olhar que te falta coragem”, destacou ele com notável expressão de falta de apreço.

”Ora! Agora estou afrontado. Coragem não me falta e nunca faltará”.

”Claro que és; mas, a principal dúvida é: terás coragem de saborear o meu texto na antiga sala comercial do Dedé?”

Coutinho era um homem muito zangado. Tais palavras soaram em seus ouvidos como um insulto.

”O salão daquele sujeito esquisito? Ora! Como entrarei lá?”

”Há um artifício para tal coisa, meu nobre”, disse Braga estendendo sua mão com uma chave micha. ”O horário mais propício é depois da meia-noite. Precisamente entre três e quatro horas.”

MADRUGADA

O relógio marcava 2h50, quando o homem caminhava na rua com algumas folhas de papel em sua mão. Coutinho era um destemido e, confiando em sua firmeza de espírito para enfrentar a situação proposta pelo colega, pôs-se frente ao antigo ponto comercial do finado Décio, ou Dedé, como chamavam os mais íntimos. Na fachada ainda estava escrito o imponente letreiro: SALÃO DEVIL. Era um antigo salão de beleza que fizera muito sucesso nas décadas anteriores ao ano de 2010. Atualmente fechado por negligência da família Vilhena que, após o desaparecimento do proprietário do local, simplesmente abandonaram o espaço.

Tirou do bolso a chave micha e enfiou-a na fechadura, o som da lingueta cortou o silêncio da madrugada. A rua Pedro Cipriano estava iluminada, mas dentro da sala comercial abandonada o negrume engolia tudo. Com a lanterna acesa adentrou a sala fechando a porta cautelosamente, como se houvesse alguém em seu interior. ”Que situação insignificante”, disse ele, seguido de um soluço. ”Como pude me sujeitar a algo assim?” 一 indagou a si mesmo. Há um motivo para Coutinho estar ali, para ele é a prova de sua masculinidade e para Braga é o prazer pelo medo alheio.

Naquele instante, Coutinho notara somente o silente mergulhado no negrume. Ao notar em seguida uma cadeira logo se aproximou e soprou a poeira, em seguida passou sua mão sobre o assento. A poeira era tanta que seu esforço não foi o suficiente para limpá-la, então sentou-se com a lanterna em uma mão e as folhas de papel na outra. Parecia estar mais pesado, talvez fosse só algo da cabeça dele. Segurando a lanterna com a boca ele abriu o livro lentamente como se esperasse algo saltar das páginas ou como se estivesse levantando algo um pouco pesado.

”Esta é uma história de imprecação sobre Décio Vilhena.”

Após ler a expressão o homem pareceu muito desconfortável, mas respirou fundo e continuou a ler:

”Dedé, como o conhecemos, viveu por muitos anos neste espaço onde tu estás neste exato momento. O jeito recluso e solitário dele sempre escondeu algo misterioso assim como seu sumiço. Talvez seja por isso que sua família simplesmente abandonou o antigo salão. O medo paralisa e arranca as pessoas de sua zona de conforto. Ninguém quer sentir isso penetrando em seu ser com rapidez colossal.

”Sua admiração pelo sobrenatural escondida nos seus gostos peculiares e seu passado desconhecido fizeram dele uma figura um tanto sinistra. Tu não o conheceste como eu. Então deixe que eu relate aqui para ti um pouco em torno dele. Não era má pessoa, apenas era um ser reservado, nada alheio lhe interessava e não gostava que se interessassem pela sua vida.

”Quando ele desapareceu e foi dado como morto, porque todas as investigações falharam em lhe encontrar, criaram em torno dele o status de lenda. Obviamente deu ao seu local de habitação também o status de um local de assombração. Nos primeiros anos após seu misterioso desaparecimento surgiram muitas histórias de vultos e vozes em torno do seu salão durante a hora morta.”

”Mas que merda é hora morta?”

Indagou o homem que já estava ficando tenso.

”Tais histórias foram confirmadas e documentadas. A morte também é um portal que serve de transformação bem como a leitura. Então um homem corajoso como tu estás em um local e em um horário de vibrações significativas. Agora tu miras estas palavras e a escuridão em teu entorno, mas estás paralisado como um peixe na isca não consegue sair. Se és realmente corajoso feche seus olhos, respire fundo e então mergulhe nestas palavras.”

Coutinho sentiu um lado de seu corpo paralisar e perdendo o controle caiu para o lado batendo sua cabeça com grande impacto no chão. E ele delirou. E em seus devaneios ele estava em uma rua mal iluminada. Pensou caminhar em direção a uma placa luminosa, impossibilitado de ver qualquer coisa além daquela luz intermitente. Por entre as sombras das casas ouvia um murmúrio em uma língua diferente.

Fixou seus olhos na porta de vidro e viu um homem sentado numa cadeira e sem pensar duas vezes adentrou o ambiente. Porém seus olhos não captaram mais o homem na cadeira. No seu lugar havia uma poça de sangue. O terror o havia lhe impregnado de tal forma que pensou ser uma conspiração contra si. Imaginou ser dele o sangue, estava com uma vaga lembrança de que estivera ali. Foi o momento do horror. Fechou seus olhos tentando lembrar alguma coisa. Todas as imagens em sua memória se misturavam frenética e caoticamente, parecia que sua cabeça iria explodir e ainda mais com a sensação de zumbido. Aquilo tudo era apavorante, desde os sussurros lá fora até aquele ambiente sinistro em sua frente. Entretanto sua coragem ainda habitava em seu âmago. E abrindo seus olhos ele disse:

”Devo estar ficando louco. Devo manter o controle pois isso é só um pesadelo.”

Foi quando viu sobre a cadeira um papel com letras escritas à mão. Aquela folha lhe parecera familiar. Sentindo uma sensação esquisita, improvável de descrever. Seus ouvidos foram surpreendidos por um grito infernal, que ficava cada vez mais audível e insuportável. O homem já não sabia se sentia coragem, pois medo para ele era uma fraqueza que não poderia ter. Seu único pensamento era concluir o desafio que lhe fora proposto: ler o escrito de Braga e retornar para relatar sua experiência de leitura naquele local. Estava paralisado, sob a espreita de algo.

A figura tão distinta de um homem com uma navalha na mão e uma toalha encardida era horrenda! Aquilo era um ser desumano; em seus olhos brilhantes e negros havia odio. Coutinho tentou correr para fora dali, mas seu corpo estava pesado demais para se mover. Era como se algo segurasse seu calcanhar fortemente sem dar chance para escapar. Logo percebeu que tinha controle apenas de um lado do seu corpo e de sua cabeça. A sua incredulidade pelo sobrenatural caiu por terra ali mesmo. Aqueles glóbulos negros e estranhos a examinar seu corpo inerte demonstrava um maleficio sobre-humano. E então a coisa lançou-se contra ele com uma força descomunal, jogando o homem contra a parede. Coutinho conseguiu recuperar seus movimentos em seguida como se aquela ação tivesse liberado sua cinética, mas já não conseguia pensar. Era como se todo aquele conjunto macabro tivesse causado nele uma espécie de hipnose. Ele conseguiu ver aquele ser satânico e parecia tentar se comunicar com ele. Aquilo veio em sua direção e com a navalha deu um pequeno corte em seu rosto e com um de seus dedos frios tocou o sangue, em seguida pegou um dos papéis que agora estavam em branco e escreveu algumas palavras.

”Não adianta tentar fugir!”

Em seguida olhou nos olhos do homem e sorriu com seus lábios cor de púrpura e sumiu.

A sua coragem havia partido lhe deixando aturdido. Quem cria seu próprio inimigo com força além da sua já se declara vencido. Mas sua mente nunca lhe criara ou haveria de criar algo assim. Coutinho sentiu mais uma vez aquela maldita sensação de estar sendo vigiado por algo antinatural. Sentiu sua nuca suavemente gelada e pressionada, tal e qual

um enforcamento. Jogado como um cadáver ao chão, ele viu o ser maligno em sua frente. Depois disso tudo escureceu seguido de um grunhido e total silêncio. Após alguns segundos, Coutinho pareceu recuperar seus sentidos. Estava ofegante.

Agora estava em um cemitério, o ar de total esquecimento e putrefação dominava tudo ao redor que também parecia sem vida. E foi-lhe apresentado um monumento fúnebre erguido em sua própria memória. No chão coberto por folhas secas estava um pequeno papel que fora gentilmente dobrado. Ele então pegou-o e abriu-o. As letras eram vermelhas e extremamente finas, algumas palavras difíceis de serem lidas devido a grafia. Mas ele leu as seguintes linhas:

”A morte já lhe devorou há tempo, teu protetor não está aqui para te auxiliar. Terás o mesmo fim que tiveram todos aqueles curiosos e incrédulos que se foram do mundo terreno para cá. Os demônios seguraram-te pelo braço e perna, teu Deus já não olha mais para ti. "

Ao olhar para o mesmo local onde havia o túmulo, viu agora uma cama com um homem deitado sobre ela. Coutinho estava pálido, aquilo para ele já era um auspício da sua ruína. Já não tinha mais dúvida de que estava morto, a sua esperança tinha morrido há tempo sem que percebesse. Mas ainda havia coragem nele e nada mais a perder, tocou o corpo que estava coberto parcialmente e em estado de apodrecimento. Removeu o tecido esbranquiçado e era possível ver seus ossos bem como sua coluna espinhal. Entretanto, quando focalizou no rosto daquele cadáver, o homem percebeu que era o seu próprio rosto.

25 HORAS DEPOIS

Braga não teve resposta do seu colega e sentindo sua falta resolveu notificar a polícia de que ele poderia estar no antigo salão do Décio VIlhena. Afinal ele sabia muito bem onde o homem estava. Depois poderia contar sua própria versão às autoridades.

Os policiais dirigiram-se para o local indicado, e encontrando a porta destravada, invadiram. No corredor viram pegadas sobre o piso empoeirado, elas iam ao encontro de um dos quartos. Entraram no cômodo e para a grande surpresa de todos não havia ninguém. As pegadas só eram visíveis naquela direção. E assim foram adentrando todos os aposentos, um a um. Então encontraram um objeto espírita. Era uma mesa circular com um pentagrama estampado em toda sua superfície e uma espécie de livro contorcido pelo fogo.

Braga deu algumas informações para que os investigadores pudessem se basear, mas nada de plausível. Logo noticiaram o desaparecimento do homem:

”Na noite de 6 de setembro de 2010, por volta das três horas da manhã, Coutinho Sousa saiu de sua casa e desde então não foi mais visto.”

Alguns dias passaram sem notícias de Coutinho. Mais uma desaparição incógnita. Sem solução e incompreensível para o povo da cidade.

DO JORNAL POPULAR: COLUNA ESPÍRITA

Diariamente morrem seres em todo o mundo; constantemente nascem mais no planeta, isto é, todos os dias aparecem e desaparecem pessoas. Acabando a vida o espírito some na imensidade. Outras vezes a morte leva o corpo junto. Comumente acontece quando o sujeito está sozinho e, como para muitos a morte é algo difícil de compreender, é confortável dizer que o sujeito simplesmente desapareceu.

Após dois dias do sumiço de Coutinho Sousa, foi a vez de Braga Mouro, um leitor de nossa coluna e também escritor local. Vale lembrar que antes de seu desaparecimento ele teve alguns delírios e conversava sozinho, rabiscava uma folha de papel com a seguinte mensagem:

”Sinto o cheiro da morte e não há nada que eu possa fazer. Minha hora chegou e devo aceitar sem resistir.”

Sobre um homem nessas condições, saber seu próprio destino é o suficiente.

TEMA: SALÃO DE BELEZA

Leandro Ferreira Braga
Enviado por Leandro Ferreira Braga em 02/09/2023
Reeditado em 25/09/2024
Código do texto: T7876091
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