Cinzas

Algumas coisas foram feitas para serem vividas somente uma vez. Morrer é uma delas.

Ana não conseguia dormir. Ela pegava no sono mas acordava e olhava para ele, o pote branco onde estavam as cinzas daquele que ela amou. Estavam ali porque uma urna parecia permanente, e não era para ser. Ele tinha deixado claro que queria ir para o mar, para aquela praia deserta onde eles construíam seus castelos de areia. Que se tornaria para sempre um cemitério de reinos e lar de um fantasma.

Ela estava presente no dia da cremação, e, antes desta, estava no velório. De boca fechada e olhar perfurante, ela desafiava a todos que pensassem em vir fazer alguma pergunta idiota. Ela não tiraria as dúvidas de ninguém, não hoje. Que fossem perguntar detalhes à sua sogra e falar da alma do falecido com seu pastor. Ela só conseguia pensar em como queria não estar ali, porque não queria se despedir.

Ela queria fugir, para qualquer lugar. E se deixassem o corpo só, por um momento que fosse, ela esconderia debaixo de seu corpo e ficaria ali até que todos fossem embora. Ela então sentaria com ele e ririam juntos dos olhares assustados. "Até parece que alguém morreu", diria ele. E eles sairiam para tomar sorvete. Ela quase sorria com a fantasia, até que encostou em sua mão e sentiu o frio, o nada.

Ela queria fugir dali, porque esse manequim mal maquiado não era ele.

Ele ainda iria voltar do mercado com o pão fresco para comerem juntos com manteiga. Hoje ele teria esquecido o leite, porque ela o tinha excluído sem querer da lista de compras deles.

Tão sem sentido quanto o velório foram as despedidas finais e o caminho para a cremação. Ela precisou ir ao banheiro. Se trancou na cabine sanitária mais ao canto e, com uma mão na boca, se apoiou na parede e se contorceu. Seu nervoso vinha de forma forte e descontrolada. Ria muito e mordia a mão para não gargalhar alto. Todo o seu corpo tremia. E ela odiava sua falta de controle, o jeito perverso que seu cérebro forçou como forma de diminuir a tensão.

Quando tudo acabou, sobrou o pote e a promessa. E enquanto acordava suada à noite e tateava a cama para procurar por ele, ela parecia sufocar. Já era a terceira noite que ele não a deixava dormir, e ele sabia que ela precisava muito dormir. Ele sabia disso, ele a conhecia. Revoltada, ela quis mandar ele ficar quieto. Mas era areia. Ela queria gritar com ele, queria perguntar, questionar, reclamar. Mas ainda era só um pote com areia.

Levar para o mar não era uma possibilidade, ela não cederia às suas vontades, já que não foi nem capaz de trazer o pão. Ah, ele ouviria, sim, ele ouviria. Ela lhe daria orelhas para que ouvisse e não ouviria nenhuma desculpa.

Perturbada, ela foi até a área de serviço e pegou uma lata de tinta que sobrou de quando reformaram a sala. Então voltou ao quarto e abriu a lata. Mergulhou seus dedos na tinta vermelha e começou a desenhar no chão de madeira. Desenhava o contorno de um corpo, que já estaria ali desenhado pela perícia se ele tivesse a decência de pelo menos ter morrido em casa.

Ela deitou ao lado e percebeu que tinha errado o tamanho, ele era um pouco mais baixo. Então borrou o final dos pés e os refez um pouco acima na perna. Se certificou de colocar orelhas na lateral do rosto. Viriam à dizer depois as más línguas da família do defunto que ela teria misturado seu próprio sangue à tinta vermelha. Que seus dedos teriam sido encontrados destruídos nas pontas, por todas as farpas que se soltavam da madeira com a brutalidade de seus movimentos, e que isso tudo na verdade era parte de um ritual. Diriam isso por precisarem muito acreditar nessa narrativa, e que você não precisa acreditar. Não como eles.

Com o contorno pronto, ela precisava da alma, que pensou ter sido queimada e misturada ao restante na areia. Manchando o pote branco de vermelho, ela o pegou e virou devagar, espalhando aos poucos no chão aquela poeira para que assumisse o formato do falecido. Quando viu o resultado de seu surto, ela quis chorar. Ajoelhada ao lado dele, ela sentiu o movimento do diafragma e a pontada na cabeça, mas não descia em seu resto nenhuma lágrima. Lhe faltou o ar, e as palavras que ensaiou entalaram na garganta, dando-lhe a sensação de sufocar. A exaustão a dominou e ela deitou sobre a arte medonha, desmaiando no sono, num sonho de raiva e dor. Raiva por ele não ouvir e dor por não lhe ouvir falar.

Aspirava o pó cinza e seu sopro, inconscientemente, dava vida. A cinza se remexia a cada gemido que ela dava dormindo. Pouco a pouco, o pó começou a cobri-la, envolvê-la. E o que entrava pelas suas narinas a sufocava por dentro, lentamente.

Algumas coisas na vida foram feitas para serem vividas uma vez. Nascer é uma delas. E enquanto aquele ser de cinzas nascia, a partir da dor e das lágrimas, sufocava quem o criou.

Ana então despertou em desespero. Suas mãos e pernas presas ao chão por areia, dura como o aço, fria como a morte. E engasgava. Queria cuspir, mas a areia agora não mais esperava ser aspirada. Infiltrava-se, rastejando para dentro dela, pelos olhos, pelo nariz e pela boca. Ela queria gritar, mais do que antes quis, mas não saía nada. Não era mais revolta, era pavor. Ela olhou para o lado e viu seu reflexo no espelho grande do quarto, que ia do chão ao teto, e percebeu que era seu fim. Ela havia moldado e dado vida ao objeto de sua morte.

Começou então a chorar. E o rompante de lágrimas saiu como se a represa finalmente quebrasse. E saiu pelos olhos, pelo nariz, pela boca, como se a água da vida criasse uma torrente para empurrar a areia da morte. As cinzas a soltavam e se juntavam à água, se compactando e morrendo, desmanchando.

E quando a torrente cessou, ela ainda chorava, e respirava como um recém nascido, inspirando e expirando pela primeira vez. Deitada em posição fetal, ela viu no espelho sua nova versão. Viva.

Angélica Villon
Enviado por Angélica Villon em 01/09/2023
Código do texto: T7875744
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