ELES VIVEM - CLTS 24

ELES VIVEM.

VALÉRIA GUERRA REITER

Mirtes estava atônita com o barulho da cidade, ela passou boa parte de sua vida no interior.

Agora, aos 21 anos, a aluna nota mil, como dizia seu pai passou no vestibular para cursar História. A moça estava radiante com a conquista, e Carmen (sua tia); também, a menina iria morar com ela em Ipanema para facilitar suas idas e vindas até à faculdade: localizada na Ilha do Governador.

Mirtes passou para a UFRJ. Imaginemos uma moça interiorana residindo no belo e violento Rio de Janeiro. Apesar de bastante animada a futura historiadora estava assustada. A nordestina de Serra Talhada, em Pernambuco, morena alta, de sorriso alegre, e olhos de um cor-de-mel intenso, já sonhava com uma carreira magistral. Ela planejou como seria sua pós-graduação. Ela pretende ser uma folclorista.

Um detalhe interessante na trajetória de Mirtes é sua árvore genealógica. Já que um antepassado dela (por parte de mãe) fez parte do cangaço brasileiro.

Até ali, a vida daquela graduanda foi alegre. A mãe educadora, o pai também., ambos atuantes no magistério estadual de Pernambuco. Felisberto, avô da menina, cresceu ouvindo as histórias de Lamparina, que poderia até ter sido um de seus tios por parte de um dos bisavôs.

- “O cangaço, fora um movimento social, antes de qualquer outra coisa”, dizia a moça ao seu namorado Antônio; antes de pegar estrada para o Rio, e a afirmação foi o suficiente para amornar a despedida, que normalmente transcorria de maneira acalorada por beijos intensos e abraços ternos, mas a personalidade de Mirtes, se casava direitinho com o significado de seu nome: “atrair entidades do astral”; e isso lhe conferia grande senso de justiça.

Antônio (seu noivo), vereador da cidade, obviamente não carregava “ideologias menos direitistas”, ele queria realizar aquilo que políticos de carreira no Brasil desejam: muitas obras em final de mandato, e populismo em relação ao povo incauto.

Dizia Antônio: - E quem quer que seja que preconize a teoria de que cangaceiros como indivíduos sociais em processo de justiça, soa como comunismo, e grosso modo isso é apavorante, meu amorzinho...

Mirtes franzindo a testa profere com leve sorriso - Penso que o terror não reside somente no campo minado da volúpia sanguinária dos vampiros, lobisomens, e seriais killers. Na realidade, ele permeia à atmosfera da desigualdade impregnada da eterna luta de classes.

E continua a graduanda: - Por exemplo, a confecção de duas bombas atômicas para abater Hiroshima e Nagasaki, são um espetáculo à parte em se tratando de terror. Este pensamento brotou da mente brilhante de Mirtes, que passou em primeiro lugar no Vestibular para cursar História na Universidade do Brasil. A informação anterior foi assaz preciosa, por não ter havido nenhuma fraude, no referido e último Certame. Ela realmente foi premiada com o pódio através de cristalina dedicação.

- E então minha cara sobrinha como foi a primeiro dia de aula? Disse a tia de Mirtes. Assim que a moça aterrissou em sua sala cheia de artefatos raros, como uma cabeça (réplica) empalhada, cujas feições eram parecidas com as feições dela; fato que intrigou sua nova hóspede. Carmen disse ser a cabeça de uma tribo qualquer da Austrália, e que a ganhara de um amigo antropólogo..

A moça olhou em frente, através da janela da sala ampla do apartamento imenso e ao mirar uma frondosa árvore cheia de mangas em frente ao prédio respondeu: - Não fui tia. Fiquei com receio dos trotes, ano passado fizeram um estudante de filosofia beber cicuta.

A mulher baixa, olhos azulados e cabelos pintados de ruivo sorriu e virou de costas e foi caminhando lentamente até a cozinha, onde sentou em uma poltrona amarela e acendeu um cigarro eletrônico. Carmen tinha apenas 58 anos, e nunca gostou do Brasil. Tinha vergonha de sua raiz nordestina, e quando casou com Albuquerque, não pensou em outra coisa, que não fosse o dinheiro dele.

Mirtes caminhou por um corredor e chegou ao último dos três quartos abrindo a porta do lado direito, e o adentrou...lá encontrou uma cama de solteiro, uma poltrona pequena de vime, uma mesinha de mogno, e uma pequena estante de madeira crua, bem simples, e repleta de livros. A menina estudiosa, percebeu que a luz era fraquinha, e em função de sua alta miopia não suportaria qualquer leitura, teria que trocá-la. Ela estava mui cansada, deitou na cama, e antes de tomar banho lembrou que ainda não havia ligado para seu noivo.

Mirtes não é muito chegada à tecnologia atual, ela prefere tecnologias mais moderadas: o telefone convencional, o rádio; ela possui celular, mas não gosta muito. A garota sentou-se e abriu sua mochila, a revirou no fundo, sacolejando bastante até achar o celular. Telefonou para o vereador que não atendia, aí então resolveu tomar “aquele banho” para no dia seguinte rumar para sua primeira aula de verdade e livre dos trotes cheirando a sangue.

A água quente corria por seu corpo, e ela deixava realmente que seus cabelos ensaboados ficassem debaixo daquela ducha gostosa que a beijava, demorou quinze longos minutos ali, e enquanto meditava....o momento só foi interrompido por um cheiro de Flours d'Amour (perfume preferido por Lampião), seguido de uma voz grave que falou alto e próxima ao box pelo lado de fora: - Sou seu tio menina, e voltei para lhe dizer que preciso da tua justiça por mim!

A mulher abriu seus olhos e com o coração batendo mais forte, instintivamente respondeu: - Quem é? É você Padrinho...como você entrou aqui, a tia te enviou para brincar comigo? É algum trote familiar? A voz insistiu: - Não sou seu padrinho! sou seu tio! e preciso que você me devolva a “minha cabeça”...ou uma cabeça qualquer que você possa colocar no lugar...entendeu...sei que você é justa...

Mirtes fechou a boca com as duas mãos, chutou a porta do box, olhou em frente, nada viu, saiu ofegante e pálida, pegou a toalha rosa, que deixou por sobre uma cadeira; se envolveu, calçou uma pantufa de ursinho que ela amava, e correu para abrir a porta que a levaria a seu quarto. Foi quando vislumbrou uma figura masculina de costas, com roupa cáqui, chapéu de couro com estrelas impressas, e sentiu um odor que parecia ser de naftalina misturado a cheiro de cadaverina, o perfume francês, que antes impregnava o local havia literalmente evaporado. A estatura daquela visão oscilava entre baixa e mediana. Ele virou-se, e o que ela fitou foi um “vazio, um nada mesmo, ou seja ,um chapéu sobre o ar...no lugar da cabeça”.

Aí ela urrou um grito estridente. Carmen ouviu e foi até a sobrinha, porém já a encontrou desfalecida. A mulher a sacudia e desvairadamente chamava seu nome: Mirtes...Mirtes acorda sobrinha...

Não houve jeito, a moça foi levada às pressas ao Hospital: chegando em coma, e sua recuperação ocorreu uma semana após o colapso.

Quando chegou na casa da tia, ficou feliz ao encontrar seus pais muito emocionados com seu retorno. Ali sentiu o verdadeiro aconchego. Sua mente muito confusa ainda, não atinava perfeitamente sobre o fato pretérito.

A tia sisuda; porém terna, passou as mãos nas madeixas de Mirtes e proferiu: - Vamos deitar um pouquinho Mirtes, Glória deixou tudo limpinho em sua suíte. Não deu nem tempo de escorar a jovem mulher, que após revirar os olhos: quedou-se.

Desmaiada, novamente entrou em coma, agora com o agravante de um AVC...ficou hospitalizada.

Ela estava sentada à beira de um riacho: onde corriam águas cristalinas. Um aroma de café foi entrando em seu nariz levemente arrebitado, e sua tez se tornava bronzeada pelo sol.

Um suave cantarolar entrecortou o ambiente, e uma voz melodiosamente feminina trazia à baila os contornos da paz: - “Olé mulher rendeira...olé os mulher renda, tu me ensina a fazer renda, que eu te ensino a namorar...”

O quadro que se desenrola a seguir é bem diferente: estampidos secos, e sangue derramado diante dos olhos da moça morena, de olhos vívidos. Um homem e uma mulher travestidos de cangaço caem no solo do sertão, e minutos depois um jorro de sangue quente molha a face de Mirtes...seu corpo se transporta e... agora Serena abraça sua filha, que está gritando. Ela milagrosamente voltava de um torpor de três meses e tornava a cama hospitalar mui apavorada com a cena que acabara de enxergar, em uma temporalidade qualquer. Seu rosto pálido está salpicado de manchas vermelhas.

Chega uma enfermeira, e mede sua pressão, o resultado aferido, registra queda. – Minha filha amada, que felicidade! você ter voltado! Tenho fé em sua melhora definitiva.

A enfermeira já havia avisado ao médico de plantão a grande novidade. Ele entrou rapidamente no recinto e percebeu que a estudante sangrava. Providenciou um protocolo adequado e pediu novos exames.

A menina foi levada rapidamente para outra ala do Hospital para exames. Três enfermeiras chegaram e foram trocar a roupa de cama, e perceberam volumes embaixo das cobertas, e quando levantarem os lençóis, se depararam com duas cabeças humanas.

Clara, Eva e Ana desmaiaram.

Quando o médico chegou, depois de um grito estridente de Clara, a cabeça feminina se lançou contra o doutor Albuquerque, médico e padrinho de Mirtes, e o choque esfacelou seu crânio. A morte foi instantânea.

As enfermeiras acordaram meia hora do acontecido e ao se depararem com aquela cena sangrenta saíram cambaleando e urrando de pavor...

As cabeças desapareceram antes da invasão dos seguranças, que adentraram o quarto atirando; eles só acertaram as paredes. O cadáver foi removido e o quarto lacrado para uma futura perícia rigorosa. A única pista foram os lençóis ensanguentados da menina Mirtes.

O enterro do marido de Carmen transcorreu sob forte comoção, e a viúva inconsolável se apoiava na sobrinha minimamente recuperada. O evento estava sendo investigado pela CIA, isto pois o morto fora agente do órgão, em sua juventude. Ele serviu de forma orgulhosa, tal braço de poder.

A desconfiança maior era de que algum vândalo tivesse invadido o local, com a missão de queimar um arquivo.

Já as enfermeiras se calaram a respeito da existência das cabeças fantasma, como elas batizaram as peças. Antônio levou a noiva para o interior, e a contratou para seu gabinete, a fazendo abandonar o sonho da graduação...

A situação histórica das cabeças cortadas de Lamparina e de sua esposa Maria Bela passou por diversas fases desde a degola. Há informações variadas sobre o destino das duas: Museu ou enterradas.

Mirtes: - Na madrugada do dia em que a foto foi tirada, 45 soldados armados de fuzis, duas metralhadoras e comandados pelo tenente João Bezerra obtiveram êxito em atacar e matar os integrantes do bando de Lampião. Foram todos então decapitados. A moça delicada e agora mais saudável respondia assim calmamente a alguém pelo celular; as informações faziam parte da função da moça, ao divulgar o turismo local, no gabinete de vereador do noivo.

Mirtes estava sentada em uma sala/gabinete; recostada em uma cadeira giratória de couro vermelho, (onde acima) na parede mostarda havia um quadro de Picasso, que retratava o gosto pessoal do vereador Antônio.

O quadro caro e raro foi adquirido por doze milhões das mãos do copista oficial de Pablo. A moça ainda falava quando o vereador interrompeu o diálogo exalando Flours d'Amour. O olhar da oprimida jovem não escondia a tristeza oriunda dos últimos acontecimentos. O homem alto e ruivo a arrancou da cadeira, e a beijou longamente.

Ela o afastou um pouco, e disse: - Iremos mesmo para Nova York?

Antônio desviou o olhar e engolindo a seco revelou: - Sim.

Antônio Bezerra, também tinha sangue destemido, assim ele sempre destacava em seus discursos. A mulher observou o quadro de Picasso na parede e foi até o toalete, pedindo licença ao seu chefe e noivo.

Lá dentro chorou muito e lavou seu rosto, olhando no espelho. Foi quando sentiu gosto de sangue na boca. E viu um tronco de mulher caído no tapete de sisal creme...

Saiu dali segurando a cabeça e passou por Antônio, que escondia algo atrás de si. Ela sussurrou: - Vamos querido? Estou cansada, mas pronta. O homem parecia em choque.

E nada respondeu. Ela viu quando ele entrou no banheiro e arrastou um corpo sem cabeça de lá...jogando dentro de um saco preto, ela gritou: - Socorro! e questionou: - quem é esta mulher Antônio?

Ele não respondia. Ela voltou ao banheiro e viu uma mulher sentada no vaso, suas vestes eram de couro e ouro ; e um cheiro de podridão invadiu o ambiente. Quando a mulher virou de frente Mirtes gritou fortemente:- Deus me ajude!

Antônio chegou e disse: - Onde está a maldita cabeça? Dessa maldita descendente bastarda desse maldito Lamparina? O homem também sentiu gosto de sangue na boca...e disse entre gemidos: - Fiz isso pela sua memória meu tataravô tenente João Bezerra. A história verdadeira precisa ser contada...

Mirtes berrava sem parar quando viu um homem sem cabeça decapitar seu noivo em um só golpe. Ele colocou a cabeça do homem no lugar da "sua"...e evaporou no ar.

Já Maria Bela olhou para o espectro de Mirtes dizendo:- Eliminei seu padrinho para que ele permitisse nossa vingança; afinal mocinha, o Albuquerque planejava lhe estuprar, e, eu e seu tio Lamparina te livramos deste dissabor; e conquistamos um grau de evolução: viramos zumbis com cabeças, e você um fantasma histórico.

Maria Bela: - Não iríamos tirar sua vida, mas seu noivinho facilitou em muito nossa vingança, pois te assassinando ele nos brindou com uma cabeça: seja muito bem-vinda ao mundo dos mortos vivos!

Ser fantasma não dá sangue a ninguém minha cara sobrinha! Procure evoluir...e busque sua cabeça.

Mirtes chorava copiosamente, e fugiu dali, e vagava dizendo sem parar: eles vivem, eles vivem, Lamparina vive, com a cabeça de Antônio, mas vive...

A menina-fantasma agora sentia frio, fome e sede, e percebeu que precisava ter aquilo que poderia lhe devolver o gosto da vida: uma cabeça.

Os pais da vagante choravam todos os dias diante da árvore frondosa da rua arborizada, onde residia Carmen. Depois da morte da estudante dedicada, eles venderam a casa no nordeste e vieram se reunir a viúva em um duplo luto...as cinzas da moça cremada há três anos foram espalhadas sobre o vegetal.

Ela gostava muito daquele ser. Há uma semana, Carmen estava debruçada na janela rezando, e fitava a mangueira preferida de sua sobrinha; quando ouviu um estalar na cozinha. Foi até lá e escorregou no gelo caído no chão batendo a cabeça.

Serena e Claudino estavam abraçados diante de um túmulo, e deixaram um buquê de rosas amarelas (cor preferida de Carmen) perto de sua foto.

Quando Serena firmou o olhar percebeu que a imagem estava sem cabeça. Uma semana depois Clara, uma das três enfermeiras do episódio da morte de Albuquerque morreu, e sua cabeça sumiu...misteriosamente. Em uma nova visita que Carmen realizou ao túmulo de Serena, observou aterrorizada que no lugar do vazio que pairava no lugar da cabeça da tia de Mirtes, uma mulher sorria para ela, e havia sangue em seus dentes...aquela era a cabeça da enfermeira Clara. A saga de vingança sobrenatural está apenas começando...

“O homem em sua estupidez não compreende a única verdade da vida: a imortalidade do sangue.”

Zé do Caixão

Tema: Cangaceiros

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Valéria Guerra
Enviado por Valéria Guerra em 29/08/2023
Reeditado em 18/10/2023
Código do texto: T7873068
Classificação de conteúdo: seguro
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