Na funerária

Na funerária (José Carlos de Bom Sucesso)

Broa é um sujeito muito divertido. Gosta muito de brincar com as pessoas. Tais brincadeiras são inofensivas, pois detesta falar de política, nem mesmo de futebol e tão pouco de religião. Aposentado por tempo de serviço na função de guarda municipal. Fez muitos amigos e nem mesmo cultiva alguma inimizade. Muito bondoso, sempre está a ajudar alguém que precisa de conselhos, palavras amigas e até mesmo alguma ajuda financeira. Viúvo e possui apenas um filho, que mora no exterior. Passa os dias lendo, escrevendo e sempre que pode, frequenta a funerária da cidade, pois é muito amigo e querido dos donos e também dos empregados.

Há pelo menos dois meses, Broa apresentou sinal de saúde enfraquecida. Perde o sono durante a noite. Foi consultar com o médico do posto de saúde e este lhe receitou alguns medicamentos para o controle do sono. Exigiu, também, exames complementares e acompanhamento médico.

Mudou completamente a vida. Levanta-se cedo. Faz caminhada e até frequenta a academia de ginástica da cidade. Sempre feliz e de bom humor, continua seus atos de aposentado. Às vezes viaja à capital para visitar à irmã. Fica por alguns dias e retorna novamente. Da última vez, participou de concurso de samba e sua composição foi a vencedora. Comemorou muito e esbanjou, quando retornou, aos amigos o troféu recebido.

Os dias vão passando e Broa está sempre feliz. A rotina é a mesma: De casa para a academia, às caminhadas, ao almoço e ao jantar no restaurante próximo da residência, conversas com amigos, leitura escrita e finaliza a tarde na funerária. Lá, também, ajuda a enfeitar algum defunto e até mesmo auxilia nas cerimônias funerárias.

Marcos é um dos funcionários da funerária. Nos dois últimos dias, esteve muito cansado, pois o número de falecimentos na cidade foi alto e também em algumas cidades vizinhas. Não dormia e se tentasse, também não conseguia, porque o stress estava bem alto.

Naquela tarde chuvosa, Marcos chegou com mais outro defunto para a preparação do velório. Após aquele serviço, iria ele descansar. Antes, procurou o médico de plantão e este lhe receitou remédio para dormir. Era o tranquilizante mais forte e a indicação era para que se misturasse na água ou no suco. Ele, porém, preferiu o suco. Fez um grande copo e despejou o remédio. Não tomou, porque o telefone lhe chamara para outro atendimento particular. Tendo que sair, disse ao Broa:

- Amigo! Terei que ir ao mercado comprar lanche e alguns produtos para a preparação do corpo. Vou demorar por alguns instantes. Falaram que o Alceu, gente importante da cidade vizinha, faleceu. Eles vão trazê-lo para cá. Vá arrumando a urna dele. É aquela que está logo ali. Ela está com a tampa meio defeituosa. Aproveite e arrume para mim. Não voltarei cedo. Você pode ir embora. Feche a funerária para mim. Assim que chegar, já pego a urna dele e levo para a cidade. Espero que seja tranquilo. Estou muito cansado e vou beber o remédio para descansar.

Marcos, rapidamente saiu. Não falou para o amigo que o copo de suco continha o remédio para dormir.

Com bastante carinho, Broa começou a arrumar a urna. Preparou as flores, as coroas. Em pouco tempo, o hospital enviou o corpo de Alceu para os preparativos.

Broa, muito caridoso o recebeu. Levou-o para outra sala e iniciou os preparativos do corpo.

O defunto Alceu era muito importante para a cidade. Era político, médico e dentista. Muito amado pelo povo, morreu de morte súbita. Media perto de dois metros de altura. Pesava seus cento e vinte quilos, mais ou menos.

Broa preparava os enfeites do caixão com muito entusiasmo. Ajeitou muito bem as flores e todos os apetrechos de um bom velório.

Assim, o defunto Alceu era muito grande e pesado para que Broa o conduzisse à urna. Não dando conta, escreveu o bilhete para Marcos, que ao chegar, deveria ligar para ele para que os dois conduzissem o corpo de Alceu para a urna, pois cento e vinte quilos era muito peso para o Broa, assim o escreveu.

Muito suado e com sede, Broa olhou e viu o copo de suco que Marcos havia deixado sobre a mesa. Rapidamente, foi até lá e tomou todo. Notou que estava meio adocicado, mas lembrou que poderia ser algum suco diferente usado por Marcos.

Voltou ele para a urna que seria usada para o defunto Alceu. A tampa da urna estava com muito defeito. Broa consertava lentamente. Com os movimentos mais lentos, Broa sentiu-se completamente sem forças. Abrindo muito a boca, o sono furtava-lhe. Ajeitou o travesseiro da urna com as mãos, foi fechando a tampa lentamente. Pôs alguma ferramenta para que houvesse a penetração de ar. Pensou que quando Marcos chegasse, iria acordá-lo para que os dois pusessem o defunto no lugar e fossem levá-lo para o velório da cidade vizinha.

O tempo foi passando e Broa tirava aquele sono maravilhoso. Até sonhava que estava no céu.

Já perto das vinte e três horas, Marcos chegou à funerária. Cançado, estressado, com vontade de dormir, lembrou que teria que levar o defunto para a cidade vizinha. Seria sua última missão naquela noite. Com o carrinho, foi logo pegando a urna e a colocando dentro do carro. Fechou a funerária e nem lembrou do Broa, que, para Marcos, já estava fazendo meia noite em sua casa. Depois ligaria para ele para lhe agradecer da arrumação do defunto Alceu.

Chovia muito. Marcos demorou para chegar à cidade vizinha. Assim que adentrou rumo ao velório, deparou-se com muita gente que queria despedir do finado. Custou para chegar.

A chuva ia aumentando cada vez mais. Relâmpagos, trovões, ventos e muitos sustos faziam daquele ambiente mais horrível. Marcos lembrava de que se o defunto quisesse descontar algo na população que o velava, se quisesse passar susto no povo. Portanto, era só pensamento na cabeça cansada e estressada daquele simples trabalhador de funerária.

Sobre aplausos, palmas e até fogos de artifícios, o caixão do defunto Alceu adentrou pela sala, que já estava toda enfeitada para o velório do cidadão daquela cidade. Cartazes com frases de ânimo estavam espalhados pelas paredes. Coroas de flores, faixas e outros mais. Pessoas choravam, crianças gritavam tornando o ambiente muito triste e lúgubre.

Marcos, também emocionando com o que via e sentia também aquela vontade de chorar, pois ele era muito forte, tinha muita personalidade e sentimentalismo, recordou do amigo Broa e lembrou que ele havia dito que iria ajudá-lo no translado, porém esqueceu de ligar para ele. Também, naquela hora noturna, Broa já estaria sonhando e roncando.

Assim que o carrinho, com o defunto, penetrou na sala especialmente enfeitada para velá-lo, ao som de várias palmas, gritos, música, etc... Marcos ouviu algum gemido que saia de dentro do caixão, acompanhado de algumas tosses. Estremeceu todo por dentro. Em pensamento, que a essa hora não tinha mais stress, nem cansaço, nem vontade de descansar, lembrou ele se o defunto Alceu estava morto mesmo. Ele não o acompanhou. O defunto veio diretamente do hospital apenas acompanhado do laudo médico. Pensava, mais uma vez, se o médico que assinou o atestado de óbito não tinha enganado e o defunto estivesse vivo. Aliviou-se, porque se algo tivesse acontecido, o amigo Broa ter-lhe-ia avisado. Tranquilizou-se mais uma vez, porém o gemido e a tosse a cada metro que o carrinho andava ia aumentando. Estremeceu-se todo, pois quando abrisse a urna, o defunto de quase dois metros de altura, pesando perto de cento e vinte quilos iria se levantar e perguntar o que estava acontecendo. Diminui a marcha do carrinho.

Faltando poucos metros para depositar o féretro, Marcos sentia que o gemido aumentava mais. A tosse já era evidente e ele se preocupava. A pouca distância, a viúva, as filhas, os genros, os netos, os irmãos, as irmãs e parentes circunvizinhos formavam a grande roda. As palmas, os gritos e tudo mais enchiam de barulho o salão. Se já não bastassem os clarões dos relâmpagos, os trovões e até o piscar das luzes faziam daquele lugar o ambiente mais horrífero já existente.

Enfim o caixão foi depositado. Marcos suava muito, porque o defunto era muito pesado. Pessoas ali próximas o ajudaram a colocar a urna mortuária sobre o móvel preparado para este fim. Os gemidos aumentavam e a tosse também. Marcos se preocupava e não via a hora de abrir o féretro.

Esperou um pouco. Limpou o suor do rosto com a manga do paletó. Na mente, quando abrisse aquilo, o defunto poderia se levantar e botar tudo a perder. Parou por alguns instantes e sem coragem. Lá dentro, o barulho de algo se mexia era evidente. Tosses, espirros, gemido e a impressão que alguém estivesse gritando:

- Socorro, tirem-me daqui. Socorro!

A essa altura, o senhor magro, vestido de terno preto, com alguma coisa pendurado no pescoço, trajando algo semelhante a avental feito de pele de carneiro, com dizeres e símbolos feito triângulos e outras coisas mais, acompanhado de mais ou menos umas quinze a vinte pessoas, trajando as mesmas vestimentas, disse em voz bem alta:

- Abra o séquito para que possamos homenagear o nosso irmão Alceu! Ele foi a pessoa maravilhosa, a pessoa honesta, a pessoa que ajudava a todos...

Mais palmas eram ouvidas dentro do salão. Lá fora surgiam estalos de rajadas de ventos e trovões.

Marcos pensava a cada instante. Seja o que Deus quiser, quando abrir isto aqui, o morto levantará e será “um nos acuda”.

O suor lhe escorria pelo rosto e também pelo uniforme, o terno preto, gravata também, preta e camisa branca. No bolso do paletó, logo acima, estava o emblema da funerária.

Parou mais e decidiu que seria o momento. Fechou os olhos e pensava “seja o que Deus quiser”. No momento em que abriu a tampa, logo deu o forte estalo do relâmpago, acompanhado do trovão, logo seguido. As luzes apagaram por alguns segundos e quando voltaram, ainda piscando, sem estarem totalmente prontas, Broa é visto erguendo do caixão e dizendo:

- Marcos! Marcos!

- Você não leu o bilhete que escrevi para você?

Marcos, apavorado e vendo que o povo gritava de pavor e em bando, saiam pela porta. Ouviam-se gritos, choros e lá no fundo alguém dizia, o senhor mais velho:

- Ele não morreu... Ou voltou para viver por mais cem anos...

Nesta altura, a viúva, filhas e pessoas próximas encontravam-se caídas pelo chão sem sentidos. Trovões, relâmpagos ainda eram vistos e ouvidos.

O salão ficou vazio, restando somente alguns que prestavam socorro aos familiares.

Então, Marcos lembrou do remédio para dormir, que ficou sobre a mesa. Broa o bebeu e dormiu arrumando a tampa da urna mortuária.

As desculpas foram dadas e na manhã seguinte, Broa, Marcos e os donos da funerária foram pessoalmente levar o defunto Alceu. Antes de saírem, verificaram se realmente o defunto estava morto.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 27/08/2023
Código do texto: T7871608
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