ADORAÇÃO - CLTS 24
– Às vezes, acho que é uma plantação de gambás, mamãe, e alguns caem como frutos maduros. – Dino dizia com tristeza na fala.
– Sim, filho, faz algum sentido, mas eles são muito mais do que isso, então, precisam estar bem sempre. – Disse Lina. E completou: – Nunca tinha visto isso acontecer.
A imagem à frente era tratada como se fosse um altar de coisas boas. Tudo aquilo que um dia pareceu asqueroso aos olhos humanos, naquele momento, era visto como a salvação para aquela mulher. Ela sentia que, enquanto vivessem em meio aos gambás, sua alma permaneceria pura, entretanto, qualquer ato agressivo do animal contra algum humano mostrava que a pessoa em questão não era digna da vida. Para permanecer vivo deve haver um merecimento, o que eles consomem é descartável.
– Agora te contarei o quanto são importantes e como eu os agradeço.
– Conta, mamãe. – Dino estava impaciente.
– Está certo, meu filho. – Lina estava sorridente e aparentemente feliz. Continuou: – Quando casei com seu pai, ele me trouxe para esse sítio. Vivíamos felizes, apenas nós dois.
– E os gambás?
– Eu ainda não os conhecia.
– E eu, mamãe? – Interrompeu, Dino.
– Acalme-se, chegaremos nesse momento. – Lina carregava uma expressão suave. Continuou: - Ainda precisávamos organizar a casa, comprar alguns animais e começar a cultivar nossos legumes para depois, então, planejar você.
Dino sentou-se na raiz da árvore e concentrou o olhar em sua mãe, que para facilitar a visão do filho fez o mesmo, colocou um saco de pano no chão e sentou-se.
– Tudo andava em linha certa, estávamos progredindo, as árvores começavam a dar frutos, a horta ficava cada vez mais verde, as vacas engordaram e os ovos das galinhas estavam cada vez maiores. Foi quando descobri que estava grávida.
– Chegou minha vez na história. – Disse Dino, animado.
– Ainda não. Seria o seu irmão mais velho, mas eles... – Lina apontava para os gambás, completou: – sabiam que seria uma criança má, o tiraram de mim. Nem chegou a nascer.
Lina mantinha-se serena enquanto contava a sua história, sua crença no que era bom ou ruim, superava a dor da perda de um filho.
– Foram três antes de você, o último foi o único que saiu, mas não vingou. – Disse, olhando fixo para os animais.
– Era para eu ter irmãos?
– Sim! – Lina, pela primeira vez mudou o tom do diálogo. – Mas não eram humanos bons, você foi o único.
Os gambás arrepiaram os pelos e soltaram leves grunhidos mirando seus olhares para Lina. Ela sabia que a interpretação de ser bom ou ruim dependia deles. Não poderia passar dos limites nem na altura da voz. Alguns gambás desceram e andaram em volta da mulher. Dino acariciava um menor que saíra da bolsa da mãe.
– Meu filho, você precisa merecer para estar aqui.
Os animais voltaram para a árvore mostrando que a calma havia voltado ao ambiente. Abriam e fechavam a boca numa espécie de bocejo viciante, ela os olhava e fazia ar de satisfação. Lina tentava demonstrar amor a seu filho, arrastou-se até ele e deu tapinhas em suas próprias pernas para que ele encostasse a cabeça para ganhar cafuné.
– Continuando, você chegou. Trouxe toda a felicidade para o meu lar, todo o contentamento que uma família pode querer e todo o amor que uma mãe pode imaginar.
– E o papai?
Lina cerrou os dentes tentando manter a calma e respondeu:
– Seu pai foi embora quando os gambás levaram seu segundo irmão, eu nunca o perdoei por dizer que a culpa era minha.
O menino inocente não questionou a questão de o pai ter ido embora antes de sua gestação, não tinha sequer a ideia de sua verdadeira origem, então, tinha a imagem daquele homem que estava sendo criada pela mãe.
A movimentação dos gambás embaraçava seus olhos e o silêncio de ambos não tardou. Mãe e filho em total sintonia em meio aos animais, que calmos como o vento que não soprava, silenciaram como se nada mais fizesse sentido.
– Eu mereço estar viva e ter o melhor, seja como for. – Disse Lina, quebrando o silêncio
O ato era apenas dela, o menino não precisava mais de respostas, não precisava de explicação, entretanto, Lina continuava suas histórias de vida. O observava com atenção, serena em seus atos, esfregando suavemente os cabelos castanhos do filho.
...
Em poucos anos no sítio afastado da cidade, Lina foi casada, apaixonada, culpada, abandonada e humilhada. Mas nesse ponto, a sua frieza era revertida na imposição de culpa aos gambás. O fato era inusitado, uma árvore que continha um número grande desses animais, de todos os tamanhos e uma só pelagem. Como qualquer outro desvio de conduta que se joga a culpa em outro ou em alguma santidade, ela depositava suas razões nos pequenos animais.
Estava sozinha.
Sua dificuldade para ter o filho abalou sua cabeça, mudando sua estrutura mental e, após ficar sozinha, passou a se relacionar com todo homem que por ali passava. Os andarilhos. Tratava sua casa como um templo individual, ninguém além dela entrava. Utilizava os arredores do sítio para entregar seu corpo com a intenção de engravidar. Foi em meio às tentativas que Lina conheceu a árvore dos gambás. Já havia percorrido muito aqueles campos e florestas, no entanto nunca havia ido tão longe. Aquela noite mudaria o rumo da história.
Avistou ao longe pontos brilhantes que acendiam e apagavam como luzes de Natal, continuaram até perceberem se tratar de uma árvore coberta de gambás. Acompanhada, não valorizou o que via. Seu companheiro momentâneo tinha apenas uma missão a cumprir, nada o faria recuar.
– Se não soltarem cheiro, “tá” tudo certo. – Debochou, o homem.
Lina pensou que o cheiro não poderia ser pior do que ela sentia naquele momento, com certeza, o andarilho não era muito adepto a banhos.
Ao deitar-se com mais um de tantos, percebeu que o homem tinha uma certa dificuldade em chegar no ato final. Embaixo daquele ser, gordo, suado e que sorria abertamente com sua boca de poucos dentes podres, virou seu olhar para a árvore, onde avistou, claramente, mesmo com pouca luz, a cabeça de um filhote saindo da bolsa ventral de uma mãe. Aquela visão soou como um aviso, em seu mais completo íntimo, era uma ordem. Lina arrastou os braços até chegar a uma pedra pontiaguda. Quando o homem fechou os olhos em um aparente momento de prazer, ela levantou a pedra com toda a força possível e acertou a têmpora do homem. Ele até tentou reagir, mas logo recebeu mais uma pancada que fez seu olho esquerdo saltar da cabeça.
Pouco a pouco os animais desciam dos galhos e abocanhavam um pedaço do homem.
Lina voltou em ritmo lento para sua casa, indo direto limpar o corpo. Ao esfregar um pano úmido, percebeu que o homem havia deixado vestígios de prazer em seu corpo. Ela sorriu. Gargalhou. Era a realização do seu sonho com a ajuda dos gambás.
Lina voltou até a árvore para agradecer o feito dos gambás. Tinha a certeza de que tinha sido o suficiente. Chegando lá, percebeu que não havia vestígios do corpo. Não tinha preocupação quanto ao homem eliminado, era um andarilho sem família e sem nome, ninguém o procuraria. Ficou feliz com o sumiço, não gostaria que alguém tirasse os gambás dali.
Enfim, o ato foi consumado, seu herdeiro estava a caminho. Ela sentia fortemente essa certeza.
A partir daquele dia, precisava cumprir seu destino, seria a cuidadora dos pequenos animais, faria o que fosse necessário para continuar merecendo a dádiva concedida.
De tempos em tempos, mesmo grávida, Lina levava algum andarilho para perto da árvore. O final era sempre o mesmo. Sentia-se orquestrada pelo rosnado uníssono dos animais. O local era sempre o mesmo, apenas a forma do ato evoluíra. Facas estavam escondidas em meio às folhas.
Numa manhã de sol e céu sem nuvens, ela despertou alegre, levantou-se rapidamente e, ao mover o lençol, percebeu uma pequena mancha de sangue no colchão. Lina debruçou-se na cama aos prantos, algo que durou segundos.
Correu em direção à árvore, havia muito o que dizer para os gambás que muito alimentou. Na chegada, os animais desceram rapidamente da árvore e antes que ela dissesse uma só palavra, foi derrubada e coberta por muitos deles, que empurraram sua barriga e puxaram os restos mortais do feto. Lina estava em estado de transe, não sentia dor alguma, apenas uma satisfação correu por suas veias após o término. Aquele pequeno corpo em formação foi degustado por alguns deles, enquanto outros se deliciavam com o sangue e apenas um era responsável por lamber as feridas.
Lina ficou em estado de choque e permaneceu deitada por horas até se recompor.
O tempo passou, Lina deixou de lado a vontade de ter filhos e abandonou os gambás. Se manteve só, evitando contato com outras pessoas.
Esse prazo foi finalizado quando num final de tarde, uma mulher com cara e corpo de doente chegou à sua porteira.
– Não tenho nada. – Adiantou-se Lina.
– Meu filho está com fome, ajude-nos. – Gritou a andarilha.
O som do rosnado entrou pelo seu ouvido, seguido do choro da criança que era trazida nas costas da mulher.
Aquele choro fraco inundou o coração de Lina que imediatamente correu em direção à porteira e logo estava com o menino nos braços. Ele era muito miúdo e estava visivelmente abaixo do peso. Ele bocejou em meio às lágrimas. A árvore veio à sua mente junto aos olhos brilhantes dos gambás.
– Estou muito doente, não sei quanto tempo tenho. – Sussurrou a mulher.
Com sorriso largo na face, algo que muito tempo não acontecia, Lina indicou o caminho até sua casa. Entrou, soltou a criança em sua cama e voltou à sala. Alimentou os dois e convidou a mulher para um passeio. Mesmo cansada a pobre andarilha aceitou o convite. Lina pegou o menino no colo e os levou até os gambás. Eles permaneciam ali como se não necessitassem sair. A mulher sentou-se admirada com o que via e, ao virar seu rosto para Lina, foi golpeada por um punhal enferrujado. Os gambás desceram rapidamente para o banquete oferecido.
Três anos se passaram, o menino ganhou tamanho e nome, Dino era o sonho realizado de Lina, toda sua busca e empenho foi compensado. O menino virara seu companheiro de vida, seu ajudante nos afazeres domésticos e do sítio, cuidando dos animais enquanto a mãe passeava com os andarilhos até os gambás.
Tudo parecia encaminhado, no entanto, no dia em que Dino completava 6 anos, de acordo com os cálculos de Lina, o passeio entre mãe e filho até a árvore causou dor em ambos os olhos. Alguns filhotes dos gambás estavam caídos no pé da árvore. Os animais pareciam orar para algum tipo de ser superior, pois permaneciam com os olhos fechados e imóveis.
Quando Dino tentou recolher os pequenos corpos, um rosnado quase ensurdecedor o jogou no chão. Após isso, alguns gambás desceram e devoraram os filhotes.
Lina percebeu que falhava na alimentação dos animais, há algum tempo os andarilhos pararam de bater em sua porta. Restaram apenas os poucos animais do sítio. As últimas oferendas.
Duas vacas, seis galinhas, um porco, a cabra de estimação e também a plantação foram ofertados. Mãe e filho ficaram sem o pouco que tinham.
...
Ainda sentada à beira da árvore, Lina torcia o pescoço do filho, o sangue escorria pelo corte atrás da nuca, feito após o sufocamento.
O pequeno Dino havia escapado de morrer com sua verdadeira mãe e agora seria mais uma oferenda. Os gambás desceram e arrastaram o corpo, enquanto Lina deitava na raiz, sem qualquer sentimento de dor ou tristeza. Não havia mais dúvidas, se eles o levaram não era digno de merecer a vida.
Tema: Baseado em imagem.