MUNDO ETERNO - CLTS 24
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As mochilas presas às costas por duas alças sobre os ombros e uma terceira ao redor da cintura estavam vazias. A esperança é que na volta da rotineira excursão estivessem, se não repletas, ao menos mais pesadas.
Todos daquele grupo também carregavam lanternas, capacetes e cordas, pois não havia como adivinhar onde entrariam à cata de qualquer coisa, comestível ou não. A tralha se completava com facas e protetores corporais diversos.
Durante o pequeno ritual de verificação dos itens e ferramentas, pouco ou nada falavam os integrantes, afinal nem havia motivo, pois nem ao menos conheciam seus verdadeiros nomes, alguns por não se lembrarem, outros por não se importarem. Pseudônimos, avatares, bastava isso nesse mundo sem relacionamentos, sem expectativas ou laços, meros disfarces ambulantes. O indisfarçável é que não era um momento alegre ou de aventura. Eles sabiam, por experiência, que sempre existia a possibilidade de perder horas e nada encontrar, ou pior, sair e não voltar.
Se o mundo era difícil antes, agora é quase impossível. Os fortes foram os primeiros a morrer, os fracos, apesar de resistirem, dependiam dos teimosos e estes estavam, assustadoramente, desaparecendo.
Xrey liderava a equipe, não houve eleição ou processo de escolha, ele apareceu um dia na caverna e se instalou. Duas ou três dezenas de pessoas habitavam naquele refúgio igual a tantos outros espalhados pelo mundo pós Hecatombe.
Exceto aqueles do conjunto de busca, os demais raramente se arriscavam no exterior, pois além da atmosfera difícil e pesada para a respiração, o calor escaldava, pouca ou nenhuma sombra existia, escombros e restos de construção ofereciam perigos para a carne.
- Está na hora – alertou Xrey em voz alta. Não havia instruções, nem despedidas, apenas quatro pessoas reuniram-se ali próximas à saída.
Uma antiga polia rangeu ao ser acionada e o que fazia as vezes de porta cedeu vagarosamente arrastando-se em agonia até permitir a fresta da largura de um corpo em sua lateral.
Um a um, os membros da coleta se espremeram no vão em direção ao exterior. Era noite, sempre trabalhavam à noite por conta do calor insuportável diurno. A passagem foi selada novamente e, silenciosamente, iniciaram a descida até o vale, a parte mais fácil do trajeto, depois disso, tudo era imprevisível.
Duas horas após, eles vigiavam o que seria a entrada de um antigo depósito de mercadorias. Já haviam visitado esse local antes, coisa de três meses atrás, mas tiveram que sair rápido por causa dos estranhos barulhos que se aproximavam. Xrey não quis arriscar e ordenou a retirada. Dessa vez chegaram mais cedo e planejaram melhor o ataque.
Outros bandos humanos também saíam para caçar. No início, a maioria deles não era violenta, quando se avistavam, mudavam a direção numa espécie de acordo geral, porém com o avançar do tempo e os mantimentos escasseando sempre, essa conduta não mais prevalecia, agora havia outra norma: sobreviver.
Localizar, vigiar, entrar, pegar e se esconder eram os passos principais da estratégia de Xrey.
Além da ameaça vinda dos demais catadores, a Hecatombe trouxe criaturas estranhas, apesar de não se saber se essas criaturas já existiam e foram expostas pela necessidade também. Fato é que elas não pareciam se preocupar com outra coisa a não ser eliminar todo e qualquer ser humano. Os sinais da presença delas eram o mau odor sulfúrico de antemão, o som do farfalhar do que pareciam asas e os gritos das vítimas. Por enquanto, não havia descrições de como essas coisas eram.
- Vamos entrar ou ficar agachados aqui até o inferno começar de novo amanhã? – questionou #CapM4, o mais antigo daquele time, mais velho que o próprio Xrey que parecia ter cem anos de idade.
- Nós vamos quando for a hora de ir – respondeu o líder e ninguém questionou.
Xrey não gostava do ímpeto emocional do outro, mas também evitava retirá-lo do grupo, ele conhecia a área muito bem. Um dia desses, mais cedo ou mais tarde, teria que decidir, até lá escolhera ignorá-lo com respostas curtas e diretas.
Passados mais alguns minutos sem nenhum alarde ou indicativo de outros elementos nas redondezas, fossem humanos ou as bestas, Xrey levantou o braço direito, fez um semicírculo no sentido horário e baixou a mão para frente. Era o sinal de avançar. Acostumados, todos entendiam que agora era cada um por si dentro do local alvo: procurar, pegar, colocar na mochila e se esconder próximo ao ponto onde estiveram vigiando até então.
E eles avançaram, o chefe foi por último, ele sempre ficava na retaguarda para, se necessário ou urgente, nesses instantes iniciais, ordenar a debandada. Hoje a situação ficou do mesmo jeito de minutos atrás e ele seguiu em direção ao depósito.
A noite estava mais escura que as outras noites, acontecia às vezes, nem era presságio ou sinal de algo errado, apenas uma combinação que ninguém mais entendia a origem. As luzes das lanternas varavam o breu, Xrey imaginava até quando teriam pilhas que as alimentassem, mas isso era preocupação para o futuro, se houvesse um.
O semicírculo formado para adentrar e iniciar a coleta indicava que teriam trinta minutos para retornar e se reagrupar. Depois disso talvez entrassem novamente, talvez não, talvez partissem para outro lugar, talvez não, talvez fossem embora para a caverna, talvez não. Quem não estivesse no local após o tempo combinado ficaria sozinho e decidiria seu rumo por si.
Dentro do depósito o caos reinava, tudo estava misturado, disperso, as prateleiras ao chão, indícios de um incêndio aqui e ali. A busca por qualquer coisa era um esforço de paciência e experiência. Nesse ponto, #CapM4 se destacava, com pouco mais de uma olhada sabia diferenciar algo de bom potencial do que era somente lixo. Geralmente era um dos primeiros a voltar ao ponto de origem após o tempo determinado e sua mochila era a mais cheia.
Porém, nessa ocasião específica, #CapM4 não parecia motivado. Por mais de uma vez se perdeu em pensamentos olhando para o vazio. Ele sentia medo e não conseguia explicar o motivo. Fizera essas operações muitas vezes, tudo estava dentro da normalidade, mas havia alguma coisa estranha. Repassara todos os passos da jornada duas vezes, não encontrara nada que justificasse a sensação de perigo que lhe preenchia a nuca. E de tanto insistir nessa lembrança da memória das últimas horas, encontrou aquilo que o incomodava, mas era tarde demais.
#CapM4 sentiu a lâmina por baixo de suas costelas e pôde ouvir o ar escapando dos pulmões, tentou gritar em vão, morria lentamente, ainda viu sua mochila ser revirada antes de fechar definitivamente os olhos sendo abraçado pela escuridão eterna.
Os demais integrantes trabalhavam incessantemente, alheios ao destino do colega, tomando cuidado para não perderem o prazo e logo que este findou, retornaram.
- #CapM4 está atrasado – disse a única mulher coletora, conhecida como @@S.
- Não podemos esperar mais – determinou Xrey.
- Vão, eu ficarei mais um pouco – propôs Detonid55, o mais jovem.
- Nem pensar – atalhou uma voz – ou vamos todos ou não vai ninguém.
- Todos que estiverem aqui – finalizou Xrey – essa é a regra, #CapM4 sabe muito bem nos encontrar depois.
Em compasso a última fala, ouviu-se ao longe um mínimo ruflar do que poderia ser um vento deslizando em ondas sobre as árvores, se elas ainda existissem: flooofff... floooofff.... flooofffff.... fazia o barulho ritmicamente.
As lanternas desligaram quase por vontade própria. Se houvesse algum sangue no corpo daquelas pessoas estaria muito bem escondido, estavam gelados, pois sabiam muito bem o que significava o som ouvido.
Automaticamente, o bando deitou-se rente ao chão buscando um tocar a mão do outro. Não era um gesto de força ou apoio, mas servia para não se perderem dos demais naquele negrume sem fim. Mal conseguiam discernir os contornos das sombras.
Floooffff....flooooffff.... floooffff..... O barulho mais alto a cada instante até passar por sobre suas cabeças. A coisa voava baixo. E parou a poucos metros de onde estavam. Era tão forte o cheiro acre de enxofre e ácido que provocou náuseas nos pobres humanos grudados na terra.
A criatura emitia chilreados de tempos em tempos como se inalasse grandes quantidades de ar em busca de cheiros. Ela farejava enquanto se locomovia de um lado a outro deixando desenhos no solo de sua trajetória como rastros de cobra na areia. E se aproximava a cada passo.
Mais ouvindo que outra coisa, Xrey adivinha todo o movimento da criatura, apesar de fixar muito os olhos na direção de onde vinham os barulhos. Não ousava se mexer, nem os outros. Estavam numa armadilha. A mão direita segurava o pulso da @@S. Como estava numa das pontas, sua mão esquerda estava livre e levou-a ao cinto para pegar sua faca afiada, não morreria indefeso nas garras do que quer que fosse aquilo. Seus olhos se arregalaram mais quando compreendeu que sua arma não estava na bainha. Por alguns segundos se esqueceu da ameaça à sua frente tentando entender onde deixara a faca que o acompanhava há anos. Não esquecera, alguém a roubara.
O ronco ensurdecedor da criatura o trouxera de volta à realidade. Aparentemente, ela pisara em algo que a ofendera, era um grito de dor, foi a conclusão óbvia, uma vez que a coisa voltou a voar imediatamente, com rapidez e desespero, se afastando mais e mais.
Durante muitos e muitos minutos, do modo como estavam, continuaram...
Detonid55 foi o primeiro a se movimentar.
- Acho que é seguro – ele sussurrou.
De início agacharam-se devagar, perscrutaram o ambiente, assim como a coisa havia feito antes. Ergueram-se ainda com as lanternas apagadas.
- Alguém viu direito o bicho?
- Eu não vi nada – respondeu @@S – o fedor me fez fechar mais apertado os olhos.
- Então essas coisas não enxergam também – concluiu alguém.
- É o que parece – disse Xrey.
- Podemos acender a luz?
As lanternas foram acionadas e pouca coisa se modificou. Vasculharam o local e encontraram os passos da criatura. Havia uma haste de ferro com a ponta acima da superfície onde existia o que parecia sangue e couro pregados nela. Não havia necessidade de explicação.
- Vamos embora – ordenou Xrey – antes que surjam outras.
- E o #CapM4?
- Se ele ainda estiver vivo, voltará sozinho.
O retorno foi mais rápido, apesar das mochilas preenchidas com diversas latas e ferramentas. O medo é combustível eficaz.
Antes de entrar, @@S perguntou o que diriam à família do ausente.
- Diremos o que sempre dizemos nesses casos – orientou Xrey – nada.
Forçaram a polia e a porta improvisada do esconderijo se abriu apenas o suficiente para passarem um a um. O sol começava a queimar na linha do céu, a parede externa da caverna já aumentara muitos graus sua temperatura apenas com essa indicação de visita do antigo astro gerador da vida. Em breve, tudo seria torrado mais uma vez enquanto os sobreviventes aguardariam a noite chegar.
Dentro da caverna, desceram ao longo do túnel por muitos quilômetros terra adentro. Encontraram as pessoas reunidas e iluminadas pelas tochas de fogo, elas aguardavam os produtos que o grupo conseguiria.
As mochilas foram esvaziadas rapidamente. Um pequeno assombro de alívio se fez ouvir em eco. A caçada fora positiva. Teriam alimento por dois ou três dias a mais. Ninguém se lembrou de #CapM4, uma boca a menos.
Enquanto observava essa nesga mínima de felicidade à custa do sacrifício alheio, Xrey percebeu pelo canto da visão a figura de um homem se juntando aos demais, como se ele não estivesse ali quando a equipe chegou, talvez estivesse ocupado com suas necessidades fisiológicas, talvez estivesse verificando a entrada da caverna, era mais uma curiosidade que preocupação genuína, curiosidade que foi aguçada quando encontrou sua faca sobre uma rocha afastada próximo ao lugar onde dormia. Ele tinha certeza que não a tinha esquecido. Um mistério.
Se Xrey soubesse que #CapM4, pouco antes de morrer, havia se lembrado de ter notado mais uma sombra escondida descendo para o vale, se Xrey soubesse disso, tomaria mais cuidado na próxima busca pela vida para não ser mais boca eliminada.
Tema: Mundo Pós Apocalíptico.