ZÉ RUFINO
Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe sua vã filosofia.
William Shakespeare
O diabo existe! E as costuras que faz, de tão bem-feitas, não deixam linhas soltas de sua passagem aqui na terra não. Ele é muito malandro, o cabra safado.
Bento de Zulmira
1916, aos arredores de Vila Bela, Pernambuco.
Zé Rufino olhava o casebre lá embaixo dentro da noite. Mexia o crucifixo no pescoço, inquieto, nervoso. Parecia rumorejar reza pra si. Do alto do topo da serra, o chefe Bento Palheiro e seus homens, todos a cavalo, reparavam também a pequena cabana de taipa perdida naquele oco do mundo.
O casebre isolado alumiava o lugar de modo misterioso. Era o lampião pendurado no caibro da varandinha que balançava com o vento. Dava parecença que a morada se mexia em meio à escuridão da caatinga. Aquilo causava arrepio.
— Do que é que vosmecê tem medo, Zé? Por que toda essa gastura, hein?
O rapaz tirou o chapéu puído e o levou ao peito em sinal de respeito. Em seguida, estirou o queixo lá pra baixo na direção do casebre.
— Meu padrinho, dizem que Honorato não é um vivente deste mundo. Há quem diga que ele tem parte com o cão, o bode-preto, o sacripanta.
— Lá isso é verdade – emendou Amâncio Carabina em tom de assustado. - Corre boato solto em toda a Vila Bela que o tal aí tem o corpo fechado. A conversa do povo diz que o caboclo é alcoviteiro do capeta. Nele não entra bala não!
Bento Palheiro impacientou-se com o palavrório. Reparou a cisma ganhar corpo no bando. Até Honório, o mais valente, esbugalhou os olhos em consumição.
— Diacho. Que conversa é esta agora? Deixem de bestagem vocês dois – ralhou o capitão com o afilhado e Amâncio.
Depois olhou acabrunhado os outros três companheiros numa gastura parecida.
— Mas é uma cambada de gente frouxa mesmo. Fiquem sabendo que o velho Honorato come, dorme e mija como qualquer outro cabra neste sertão. Não quero nem mais um pio desta lenga-lenga abestalhada, visse? Vamos embora, porque, senão, amanhece e o boi não brinca.
Zé Rufino, sendo o último a cutucar o cavalo, deu um suspiro alto, conformado, depois que o bando se enveredou na trilha pra descer à Serra. A lua gorda tomava conta de toda a caatinga, espantava o breu da noite, branquejava tudo à sua volta. Dava até pra ver as pedras perigosas e a vegetação rala da encosta. Todo o cuidado era pouco na descida.
O rapaz, no molejo da montaria, ia lá nos seus pensamentos. A senhora sua mãe afirmava coisas do passado sobre a fama de Honorato. Era o homem de branco, caixeiro-viajante, vendedor de beberagens de cura. Era o homem que, na sua mocidade, havia desgraçado a vida de Antônio Conselheiro. O massacre de Canudos, ela tinha certeza, estava na conta dele.
Dali a pouco avistaram os primeiros mandacarus no sopé da Serra. E com pouco mais foram se aproximando do casebre. O moço logo percebeu algo diferente na região. A luz do lampião já não jogava mais as sombras de um lado para outro. O vento deu sumiço daquele calcanhar de Judas. Apertou a pistola no cós da calça, sentiu o conforto do rifle grudado nas costas. Procurava segurança.
Assim que desceram das montarias, antes de se apresentar para cuidar dos cavalos, como era de seu serviço por ser o novato no grupo, o jovem ouviu a voz enérgica de Bento palheiro na sua direção.
— Vem aqui, garoto. Vou botar coragem no peito de vosmecê. Não quero homem de crendice abestalhada no meu bando.
Zé Rufino, apesar da aflição, não vacilou. Não carecia de desgostar o capitão fazendo corpo mole. Deu dois passos para o lado do padrinho de modo a ficar de frente à porta entreaberta do casebre. Um silêncio mortal cresceu em torno do lugar.
— O Negro Dioclécio e Pedro Zeferino ficam aqui fora na espia – ordenou o chefe. - Cuidem dos cavalos. Honório e Amâncio, venham comigo... quero bico calado, visse? Deixem que eu falo com o caboclo.
— E vosmecê – continuou o padrinho, levando a mão às costas do afilhado e empurrando o pobre na direção da porta – deixe de ser cagão e entra primeiro.
Zé Rufino viu-se, de golpe, engolido pela misteriosa casinha de taipa.
De início, Honorato era um homem pequeno. Parecia tísico, de uma magreza quase doentia. Trajava roupas brancas impecavelmente limpas e bem passadas. Sentado numa cadeira de espaldar alto, acomodado por de trás de uma mesa robusta de cedro, ele não se dera o trabalho de levantar a cabeça para verificar quem tinha invadido a sua morada.
Os homens do capitão se admiraram com as paredes internas da casa. Estavam cobertas de prateleiras, de cima a baixo, abarrotadas de garrafas coloridas de todos os tipos e tamanhos. A iluminação, oriunda de uma lamparina pousada na mesa, refletia-se em todas elas. Aquilo causava um efeito macabro dentro do cômodo apertado.
— Honorato, vim aqui pra mode de prosear com vosmecê a pedido do coronel Idelfonso – anunciou Bento Palheiro em tom ríspido, sem se apresentar.
O caixeiro-viajante levantou a cabeça e encarou os quatro invasores. As pernas de Zé Rufino tremeram. Reparou logo que o homem não era um desvalido qualquer. Dos olhos do caboclo, apertados numa cara ossuda e chupada de bexiga mal curada, o rapaz admirou-se daquela expressão de domínio, de maldade, de vivência antiga, de não temer a morte.
O dono da casa pousou atenção, num primeiro momento, no chefe dos cangaceiros.
— Não tenho nada contra vosmecês. Vão-se embora! Meu negócio é com o coronel Idelfonso. Tenho acordo apalavrado com o velho.
A voz de Honorato era forte e rouquenha. Mas tinha comando. Despertava respeito.
— O remédio da garrafada funcionou na filha doente lá dele – disse Bento Palheiro. - A pobre tava à beira da morte. A vida voltou pro corpo da moça. O coronel agradece o adjutório. Mandou lhe entregar isso. – E jogou um maço encorpado de dinheiro em cima da mesa.
O vendedor de garrafadas ignorou o maço de notas. Levantou-se devagar. Ouviu-se o arrastar lento da cadeira. A cara fechou-se feia, séria. Zé Rufino se encolheu na alma.
— O trato apalavrado não foi esse. Não quero o dinheiro do velho. Em troca da vida da filha dele, tão somente pedi que o coronel mandasse um dos seus homens roubar quatro bodes do Zé Saturnino.
— Pois é, infelizmente o coronel Idelfonso mudou de ideia. Ele tem muita estima pelo seu Zé Saturnino, num sabe? Vim aqui na paz. Agora, se vosmecê der na veneta de botar os pés lá na fazenda do velho cobrando dívida... a coisa vai ficar feia pro vosso lado.
Honorato não fez medo da ameaça. Inclinou o corpo franzino à frente. Escorou-se com as mãos abertas na mesa. A carranca se fechou ainda mais. Encarou diretamente o capitão e jogou-lhe a desfeita na cara.
— Vão-se embora, já disse! Não tenho precisão de ouvir conversa atravessada de jagunço pau-mandado.
O líder do bando não contou tempo. Não engoliu o agravo. Deu dois passos à frente e meteu a coronha do rifle na testa do caixeiro-viajante. O caboclo foi lançado na cadeira com violência e emborcou ela mais ele no chão.
— Filho duma égua. Vosmecê tá pensando que tá falando com quem? – berrou o capitão enfurecido.
Zé Rufino levou a mão ao crucifixo. Sentiu o ar no interior da casa engrossar. Desde muito criança tinha algo estranho dentro de si. Um sentimento de saber quando o perigo estava chegando.
Honorato se levantou rápido. Os cangaceiros assustados se fizeram nas armas. Ficaram de prontidão. Do rosto bexiguento do homem corria um fio de sangue enviesado a partir da testa arrebentada. Maculava de vermelho o terno branco.
— Olha só, Zé. Presta atenção! Corpo fechado? Da onde? Este cabra safado aí sangra igual a qualquer um – comentou o padrinho.
Foi então que a água vazou do leito do rio. A tragédia se enveredou no destino de muitos.
Honorato, atraído pela fala do capitão, mirou o jovem cangaceiro bem dentro dos olhos. O moço arrepiou-se todo, em choque, ao perceber aquela encrenca maligna crescer dentro do vendedor de garrafadas. A negrura maldosa que se avultava no outro não era algo deste mundo, bem sabia. Aquilo que habitava o corpo do homem franzino, desperto em fúria, vinha tomar o comando. A coisa tinha origem num tempo longínquo, distante, bem antes até de o senhor Jesus Cristo caminhar sobre a terra.
Zé Rufino deu um passo para trás apavorado quando viu os olhos de Honorato enegrecerem de repente. O sorriso torto, assim de um deboche malévolo, brotou da carranca borrada em sangue. Uma língua fina e bifurcada, semelhante à de uma cobra, coriscou tremida no canto da boca daquele diabo. Era uma visão medonha. O braço esquerdo do maldito se ergueu e apontou na sua direção. A voz rouquenha do caboclo se agravou. Parecia o barulhar áspero de uma lixa.
— Eu conheço vosmecê – disse espichando ainda mais aquele sorriso maligno.
O rapaz, colhido de repente no espanto, não deu conta do seu juízo. Caiu num berreiro desembestado que assustou os companheiros. Sacou a pistola do cós da calça e a descarregou no peito de Honorato. O caixeiro-viajante, sem abandonar o sorriso peçonhento, deu dois passos para trás enquanto tremia-se todo, em pequenos trancos, perfurados pelas balas. O sangue vazou-lhe da boca aos borbotões, espirrou longe pra todos os lados. O terno alvo avermelhou-se num instante. Mas o maldito de branco era teimoso. Ficou de pé. Olhos enegrecidos cravados no jovem cangaceiro.
O tempo pareceu se dilatar às vistas do rapaz. O entorpecimento dos sentidos também. Mal conseguia ouvir o assombro dos companheiros em reclamar de seu desatino. No entanto, compreendeu que a carranca do demônio não apareceu para os outros. A coisa parecia se manifestar apenas para ele.
Quando a vida abandonou o corpo de Honorato e ele desabou, algo terrível aconteceu. Zé Rufino esbugalhou os olhos buscando entender o sucedido. Queria trazer de volta o bom senso. Estava passando mal. A sala começou a girar. As pernas lhe faltaram. O chão de madeira lhe veio na cara e o pobre apagou-se de vez.
Uma mistura de cheiros, sons, e a visão do céu coalhado de estrelas foi se firmando aos poucos na consciência: notou o cheiro de fumaça de madeira queimada, ouviu o barulho intermitente, “poc... poc... poc...”, sentiu o chão duro da caatinga nas costas. Estava deitado. Respirou fundo e lembrou o que havia ocorrido. Daí, o medo veio-lhe de assalto novamente. Arqueou-se à frente num rompante e ficou sentado, o coração a bater alto de nervoso. Virou a cabeça de lado e viu o telhado do casebre em chamas.
— Chefe, o garoto acordou! – disse o Negro Dioclécio sentado a poucos metros dele. A pele escura do caboclo estava até dourada pela luz que emanava da enorme pira ali perto.
O líder do bando, de onde estava a admirar o fogaréu, sem se voltar para o afilhado sentado no chão da caatinga, deu ordem em voz alta.
— Não quero a morte de Honorato nas minhas costas. O cabra tinha reputação de curandeiro dos bons por estas bandas. Estamos entendidos?
Todos acataram.
— Zé, levanta o espinhaço do chão. Vamos dar o fora daqui. Quero acampar esta noite lá na Furna do Araticum.
Em poucos minutos, os cangaceiros já subiam de volta à trilha da serra. Não olharam para trás. O rapaz ainda conseguiu ouvir o último “poc” de uma garrafa solitária explodir dentro da casa em chama.
Sentado com as costas apoiadas num pé de umbu, Zé Rufino espreitava tudo ao redor com olhos alarmados. A noite não avançava. A lua corria frouxa. O cheiro do café, antes tão bom, não lhe animava o espírito. Estava afastado dos companheiros em volta da fogueira do acampamento. O medo ainda lhe embotava os pensamentos. Queria mesmo era fugir pra bem longe. De vez em quando, enquanto devoravam a carne de sol, um ou outro companheiro lhe lançava um olhar de suspeita.
— Perdoe a minha franqueza, chefe, mas este teu afilhado aí não tem calibre pra vida no cangaço não – ouviu Honório falar.
— Qual o quê! O moço só tá um pouquinho desconjuntado das ideias. Precisa de benzimento forte pra mode de botar coragem no corpo outra vez – aconselhou o Negro Dioclécio.
O capitão não disse nada. Ao invés de dar bronca nos homens a fim de encerrar a conversa, ele pegou a concha de pau na panela e encheu um prato limpo com feijão e carne de sol. Depois, levantou-se sem mais e deu seguimento na direção do umbuzeiro.
Zé Rufino foi se encolhendo à medida que o líder do bando se achegava para perto.
— Vosmecê precisa comer – disse o chefe, ficando de cócoras na frente do rapaz enquanto lhe o oferecia o prato. – O que foi desta vez, Zé? De novo esta gastura!
Bento Palheiro viu que o rapaz ignorou a comida e olhava desconfiado por cima do seu ombro na direção do acampamento.
— Meu padrinho, escuita... a coisa... a coisa tá por aqui, viu?
— A coisa? Que coisa, Zé?
Os olhos do jovem pararam de tremer, dando pouso firme nos do capitão. Ficou a ruminar os pensamentos por alguns segundos, como se estivesse a tomar coragem, engoliu a saliva e sussurrou:
— O capeta!
Bento Palheiro, cismado, observou o afilhado por um longo momento. A criatura só podia estar fora do prumo, pensou. A cara assustada do rapaz era de doido. Mesmo assim achou por bem dar corda pra ver até aonde aquela conversa sem pé nem cabeça ia dar.
— Do que vosmecê tá falando?
— O coisa ruim tava no corpo de Honorato. É bicho antigo, meu padrinho. O desgramado corre solto neste mundo de pessoa em pessoa no passar do tempo. Faz das suas e bota a culpa nos outros! Mexe com o destino de muitos.
— Se é verdade... como vosmecê pode saber de tudo isso?
— Não sei explicar direito, mas eu sei! Antes de desmaiar, eu vi a forma escura fumacenta, meio homem meio cobra, se desprender do corpo de Honorato estirado no chão e...
Antes do rapaz terminar a frase ouviu-se o estouro de um tiro que ecoou dentro da Furna do Araticum. Os dois se voltaram para o acampamento. Lá estava Amâncio em pé, de pernas entreabertas, segurando o rifle. Da cabeça do Negro Dioclécio, derribado ao chão, esguichava um fio de sangue que ia alto. A luz tremida da fogueira dava relevo nos detalhes sinistros na fisionomia do endemoniado: os olhos enegrecidos e a língua bifurcada no canto da boca. A cena era de meter medo em cabra valente. Desta vez, o capitão também viu.
O que aconteceu a seguir ficou gravado na mente de Zé Rufino até o dia de sua morte, vítima de um ataque cardíaco cinquenta anos depois, enquanto assistia missa em uma das paróquias do interior de Pernambuco. O sucedido, não raro, lhe tirava o sono.
Foi bem assim: Pedro Zeferino e Honório, sentados ao redor da fogueira, ficaram paralisados por um breve momento tentando entender o que havia ocorrido. No entanto, eram homens de ação. Tudo aconteceu muito rápido.
Os dois se levantaram ao mesmo tempo em lados opostos do maldito. Um puxou a pistola do cinto, o outro trouxe o rifle junto com ele. Amâncio se virou, já atirando na cara de Pedro Zeferino à queima-roupa. O cangaceiro desabou no chão como um saco de batata, caindo de lado. Honório foi à frente, de pistola em punho, e atirou na cabeça de Amâncio, que dobrou os joelhos na hora, indo ao solo da caatinga do mesmo jeito.
— Jesus Cristo! – murmurou o capitão enquanto se levantava num salto e jogava o prato de comida fora de modo a puxar a arma das costas.
Zé Rufino, pela segunda vez naquela noite, horrorizado, viu o espectro negro se desvencilhar do corpo estirado de Amâncio e tomar o de Honório. Na sequência, Honório se virou e caminhou determinado na direção do umbuzeiro. Vinha ao encontro do rapaz. Olhos negros. Sorriso maligno na cara. Bento Palheiro postou-se no meio do caminho, expulsou o medo, levou o rifle na altura dos olhos, fez mira, e atirou. “Tome fogo, cabra”. Um pequeno orifício vermelho se abriu na testa do mais velho do bando e ele desabou no chão também.
Zé Rufino não teve tempo sequer de se levantar quando o padrinho deu meia-volta, já com os olhos completamente negros, possuído, e acercou-se do pé de umbu. O jovem cangaceiro dobrou as pernas no peito, cruzando os braços para conter o tremor do corpo. O capitão apoiou uma das mãos no tronco da árvore, inclinou-se aproximando o rosto transfigurado bem próximo da cara do moço, que desviou o olhar para baixo.
— Tu és uma criatura intrometida. Falas demais. Tens o dom de ver além da materialidade do mundo. Isso é algo muito raro.
O garoto, num impulso, puxou a pistola e a Levou à própria cabeça.
— Não... não... não quero o meu corpo nas mãos de vosmecê – conseguiu falar.
O demônio rapidamente lhe arrancou a arma das mãos e a jogou pra longe.
— Não vou te matar. Sou de palavra. Cumpro meus acordos. Teu pai fez um pacto comigo em troca de garrafada pra te salvar quando tu eras uma criança birrenta e chorona. Trato é trato.
— O que ele...
— Isso, agora, não vem ao caso... olhe para mim!
Zé Rufino manteve os olhos no chão.
— Olhe para mim – rugiu o demônio.
O rapaz levantou a cabeça e encarou aqueles olhos de uma negrura secular na cara do padrinho.
— Tenho duas ordens para ti. Por isso, preste atenção! E não ouses me desobedecer. Primeiro, jamais fales a ninguém sobre o que aconteceu aqui. Se ficares de boca fechada, viverás por muito tempo. Segundo, quero que roubes quatro bodes da fazenda de Zé Saturnino e deixe-os no terreno do José Ferreira. Tu entendesses bem?
— Sim, entendi.
Assim que o garoto concordou, Bento Palheiro se retirou e montou no cavalo mais próximo.
— Agora, tenho uma dívida a cobrar do coronel Idelfonso.
Em seguida, o demônio escafedeu-se dentro da noite.
1926, município de Vila Bela, Pernambuco.
Dez anos depois, Zé Rufino, de passagem por Vila Bela, estava sentado à mesa de uma vendinha de secos e molhados. Bebia sozinho um copo de cachaça, mas estava de ouvidos atentos à conversa que iniciara na mesa vizinha entre o dono do estabelecimento e o jovem repórter da capital.
— Pois veja só vosmecê como são as coisas, doutor - dizia o vendedor-, Virgulino Ferreira, o Lampião, é o terror do sertão. Uma fera temida em todo este nordeste de Nosso Senhor. Matou muita gente, sim. É um sofrimento por demais da conta por onde o cabra da moléstia passa. E dizer que toda esta sina sangrenta começou porque o Zé Saturnino acusou Virgulino e o pai dele, seu José Ferreira, de roubar bodes da sua propriedade. As famílias se desentenderam e aí deu a gota serena. Danou-se tudo. O doutor acredita nisso?
Nota do autor: Este texto é derivado de um outro conto de minha autoria intitulado “O homem que queria matar o diabo”, mas não é preciso lê-lo, pois são histórias independentes.