ENGANANDO A MORTE
1
Hermes, um policial civil, andava apressado naquele fim de tarde chuvoso. O homem estava meio distraído em virtude do que havia acontecido no dia anterior, onde participou de uma operação para prender um grupo de traficantes.
Tudo aconteceu de forma frenética. Ao entrar no covil dos criminosos, com a arma na mão, junto com um grupo de policiais, Hermes logo percebeu que uma criança com no máximo seis anos de idade era usada como escudo humano por um dos traficantes. Os bandidos foram cercados por todos os lados. A situação parecia estar completamente sob controle, embora com um refém. Deveria ser filho de alguns dos marginais, portanto, o líder do grupo ordenou que não atirassem.
Hermes, sobressaltado com um movimento brusco feito pelo bandido que dominava a criança, pensou que ele iria disparar; o policial tentou atingir o marginal que a segurava, entretanto, o tremor do nervosismo fez com que acertasse um tiro no olho do infante. A criança não morreu rapidamente. Lágrimas escorriam pelo rosto do atirador na medida em que ela dava os últimos suspiros.
2
A leve garoa vira tempestade, trovões ressoavam prenúncios obscuros vindos dos céus. Hermes se abrigou sob uma árvore, sentiu uma "vibração" percorrendo o seu corpo; neste momento, foi transportado para outro local. Estava em uma sala ampla, a sua frente havia apenas duas portas lado a lado, ele escolheu uma e entrou.
No local um homem vestido com um terno preto estava sentado em uma gótica mesa de madeira, de aspecto antigo e sinistro. Ordenou que Hermes se aproximasse e lhe disse sem rodeios:
— Amigo, antes de você perguntar alguma coisa, te digo apenas que se não quiser passar para a porta ao lado, você deverá entregar-me em 30 dias três almas e nada mais.
Antes que pudesse responder, o policial sentiu que seu corpo desfazia-se, como se fosse extirpado da existência.
Acordou dentro de uma ambulância onde médicos tentavam reanimá-lo. Contaram-lhe posteriormente que havia sido atingido por um raio durante a tempestade e que ficou oficialmente "morto" por cerca de 5 minutos, antes de ser ressuscitado.
Hermes não contou para ninguém o "sonho" que teve quando esteve inconsciente, mas as recordações não saiam de sua mente, lembrando o lendário corvo de Poe, o som emitido pelo homem de negro era constantemente repetido em seu íntimo: "três almas e nada mais".
O policial tentou esquecer todo o trauma. Ele já havia lido alguns livros e revistas que falavam de experiências de pessoas que retornavam à vida, após terem sido consideradas legalmente mortas, mas pensava se tratar de fantasias histéricas, fruto dos últimos neurônios que lutavam para sobreviver na mente dos que estavam sucumbindo.
Faltando apenas alguns dias para o término do prazo que fora estipulado no "sonho", ele levou-se pela tentação e resolveu cumprir o que lhe fora imposto pelo misterioso homem de preto. Sentia que uma força enigmática exigia o cumprimento da tarefa.
3
Era madrugada quando Hermes viu dois mendigos dormindo embaixo de um viaduto, cobertos por papelões e jornais antigos. Fazia frio, o clima era mórbido. O policial se aproximou furtivamente, apontou a pistola para os homens e disparou uma bala na cabeça de cada.
Já havia tirado a vida de pessoas antes que não tinha certeza de serem culpadas, sendo juiz e executor, mas foi à primeira vez em que se sentiu arrependido.
Ele prometeu a si mesmo que não iria mais assassinar ninguém e que deveria superar o misterioso aviso oriundo de forças sobrenaturais. Contudo, no último dia do prazo assinalado, começou a sentir leves choques percorrendo o seu corpo. Olhou no relógio de pulso, faltava apenas uma hora para o final do prazo.
O policial suava e tremia como um viciado com síndrome de abstinência. Locomovia-se pelas ruas meio trôpego, a procura de uma vítima que pudesse arrancar a alma. Tirou a arma da cintura. Apontou para uma mulher grávida. Alguém ao longe gritou quando viu a cena.
Ele parou repentinamente, a fraqueza em seu corpo o fez se ajoelhar, empunhou a arma novamente, mirou na mulher, mas antes de apertar o gatilho, sentiu uma dor lancinante em suas costas, olhou para trás e viu que um PM fardado havia disparado em sua direção.
Hermes caiu de costas no chão, sentiu que ia perder os sentidos e antes que percebesse, novamente estava naquele lúgubre local, onde a tarefa das trevas lhe tinha sido ordenada, mas agora havia apenas uma porta visível. Demorou um pouco para ter consciência de onde estava, mas quando teve a certeza, um calafrio espectral percorreu a sua alma.
Ele adentrou no recinto. Ao contrário da outra vez, agora havia diversas pessoas. Reconheceu imediatamente o menino em que disparou imprudentemente quando tentou atingir o traficante e aos poucos foi percebendo que dentro do local estavam todas as pessoas que ele assassinou. Seus olhares não eram amistosos.
O homem vestindo luto surgiu atrás das pessoas e falou:
— Infelizmente você me trouxe apenas duas almas, agora passará toda a eternidade nesta sala absorvendo a dor e o sofrimento daqueles de quem você ceifou a vida, fazendo-os voltar ao que de fato são: almas que vagam perdidas, no limbo entre a vida e o descanso eterno.
— Mas eu tentei. — respondeu o policial.
— Sim, de toda forma você estaria morto nesta data, mesmo se houvesse matado as três pessoas no prazo fixado. Nada impedia que você mesmo tivesse se suicidado para completar as "três almas", mas neste caso, você estaria entrando em outra sala, um lugar bem mais agradável.
As pessoas assassinadas pelo policial começaram a fazer um coro, dizendo repetidamente: "três almas e nada mais". Esta melodia infernal iria soar para toda eternidade no âmago do agente da lei ou até que as almas perdidas achassem o caminho que leva ao caos original.