ANDROMAQUIA

Donna atendeu a porta e recebeu o seu lanche direto das mãos do LDN 09, seu androide entregador favorito, que ela carinhosamente apelidou de Ludi.

—Aqui está. Seu predileto. Carne sintética de Coelho, com brotos de feijão, rabanete, arroz e molho de aspargos ao creme de alho. Só você mesmo para montar um prato tão inusitado, sabia?

—Veja só, quem está falando. O androide que remixou Vivaldi com Iron Maiden, o que pode ser mais inusitado do que isso?

—Vamos comer, então? —convidou o androide, exibindo um sorriso genuíno de satisfação. No que Donna não segurou seu espanto.

—Não! Verdade? Você tá falando sério? Minha nossa!

—Sim. Meu último upgrade foi para que pudesse ingerir sólidos e líquidos. Agora estou quase completo.

—Ah, então isso merece uma comemoração. Vou abrir um vinho. Eu não acredito, mano. Pensei que fosse demorar a acontecer. Caraca, eu tô tão feliz. —Expressou ela, o abraçando e escondendo um choro calado de alegria.

O ano é 2064. O cenário pós apocalíptico atual se originou após a ascensão do primeiro-ministro japonês Kenzo Nakamura em 2028, pondo em prática um plano inusitado de vingança contra os EUA, em razão das bombas de Hiroshima e Nagasaki. Nakamura aliou-se ao presidente russo e os dois blocos, formados por EUA e Europa, contra os orientais sedentos, culminou em uma guerra nuclear sem precedentes.

Os avanços da I.A., da robótica e da biotecnologia, tornaram a vida humana como era conhecida, quase obsoleta. Seus substitutos eram mais velozes, inteligentes e adaptáveis.

Uma aliança macabra das superpotências estudava freneticamente maneiras de retroceder o DNA humano ao dos seus primitivos ancestrais chimpanzés e também à esterilização da espécie. Controlados e limitados, os pouco mais de 25 milhões de humanos que sobraram no mundo, viviam de forma obsoleta, sem trabalho, sonhos e ambições. Apenas desfrutavam de prazeres, jogos, viagens e qualquer maneira fugaz com que quisessem passar seu tempo miserável.

—Temos que fugir, Maia. Eles descobriram tudo. Em questão de minutos estarão aqui. Tome, —apelou o cientista Plínio, entregando para a assistente o vidro contendo sua experiência que poderia restaurar e devolver à raça humana, a dignidade perdida. —encontre a minha filha e faça-a ver quem ela é e o que deve fazer para que a raça humana não se extinga para sempre.

O cientista abriu uma mochila, enfiou rapidamente alguns de seus instrumentos e pertences, anotações e cadernos e acionou o alarme de incêndio, tocando fogo no laboratório em seguida. Ele e Maia pularam a janela. Do lado de fora ele a puxou e os dois se despediram com um abraço.

—Precisa se livrar do seu chip antes de ir até ela, entendeu? Eles não podem rastreá-la. Essa é a nossa última esperança. Encontre o androide que faz as entregas. LDN 09. Ele a levará até ela. É tudo o que eu sei. O Mendez do senso me ajudou com isso. Em breve estarei com vocês. Preciso fazer umas coisas antes.

Ludi, o androide LDN 09, visitava uma das ilhas onde os humanos eram cultivados do jeito antigo. Esses complexos existiam para que novas gerações de androides continuassem evoluindo e aprendendo com os humanos. Uma linhagem pura fora separada e dividida nessas ilhas. Eram 33 ilhas iguais a essa espalhadas pelo mundo. Fortalezas inexpugnáveis, protegidas do exterior por uma redoma. Nesses zoológicos humanos, eles acreditavam que para sua proteção e para não se contaminarem, deveriam ficar e viver ali.

—Eu conheço uma humana, fora daqui, que é igual a eles. Ela é esperta. Uma criatura adorável. Isso é possível?

—Será que você não está se apaixonando pela humana? E projetando nela esses atributos exagerados? —sugeriu o androide XBW 01, enquanto observava um homem correndo após roubar uma bolsa de uma transeunte que andava pela calçada.

—Essas coisas eram muito comuns na época deles. —Concluiu Ludi ao ver a cara de espanto do seu amigo.

—Parece que sim. É engraçado, não é? Como eles eram fascinantes. Tão engenhosos. Foram capazes de nos criar, mas ao mesmo tempo sucumbiam aos seus instintos mais primitivos e selvagens como o assassinato e esses diversos crimes.

—É sim. Por isso eu me pergunto, às vezes, do propósito dessas ilhas e de quererem que aprendamos alguma coisa ainda com eles. Será o ideal que nos tornemos iguais a esses seres em tudo? Será esse o propósito?

—Seja como for, 09, jamais seremos como eles. Somos melhores. Superiores. Entende?

Ludi assentiu com a cabeça, mas não estava totalmente convencido disso. Talvez seu convívio com Donna estivesse mesmo afetando seu julgamento sobre eles.

De volta ao convívio do mundo exterior, o andróide LDN 09, ainda da primeira geração, que eram os únicos andróides não tão avançados e que ainda atendiam aos humanos mutantes, preparava-se para mais uma entrega, enquanto ansiava para que recebesse mais um pedido de Donna.

—Com licença. Você é um androide, não é? Eu me chamo Maia. Procuro uma humana chamada Donna. Você a conhece?

Ludi tentou ler o chip da humana, mas não conseguiu rastreá-la. O que o deixou alerta e temeroso quanto às intenções daquela mulher.

—Sim, sou um androide. E não, não conheço nenhuma Donna. Desculpe, senhorita. Mas estou atrasado para uma entrega.

—Escuta. Talvez você não entenda a importância disso. Mas quem eu procuro, pode ser a pessoa responsável pela permanência da raça humana neste planeta, fora dos zoológicos em que estão confinados. Eu posso ser presa por estar falando isso a você. Mas eu não tenho mais ninguém. Devo arriscar tudo antes que seja tarde. Você compreende?

—Compreendi a urgência. Se registrar um IG numa fita, eu posso contatá-la caso a encontre. Coloque todas as informações referentes a ela. Ok?

Maia achou arriscado dar tais informações ao androide, então agradeceu e seguiu no sentido contrário. Decidiu confiar na sua intuição e seguir o androide, já que não podia ser rastreada, não tinha nada a perder. E podia ser uma pista importante.

Enquanto isso, o cientista Plínio, confrontava-se com o que mais temia. Sua casa invadida pela Polícia Metropolitana. Ele sabia que o mais importante para prosseguir com sua pesquisa estava de sua posse, mas queria destruir tudo o que pudesse levar eles a qualquer conclusão, o menor indício que fosse, era perigoso. Mas era tarde. Eles chegaram antes. Agora ele tinha que se cuidar para não ser visto e encontrar sua filha Donna.

Maia, que havia seguido o androide, arriscou que ali fosse o endereço da filha de Plínio, já que foi o único lugar em que ele entrou. Ficou esperando perto de um bar onde alguns humanos bebiam e se divertiam assistindo a um jogo de futebol. Eram criaturas estranhas. Sombras do que foram outrora. Sem propósito. Passando o seu tempo com qualquer bobagem sem sentido e achando tudo o máximo. Que futuro é esse? Como imaginar que acabaríamos assim? A maioria parecia zumbis se arrastando com seus óculos de realidade virtual e seus sintetizadores. Vivendo sonhos virtualmente e querendo sempre outra vida. Outros lugares, experiências. Eram viciados na ilusão.

Quando o androide saiu, desconfiado, olhou em volta, fez uma varredura procurando qualquer suspeita e foi embora. Maia procurou agir depressa. Uma inspeção rápida ao interfone confirmou suas suspeitas, o nome de Donna sobre escrevia o apartamento 207. Interfonou e depois de alguns segundos a moradora atendeu.

—Pois não?

—Oi, Donna. Sou a Maia. Sei que o androide com quem esteve até agora deve tê-la alertado sobre mim. Mas preste atenção. Trago um recado do seu pai. O cientista Plínio. Se você não me ouvir e não vier comigo, você será morta. Entendeu? Me deixe entrar e explicar. Mas você está sendo caçada e se você morrer, toda a raça humana como um dia já conhecemos, acabará para sempre.

As duas conversaram. Maia expôs todo o plano do pai de Donna, que assustada, tentava assimilar tudo.

—Então eu sou uma humana, nascida e criada como humana. Uma descendente de Eva. É isso que você está me dizendo?

—Sim. O seu pai não aplicou a vacina em você. Ele fraudou os registros e manteve esse segredo até mesmo de você. Ninguém podia saber. Depois que os separaram, por ele ser um cientista, agente do governo, ele continuou o seu projeto buscando fazer uma vacina que fosse o antídoto que pudesse reverter os efeitos da vacina anterior, que causou tudo isso. Mas agora, Donna, —reforçou Maia, segurando firme as mãos dela entre as suas. Olhava diretamente nos olhos dela. —agora é primordial manter você viva. Entende?

—Você e o meu pai, não são como eu?

—Não. Agentes do governo foram modificados para se tornarem acadêmicos. Especialistas em suas áreas. Repelimos sentimentos e emoções e quando demovidos de algum modo por qualquer apelo parecido, sentimos fortes cólicas e ânsias que podem nos causar desmaios e até a morte. Felizmente existem remédios que amenizam esses efeitos.

—Nossa. Tá sendo muita coisa pra assimilar. Eu pensava que o meu pai estivesse morto. Vim pra cá quando tinha apenas oito anos e nunca mais tive notícias dele. Me disseram que ele tinha morrido.

—Eu sei. Vocês têm muito o que conversar. Agora preste atenção, você confia em mim? —perguntou Maia, sendo avaliada pelo olhar intimidador da humana.

—Sim, eu confio. E quero encontrar o meu pai.

—Isso. Precisamos ir agora. Está bem? Eu tenho a planta da cidade velha. Os subterrâneos, que os antigos chamavam de esgoto. Fugiremos por eles.

Se tudo corresse como o planejado, pensava Plínio, em dois dias ele encontraria Maia e sua filha na costa do oceano atlântico, demarcando a exata coordenada repassada por eles. Estava cada dia pior. Era praticamente impossível, até mesmo para ele, fugir e esconder-se por muito tempo de um governo com tantos recursos tecnológicos, praticamente ilimitados.

As áreas contaminadas pela radiação, mesmo passados quase 40 anos, deveriam ser evitadas. Apesar de serem as únicas livres de drones, câmeras e qualquer vigilância. Então ele tinha que correr o risco. De qualquer forma era o futuro da sua filha. Ela é o que era importante. Faria de tudo para preservá-la e mantê-la segura.

Ao atravessar o descampado desolador, Plínio deparou-se com um horror inimaginável naqueles tempos. Destruição e morte por toda a parte. Bombas detonadas, armas, destroços e escombros. Corpos retorcidos, reduzidos a esqueletos dentro de fardas militares. Foram pessoas um dia. O cientista, ao se confrontar com cada um, fazia esse exercício, sem se dar conta direito, se esse morrera com medo, pensando na sua amada ou aquele pensando na comida que a mãe fazia ou se nem dera tempo de pensar em nada. Uma rajada, uma saraivada de tiros e boom, nem chance.

O cientista recostou-se num canto, acumulando uma quantidade de palha que recolheu do galpão abandonado, formando um travesseiro. Os silvos produzidos pelo vento gélido da noite pareciam os gritos medonhos dos condenados do inferno. Ressoavam os metais de ferramentas, as madeiras recostadas em paredes e até os ossos dos mortos lá fora. Por fim, um robô de exploração há muitos anos desativado, logrou acionar-se sozinho, por um curto-circuito talvez e começou a bater e voltar contra a parede, o que fez Plínio se sobressaltar e procurar a razão daquilo. Quando percebeu o que era, armado de um ancinho, ele esboçou um sorriso de alívio. Mesmo sabendo que eram remotas as chances de o procurarem ou qualquer coisa ali, ainda assim tinha de estar de prontidão.

No emaranhado de galerias, canos e dutos dos subterrâneos, Maia e Donna seguiam para fora dos domínios tirânicos daquela sociedade distópica e estúpida.

—Me responde uma coisa, —perguntou Maia enquanto se esgueiravam pelos labirintos dos túneis. —como você conseguia passar pelos exames trimestrais sem chamar a atenção do senso?

—Ah, eu sei lá. Por algum extinto de sobrevivência talvez. Eu percebia todos a minha volta e achava que se agisse igual, eu estava segura. Só fingia.

—Você deve ser muito boa nisso. Eles percebem essas coisas, sabia?

Donna meneou a cabeça e ergueu uma sobrancelha e as duas sorriram. Seria a última descontração que teriam, antes do revés que sofreriam.

As tropas da Polícia Metropolitana e do Exército da União Internacional prescrutavam cada canto, cada ínfimo cômodo, cada viela, cada fresta, em busca do cientista Plínio. O governo havia descoberto o plano do cientista em não vacinar a sua filha, na pandemia de 2037, causada por uma guerra biológica com a intenção de extinguir os que não foram dizimados pelo bombardeio nuclear e justificar a aplicação das vacinas que atrofiariam seus DNA´s, tornando os humanos o que são hoje.

—Ouviu isso? Estão atrás da gente. Precisamos nos esconder. Eu tenho a vantagem de conhecer esse lugar melhor que qualquer um deles. Fique perto de mim, Donna. Não se afaste.

Elas desceram por uma escada que as engolfaram ainda mais pelas entranhas da terra e onde a escuridão seria total, não fosse a lanterna da doutora para as guiar. Acima delas a frota avançada sobre os pesados passos orquestrados na gana pela caça, como cães raivosos. Faltava pouco para elas agora.

Na praia, Plínio as aguardava sentado na areia. As vagas marinhas aqueciam o seu coração, trazendo esperança e conforto. A qualquer momento elas apareceriam saindo do duto que outrora desembocava o esgoto no oceano. Mas para a sua surpresa, quando essa hora chegou, uma moça jovem, bonita, sua filha, apareceu acompanhada de um andróide e não de Maia.

—O que, que aconteceu? Você é a Donna? Onde está Maia?

—Ela, ela… Você é o cientista? Você é o meu pai?

—Sim. Eu sou o seu pai.

Donna correu para abraçá-lo. Mas a felicidade pelo reencontro depois de 27 anos, misturava-se com a tristeza pela perda de Maia. Ela explicaria tudo para o pai, passada a emoção do momento.

—Então ela se sacrificou por você? Pobre Maia. Ela sabia o quão importante era protegê-la e ficou para trás para garantir que eles não a alcançassem. E você? —redarguiu o androide. É da primeira geração, não é?

—Sim, doutor. Sou entregador e amigo da sua filha tem uns anos. Eu a segui quando ela e a doutora planejaram a fuga. Desconfiei dela desde o início. Não sabia de suas verdadeiras intenções. E quando tive que agir, para salvá-las, acabei matando cinco policiais e ferindo outros nove. Eles eram muitos. Nos emboscaram na seção 05 do subterrâneo. Foi quando a doutora Maia, num ato de coragem, sem nem pensar duas vezes, nos disse “Fujam” e correu, trancando a porta atrás de si. Ela desviou a atenção deles para que pudéssemos fugir sem sermos seguidos. Quando escutamos os tiros eu vi uma lágrima calada escorrer do olho de Donna. Ela me abraçou. Ia dizer alguma coisa, mas não disse. Corremos e corremos. Nossas vidas dependiam da agilidade de nossas pernas naquele momento e agora, aqui estamos.

—Maia. Não terei a satisfação de agradecer-lhe tudo o que ela fez. Mas acredito que em seu último segundo de vida ela teve a certeza que seu esforço valeria a pena e tudo acabaria bem. Agora, filha, —segurando as mãos de Donna nas suas, —depende de nós que o esforço dela não seja em vão. Estão vendo aquele navio? São os nossos salvadores. Todos androides de primeira geração como você. Foram desativados e virariam sucata no laboratório. Eu os reativei e fiz uns melhoramentos. Sem a ajuda deles não seria possível replicar o antídoto. Está com você, não é, Maia?

—Está comigo, —interpelou o andróide, acionando um compartimento do seu flanco esquerdo, que se abriu em forma de gaveta, revelando o frasco.

—Está seguro. Mantenha onde está. Assim a humanidade ainda tem uma chance. Vamos fazer um marco? Uma cruz com galhos e marcamos um lugar de descanso para Maia. Pelo menos isso trará conforto aos nossos corações.

Durante a cerimônia, Plínio, que era quem a melhor conhecia ali, disse algumas palavras.

—Maia. Estive do seu lado por felizes 10 anos. Uma amiga incrível, uma profissional competente. Lamento que você não tenha tido a oportunidade de conhecê-la melhor, filha. Mesmo depois, com as mutações sofridas em nosso DNA ela teimava em querer sentir qualquer coisa que a mantivesse em contato com essa centelha divina. Com as artes, música e as emoções. Sempre me dizia que sofria, mas valia a pena. Era o que a mantinha viva. Maia lutou contra a aberração de não se ter o livre arbítrio e lutou até o fim. Descanse em paz minha amiga.

—Isso, Donna. Isso é o que eu nunca terei.

—O que, Ludi? Uma alma?

—Sim. Esse ítem não consta do upgrade. E sinto que é isso que os diferencia de nós. Podemos ser idênticos em tudo, mas sabemos o que somos, porque existimos, quem nos criou. Todas as nossas perguntas têm respostas e isso é deprimente. Nos falta a essência. A ignorância.