SOBRE A MESA DE MOGNO - CLTS24

RATAZANA

Metido num côncavo de pedra, dentro do qual improvisara um jirau tosco, Ratazana fitava as estrelas que pontilhavam aquela noite sertaneja, testemunhas de eventos atrozes. "Deus quer um! Deus quer um!". Era o canto pressago do acauã, que lançava à cabeça do cangaceiro um jorro de recordações.

Lembrou a noite em que seu bando fora emboscado e morto. O terrível grupo de Ratazana, os bandoleiros mais temidos da caatinga, converteu-se numa carreira de cabeças decepadas em exposição pública. Ele vira no jornal, dias depois. Mas estava satisfeito: aquela humilhação não lhe cabia. Fora expulso do bando no mês anterior, quando descobriram-lhe o segredo vexaminoso.

— Mijando que nem cadela, capitão?

Alguns homens do seu bando tiraram-no da moita e o levaram para o meio do acampamento, onde tudo foi posto às claras.

— O capitão Ratazana não tem cuião. Onde já se viu?

A surpresa se espalhou de maneira vária. Alguns fizeram troça, outros indignaram-se.

— Um home sem macheza não pode comandar o bando. É uma vergonha! Vamo colocar esse capado pra correr.

Desde então, Ratazana foi seguindo o bando feito sombra, acoitando-se atrás de pedras e comendo miolo de xique-xique. Foi numa dessas que presenciou a matança. O grupo dormia ao aberto, barriga cheia depois de apanharem uma cabra tresmalhada.

— É sinal de sorte, cambada. É prova do que vamos ter no sul. Só fartura, dinheiro, boa vida — dizia o novo chefe.

Quando a lua ocupava o meio do céu, a tropa de volantes abriu fogo contra o bando.

— Ratazana, seu filho duma égua! Se prepara pra morrer! Bradou o tenente, ignorante do que acontecera ao antigo chefe.

Os fuzis da lei atroaram. Tiros explodiam nas rochas, nos galhos, nos mandacarus. Alguns cangaceiros alertaram-se e buscaram proteção, mas a maioria não teve tempo de acordar: foram da morte do sono para o sono da morte. Aqueles sobreviventes puseram-se às armas; o fogo cruzado riscou os descampados do sertão. Um bandoleiro valente, parabelo em punho, atingiu certo volante.

— Dei nos peito do macaco!

Outros cabras do bando conquistaram algumas baixas, mas a derrota foi inevitável. O grupo estava exterminado. Ratazana assistia a tudo de longe, com deliciosa satisfação.

Agora ele chegava aos quarenta e cinco anos — cangaceiro experiente, antigo chefe de bando, uma penca de crimes nas costas, mas com sua última conta a acertar. Olhou para o lado e viu a sua fiel “papo amarelo”, que há quase duas décadas o acompanhava. Um antigo coiteiro provera o bando de armas modernas e munições, mas, mesmo podendo contar com fuzis recém-produzidos, não abriu mão da velha carabina Winchester. Com ela saqueou a primeira fazenda, ainda como um cangaceiro subordinado a Arapaçu.

— Essa aí é sua, Ratazana. Certo companheiro empurrou-lhe uma criada da fazenda, com quem ele pudesse se deleitar. O cangaceiro fez que não viu e continuou reunindo o espólio, afetando muita fascinação com o dinheiro e as joias que metia no bornal. E as sucessivas recusas às mulheres que lhe eram oferecidas, nas invasões posteriores, deixaram o bando com a pulga atrás da orelha.

Também foi de carabina em mãos que Ratazana dizimou vinte e quatro volantes na batalha grande, ocasião em que Arapaçu foi morto.

— Ratazana, acode aqui! Os macaco me acertaram!

O cangaceiro viu o rombo na perna do chefe, uma enormidade. Tiro de fuzil fazia estrago. Balas zuniam sobre sua cabeça. Era preciso agir.

— Se avexe, homem! Me tira daqui!

Ratazana logo percebeu que não poderia acudir o capitão, antes figurando um meio de garantir seus próprios interesses. Macambiras altas cobriam os dois; os demais tinham a atenção voltada às alças de mira de suas armas. Estava decidido: o cangaceiro repuxou a alavanca da “papo amarelo” e estourou a cabeça de Arapaçu. Após a vitória do bando, Ratazana foi aclamado chefe. Ninguém soube da traição.

FELIPA E OSÓRIO

O regato deslizava as águas pelos dedos de Felipa; ela esfregava as roupas dos três jagunços. Com as mãos negras cobertas de espuma, ensaboava e batia os panos na pedra. Por fim, enxaguou tudo, depôs a roupa torcida no cesto e foi para o varal.

Na varanda da casa de vivenda, posto numa cadeira de palhinha, Osório dormitava com as mãos sobre o ventre protuberante, enquanto os jagunços fumavam languidamente encostados à cerca.

Tudo era silêncio e calmaria. Felipa relanceou em direção ao engenho, e uma doce tristeza recaiu sobre ela. Após estender as roupas, dirigiu-se à casa.

— Ouça aqui, menina: o Doutor Emanuel chega hoje à noite — disse Osório, agarrando o pulso de Felipa. — Essa casa precisa ficar um brinco. Quero todos os livros espanados e a mesa de mogno brilhando.

Não obstante o trabalho imenso, Felipa gostava de limpar a biblioteca. Há dois anos Osório inventara de fazer-se um intelectual. A influência política que exercia na região, poderoso coronel que era, não mais lhe bastava: desejava juntar-se aos sábios e doutores. Contava sessenta anos, vivia no sertão, mas nenhum obstáculo o demoveria do propósito de sua vida.

As estantes cobriam duas paredes da biblioteca. Filosofia, história, ciências naturais... O saber humano exibia-se soberbamente naquelas prateleiras. Sob os longos cílios, os olhos de Felipa passeavam pelas lombadas com grande fascinação. E, alegre, lembrava a promessa de Pe. Maurício de lhe fazer freira. O jovem sacerdote visitava a fazenda aos domingos, ocasião em que rezava missa na capela e lhe ministrava uns rudimentos de leitura.

Ocupando boa parte do cômodo, a mesa de mogno refletia o brilho da lâmpada elétrica. Felipa tirou de cima os muitos livros e pôs-se a lustrar a superfície com óleo de peroba. De fato, o que Osório tomava por trabalho intelectual era acumular livros, mandá-los à Europa e recebê-los encadernados em couro, a fim de os haver mais vistosos na biblioteca, para gozo do olhar de suas visitas. Era, contudo, incapaz de ler qualquer coisa até o fim.

Quando terminou a limpeza, Felipa foi até a porta e pôs-se a contemplar o bom trabalho. Impecavelmente organizada, a biblioteca deliciava a jovem. Quando estivesse no convento, aprenderia ler as histórias evangélicas, as vidas dos santos, todas as coisas bonitas que Pe. Maurício lhe contava. Mas a alegria foi passageira: aqueles engulhos vinham outra vez. Deixou cair o espanador e correu para o banheiro.

SOBRE A MESA DE MOGNO

Horas depois, quando as primeiras estrelas luziram no firmamento, já estavam reunidos Osório e Dr. Emanuel à biblioteca.

— E os assuntos da capital, Emanuel? Muitas mudanças desde a revolução? — indagou Osório, refestelado na poltrona, extraindo uma longa baforada do charuto.

— Doutor Getúlio colocará o país no rumo do progresso. Demos um basta nas oligarquias do leite e do café! Agora existe uma visão integral para o Brasil, prenúncio de futuro glorioso.

— O senhor parece otimista.

— Mais um obstáculo foi superado. Há quatro décadas, derrubamos o Império; esse ano, a hegemonia de São Paulo e Minas foi reduzida a pó — Emanuel considerava, com ufanismo e zelo patriótico. — Agora só resta galgarmos o último degrau...

— O último? — o anfitrião servia-se de mais café, já sem muito interesse.

Osório empolgava-se com a política cotidiana, a influência possante de seus mandos e desmandos. Aquelas elucubrações do estudioso, seus saltos do pragmatismo para a ideologia, interessavam-lhe menos que os deliciosos acepipes servidos por Felipa, cuja graciosa silhueta adentrava discretamente o recinto.

— Oh! Os bolinhos de chuva! — alegrou-se Osório. — Prove, Doutor, não se acanhe.

Quando Emanuel se deu conta de quem pousava a bandeja sobre a mesa de mogno, alguém cuja pele tinha a cor do café intocado em sua xícara, retraiu-se num gesto de indisfarçada ojeriza.

Osório deglutia vorazmente, com o bigode já salpicado de açúcar.

— Coronel, acredito que o senhor precise reformular a criadagem — disse o doutor, olhando a moça de soslaio. — Nossos confrades não apreciarão figuras tão... Érrr... Exóticas por aqui, numa casa que será dedicada ao cultivo das letras e das ciências.

— Criadagem? — Osório se espantou. — Felipa é minha filha! Bem, digo.... Sim, minha filha... Possivelmente, sim...

Um silêncio embaraçoso recaiu sobre ambos, interrompido a momentos por sorvos de Osório à xícara. Emanuel encarava os bolinhos com repugnância. Quando Felipa retirava o serviço de café, seus olhos brilharam de contentamento ao se deparar com nova visita, a quem dirigiu um sorriso discreto, saindo logo em seguida.

— Padre Maurício! — Osório levantou-se e abriu os braços com entusiasmo, cobrindo seu lado da mesa com o açúcar que lhe ficara na camisa. — O senhor não chegaria só amanhã cedo, para a missa?

— Era o planejado, mas pensei em vir hoje e ter mais tempo com Felipa, nas lições de leitura.

— Besteira! Você trabalha à toa com essa menina. Felipa só precisa saber lavar, engomar e cozinhar — Osório tinha convicção nas palavras. — O nobre hábito da leitura... Bem... Como posso dizer.... Me ajude, doutor... Essa atividade é própria para homens de espírito, como eu, o senhor, o Doutor Emanuel...

— O senhor se engana. Felipa tem avançado consideravelmente nas lições. Ademais, é preciso alfabetizá-la para o convento.

— Já disse a vocês que ainda não decidi sobre essa história de convento.

— Típica de padres, essa sanha de educar qualquer um... Desde o tempo da colônia esses patifes têm contribuído para o atraso do Brasil — pontuou Emanuel. — Encheram a cabeça do povo com lorotas de alma imortal, de vida eterna. Resultado? Todo mundo é igual: brancos, pretos, índios... Daí veio o povo miscigenado. Não veem que a mestiçagem é a ruína do país? O progresso da nação implica depuração das raças. O Brasil tem de ser um país de brancos!

O jovem sacerdote não respondeu; apenas tomou um assento à mesa. Felipa entrou com mais uma xícara e a depôs diante do amigo, servindo-lhe café.

— Padre Maurício — disse Osório —, este é o Doutor Emanuel Fagundes, um dos mais renomados naturalistas da atualidade. Doutor, esse jovem é cria da casa, filho de um antigo trabalhador do meu engenho. Praticamente nasceu aqui. Paguei seus estudos e agora está aí, um rapagão, padre de valor. Tem tudo para bispo! A propósito, meu filho, conte ao doutor sobre os seus estudos.

Diante do interlocutor arrisco, e apesar do desconforto, o moço desenvolveu exposições e mais exposições sobre a Patrística e a Escolástica, sobre os novíssimos do homem, aqueles temas das proveitosas aulas que recebera nos anos de seminário.

— Tolices! — exclamou o naturalista. — Estamos em 1930. O Positivismo de Comte já demonstrou a superioridade da razão humana. Toda essa baboseira medieval, com seus padres e teólogos, deve ser jogada às favas! E agora, com as descobertas do evolucionismo social, estamos em vias de criarmos uma nova civilização, uma sociedade pura, heroica e próspera. Eliminar a mestiçagem é o último degrau para o triunfo do povo brasileiro! Quando estive na Alemanha, encontrei um jovem brilhante, Adolfo Hitler. Algo me diz que seu pensamento irá revolucionar...

— Por favor, Doutor, me deixe escutar — interrompeu Osório.

Eram os jagunços que, do lado de fora, falavam de Ratazana.

— Como é?! — surpreendeu-se o padre. — Quer dizer que Ratazana não foi morto com o bando?

— Pouco se me dá o destino do sem-vergonha — Osório reacendeu o charuto. — Se der as caras por aqui, volta com o rabo crivado de bala. Os jagunços dão conta. Ouvi dizer que o safado nem cuião tem. Deve ser por isso que faz o que faz com as mulher.

— Ouvi o nome desse tal Ratazana, quando estive em Recife. É tão terrível como falam? — perguntou Emanuel.

— Dizem que leva um porrete, coisa grande mesmo, e enfia pelo meio das perna a dentro das que pega por aí. Senhora, donzela... Nenhuma escapa. Não tem macheza pra cobrir uma fêmea, aí se vinga nesses procedimentos.

Felipa, que tudo escutava calada, não pôde abafar um grito de espanto quando ouviu aquilo.

— Ora, ora... — Emanuel dirigiu o olhar à moça. — Já havia me esquecido dessa criança. Quantos anos tem, coronel?

— Vinte — respondeu Osório. — É unha e carne com o padre aqui, desde criança.

— Mas... Se me permite perguntar... Érrr...

— Vamos, homem, deixe de acanhamento.

—Tem certeza de que é sua filha? O senhor há de convir que não são muito parecidos...

— Aí você entra em miudezas, Doutor, coisas que eu acho melhor esquecer — o coronel fumava tranquilamente. — Mas quando me perguntam, eu digo. Aliás, todo mundo aqui já conhece a história.

— Pois eu quero conhecer também. Sou todo ouvidos.

— Muito bem... Isso não é assunto para intelectuais, mas nem só das filosofias vivem os homens — Osório aprumou-se na poltrona. — A mãe dessa criatura foi uma paixão da minha adolescência, ainda lá no tempo da escravidão. Guilhermina nasceu depois do Ventre Livre, mas foi criada aqui, junto dos pais, negros do nosso engenho, uns trazidos da Guiné. Coisa fina mesmo. Fui vivendo amasiado com a negra por bons dez anos, até que ela apareceu grávida. Quando Felipa nasceu, vieram as desconfianças: pretinha, exatamente como a mãe. Essas coisas de coloração a gente não controla, mas bem que ela tinha de puxar qualquer coisa minha, não? Aparecer marronzinha, o senhor entende? Nada! Veio desse jeito aí. Um tempo depois, descobri Guilhermina e um preto mais moço, Rufino, de esfregação atrás das caixas de rapadura. Matei a quenga na hora e deixei o bicho sangrando num descampado longe daqui. Nunca mais tive notícia do pilantra. Mas a menina está bem criada; é forte, tem saúde... Ah, e maneja um revólver como ninguém. Eu mesmo ensinei. Pontaria de ouro!

— Bem... — disse Emanuel, após alguma reflexão — Parece que Guilhermina foi mais fiel à raça do que ao senhor. Coisa de negra; são as mais volúveis.

Num átimo, o naturalista arrancou o vestido da jovem e, tomando-a nos braços fortes, colocou-a de pé sobre a mesa de mogno. O medo a paralisava.

— Mas não deixa de ser um espécime admirável... — prosseguiu, com a frieza de um cientista.

Pôs-se a considerar cada aspecto do corpo de Felipa, violando-o com toques cada vez mais atrevidos, e sempre mantendo a sisudez do estudioso. O padre e o coronel observavam catatônicos. Parecia que a importância do acadêmico os deixava numa covardia impotente.

— Vejam só o que temos aqui — disse o doutor, após atingir com os dedos a maior intimidade de Felipa. — Parece que a mocinha já recebeu visitantes. Minha filha, você tem sangrado todos os meses?

A visão da jovem fez-se breu puro, e seu corpo caiu desfalecido.

REVELAÇÕES

Quando o domingo amanheceu, não houve missa. Padre Maurício foi posto numa carroça e levado pelos jagunços até a cidade. Teria de se resolver com o bispo.

— Moleque sem-vergonha! — Osório indignava-se dentro da biblioteca, enquanto o doutor bebericava uma taça de Xerez. — Com essas aulas de leitura, deixou a menina prenha. Bem debaixo do meu nariz! Que vergonha! Hoje em dia, nem em padre se pode confiar... Ah, doutor... Se não fosse o senhor, com os seus conhecimentos, a sua perícia... Eu só saberia quando Felipa estivesse buchuda, acabando com a minha reputação. Agora eu entendi o porquê daquela vomitação toda. Dava tudo quanto era remédio, nada resolvia.

— O senhor agora me deve um favor.

— Ah, doutor!... Se todos a quem devo tivessem a sua bondade... Mas o pilantra, esse assumiu rapidinho! Foi só levar um sacode! Mandei uma carta para o bispo; deixei claro que quero manter tudo em segredo. Ainda tenho planos para aquele garoto, coisa grande, futuro grande. Não pode se manchar por causa de uma negra de sangue ruim, filha de Rufino. Mas o que eu vou fazer com ela agora, grávida? Peste!

— Coronel, meus estudos sobre a mestiçagem têm carecido de fundamentação porque me falta algo que o senhor, nesse momento, pode me conceder. Se me fizer esse favor, torno seu nome reconhecido na comunidade científica internacional, e ainda resolvemos seu problema com a negra.

— Qualquer coisa, Doutor! Faço o que for preciso.

*

Noite calma. Num toco de cerca, o urutau espreitava a escuridão com seus olhos ameaçadores. Cortando a luz da lâmpada elétrica, duas sombras vagavam tetricamente pelo interior da biblioteca. Sobre a mesa de mogno, Felipa estava sedada.

— Estou em vias de obter meu feto mestiço. Que grande avanço para a ciência! Viva o conhecimento! Abaixo o obscurantismo da religião! — Emanuel rejubilava-se, brandindo o instrumento com que extrairia seu precioso objeto de pesquisas.

Desde a tarde, Osório andava cismarento. E agora via Felipa à mercê de um estranho, aquela menina a quem nunca amou, mas sempre protegeu. Sua única família. Mais do que nunca, naquele momento, enxergava na moça o rosto de Rufino, suas pernas longas, seu corpo esguio. Não era sua filha, definitivamente não era, mas carregava um filho que... As lágrimas embargaram-lhe a visão.

Quando o doutor se preparava para introduzir o instrumento, a vidraça da janela estraçalhou-se. Emanuel olhou para o peito e viu a mancha de sangue: quando seu corpo foi ao chão, já estava sem vida. Lá fora, inflamado pelo gosto da vingança, Ratazana disparava sua papo-amarelo alucinadamente.

— Estou aqui, coronel desgraçado! O capado voltou pra casa!

O cangaceiro se dirigia para o interior da residência com tranquilidade. Vira quando os jagunços saíram com o padre.

— Agora tu não tem capanga, Osório — Ratazana deu um trago na garrafa de aguardente. Estava fora de si.

Osório também fora atingido: muito sangue escapava de dois buracos em sua barriga. Arrastava-se com dificuldade, enquanto ouvia os passos trôpegos do cangaceiro no interior da casa. Num último esforço, pôs-se de joelhos e tentou abrir uma gaveta. Trancada.

— Coronel, Coronel! Meu punhal tá afiado. Vou cortar seus documentos também! Hahaha! Dois capado vão junto pro inferno!

— Rufino... Eu já imaginava... — disse Osório de si para si.

Dentro da biblioteca, ele revirava o molho de chaves pendente do cinto. Metia uma, outra, mais outra na fechadura: nenhuma abria a gaveta. Por fim, escutou a porta ranger atrás de si, junto ao ruído providencial da chave certa, que girou no mecanismo. Mas antes que pusesse a mão no puxador, sentiu que lhe agarraram o tornozelo; seu corpo foi arrastado para o meio do cômodo.

— Olha só como a peixeira tá brilhando, Osório! Essa eu uso só pra capar coronel. Aprendi com o senhor mesmo.

E foi quando Ratazana já metia a mão no entrepernas do outro, que escutou as últimas palavras de sua vida:

— Desafasta do meu pai, cabra sem-vergonha!

Felipa rolara da mesa, apanhara o revólver de Osório na gaveta e acertara um disparo bem na testa do cangaceiro, que caiu duro no chão.

Levaram Osório à cidade, trataram-lhe os ferimentos, mas foi a óbito dois dias depois. Pôde, contudo, revelar que o filho de Felipa era seu.

*

— Padre Maurício, por que o senhor não se defendeu das acusações, antes assumindo falsamente a paternidade? — perguntava o bispo.

— Dessa maneira, a criança ficaria nas mãos da igreja, longe daquela fazenda. Quando tudo se acalmasse, eu poderia me defender.

Mas o padre escondeu parte da história. Em confissão, Felipa lhe contara que havia deitado com os jagunços, mais de uma vez. Contara também o abuso de Osório, que num dia de paixão alucinada, deitara-a sobre a mesa de mogno e consumara o ato. Na verdade, o jovem sacerdote não tinha certeza sobre quem era o pai.

Quando o menino nasceu, registraram-no como filho do falecido coronel. Mas diante da pia batismal, enquanto Padre Maurício deitava água benta sobre a testa da criança, sobreveio-lhe a única certeza, a fundamental: era filho de Deus.

Marcel Sepúlveda
Enviado por Marcel Sepúlveda em 10/08/2023
Reeditado em 10/08/2023
Código do texto: T7858197
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.