TERROR EM CARIJÓ - CLTS 24

Terror em Carijó- clts-24

Jonas acordou com uma mulher deitada ao seu lado. Não se lembrava como a conheceu e como foram para o quarto. Recordava apenas que chegou a Pirapora depois de trazer uma boiada, e quando recebeu o pagamento, ele e os companheiros foram à cidade para beber. Fazia tempo que não bebia um bom vinho e bebeu demais. Lembrou-se que alguém o ajudou a ir na rua para vomitar e depois o levou para o quarto na pensão. Devia ter sido um dos vaqueiros, ou uma das quengas. Dormiu e acordou com a mulher ao seu lado. Assustou-se quando viu que ela tinha sido esfaqueada. Estava morta.

Jonas estremeceu quando soaram fortes batidas na porta.

— Abra! Abra essa porta!

Com certeza seria preso. Era um ex cangaceiro, um dos que conseguiram escapar da emboscada na Grota do Angico, onde morreram Lampião, Maria Bonita e mais dez companheiros. Ele havia fugido para Alagoas, onde decidiu mudar de vida. Conseguindo emprego numa fazenda, tornou-se vaqueiro.

Talvez a tenha matado mesmo durante um pesadelo, pesadelos como naquele dia da emboscada, as balas das metralhadoras esfacelando a grota e os homens. Acordava dando socos na cama. Poderia ter pegado uma faca durante o pesadelo e esfaqueado a mulher achando que era um soldado. Não se lembrava de tal coisa, mas o oficial de justiça faria o que manda a lei. A falta de memória era o fator de dúvida. Sendo verdade ou não, não tinha como provar inocência. Decidiu que melhor era fugir. A porta seria arrombada e não podia perder tempo.

Saltou da cama procurou pelas calças, mas não encontrou. Mesmo com a roupa de baixo, pulou a janela dos fundos e evadiu-se pela mata. Amanhecia e foi fácil seguir o rumo norte. Caminhou algum tempo pela mata. Precisava afastar-se da cidade. Voltar a fazenda não era uma boa opção, com certeza, mais cedo ou mais tarde, a polícia iria procurá-lo lá.

Jonas acreditava em uma força invisível que comandava o destino das pessoas, coisas que aconteciam, às vezes para o bem, outras para o mal. Chegando numa estrada, estacou ao ver um vulto recostado no tronco de uma árvore.

As roupas pretas e o crucifixo indicavam ser um religioso sentado no chão, a cabeça pendida sobre o peito. Parecia estar dormindo, mas havia algo estranho com o homem. Aproximou-se sem fazer ruído. Ao lado, um burro pastava placidamente, ainda carregando o alforje do religioso. O rosto do padre estava cinzento, os lábios roxos. Jonas tocou no ombro dele, depois sacudiu-o, sem que ele desse sinal de vida. Por fim auscultou o peito dele e não ouviu as batidas do coração. O padre estava morto. Procurando documentos nos bolsos da batina, encontrou uma licença dada pela Ordem dos Jesuítas para o padre Anselmo de Moura, exercer atividades missionárias na Vila do Carijó. Com mandato de embarcar na barca que esteja partindo para o povoado de Bom Sucesso, às custas da Ordem Religiosa Companhia de Jesus.

Diante desse fato, Jonas teve uma inspiração. Não se considerava um homem mau. Embora tenha praticado alguns crimes, nunca matou ninguém. Não era mentiroso, falso, mas as circunstâncias, a certeza de que era inocente e de que precisava fugir de Pirapora, necessitava usar um disfarce. Talvez fosse aquela força invisível que lhe dava a oportunidade de fuga.

Despindo o padre, verificou que ele não tinha ferimentos visíveis. Talvez teve algum mal súbito, já era idoso e a jornada na estrada exauriu suas forças.

Ocultou o corpo na mata colocando pedras por cima para evitar animais carniceiros, vestiu a camisa, a batina, colocou o colarinho clerical, montou no burro e partiu. Usou a capa e o capuz para não ser reconhecido.

No cais estava ancorado um barco que partiria ao amanhecer, subindo o rio São Francisco. Ele apresentou os documentos do verdadeiro padre e teve consentimento para embarcar. Um dos marinheiros indicou a ele, uma rede para dormir.

***

Quando chegou em São Romão, logo que desceu da barca, Jonas foi reconhecido pelas roupas. Um homem acercou-se.

— Padre, me chamo Pedro. Trabalho aqui nas docas e também sou tropeiro. Os padres franciscanos me pediram para levar o senhor pra Vila do Carijó. Nós já vamos partir, só vamos carregar os burros com as mercadorias. O senhor pode se sentar ali e esperar.

Pronto, meu destino está selado. Pensou Jonas. Não tinha como recusar, como fugir. Sentou-se num banco junto a parede do depósito. Uma hora depois eles partiram. Teria que esperar uma oportunidade para se desfazer daquele traje e ir para outra localidade no interior. Pedro levava seis burros carregados com fardos, era escoltado por dois homens armados de rifle.

— Precisamos nos defender dos cangaceiros – disse Chico. — Tem um bando atacando viajantes por essas regiões.

Lampião, havia morrido fazia meses, só podia ser outro bando. Pensou Jonas.

Aldeia do Carijó era um punhado de casas perdidas no ermo. Casas de alvenaria, algumas de madeira, simples, todas com uma horta nos fundos de onde os moradores tiravam o alimento, alguns animais domésticos. A igreja com duas janelas de vitrais ficava no fim da rua principal, que não chegava a 200 metros de extensão. Ali também estava o salão de festas e a venda de secos e molhados, onde Pedro deixou algumas mercadorias..

Quando souberam que o padre estava chegando, um grupo foi recebê-lo. Jonas ficou constrangido, era um impostor e isso o incomodava. Tinha receio de ser desmascarado e ofendido, talvez até agredido.

Um homem vestindo terno simples, estendeu a mão.

— É o senhor, o padre que nos mandaram? Tem o documento? Desculpe perguntar é que apareceu por esses dias, um vagabundo vestido de padre para pedir esmolas. Foi desmascarado quando não soube rezar nem o Pai Nosso.

Jonas sentiu-se receoso, mas decidiu continuar com seu disfarce. Ali, tão longe de Pirapora, dificilmente seria reconhecido. Entregou ao homem, a identidade. Ele leu e disse:

— Sou o prefeito, meu nome é Sebastião Figueira.

— Agora temos um padre. Seja bem-vindo – disse a jovem ao lado dele.

— Essa é minha filha, Mariana.

— Como é o vosso nome? - perguntou o homem de cabelos claros, e óculos.

Jonas hesitou, mas depois lembrou-se.

— Anselmo de Moura.

— Está no documento. – disse o prefeito, agitando o papel. Ele voltou a entregar para Jonas.

— De onde o senhor é? – tornou o homem.

Jonas vasculhou as lembranças sobre o documento do padre, lembrou-se de que não tinha mais nada além do nome dele, e da localidade onde exercia suas funções.

— De Aracajú. Estudei, me formei lá, e fui pároco na localidade de Itabaiana.

— Acontece que sou médico. Me chamo Cesar Quintana e é meu dever zelar pela saúde do povo e prevenir que alguma epidemia chegue a nossa cidade. Preciso indagar, principalmente aos que chegam, se estão doentes. O senhor está com febre? Sente algum mal-estar?

Jonas sacudiu a cabeça.

— Não. Apenas cansado da viagem.

O prefeito apressou-se a dizer:

— A dona Amélia vai levar o senhor aos seus aposentos. Com o andar dos dias, providenciaremos tudo que o senhor precisar.

— Vem comigo, padre. – disse uma senhora de meia idade.

Ele a seguiu até uma casinha de dois cômodos ao lado da igreja.

— Daqui a pouco eu trago a sua ceia.

Jonas ficou só, com seus pensamentos. Embora fosse errado e perigoso, decidiu continuar com a encenação. Dona Amélia trouxe a comida e retirou-se. Ele comeu e logo foi dormi, pois estava exausto.

Acordou na manhã seguinte com batidas na porta. Era dona Amélia.

— Bom dia padre! O senhor precisa ir dar a extrema unção a um idoso que está morrendo. Ele pediu que fosse lá.

Jonas hesitou. Não sabia como proceder a esse ato piedoso do ritual católico. Havia assistido missas e conhecia alguns aspectos dela, mas não a extrema unção. Pensou em dar uma desculpa, mas a mulher deu a ele um vidrinho com óleo.

— Peguei na igreja. – disse ela.

Evidentemente para benzer o enfermo. Ele pegou a garrafinha e a seguiu.

Foi levado a um quarto fedendo a mofo, unguento e urina velha, onde o moribundo estava deitado, assistido por um casal de meia idade. O homem devia ter mais de 80 anos. Os olhos opacos procuraram distinguir as feições de Jonas. Ele se inclinou para ouvir.

— Quero pedir a Deus, perdão pelos meus pecados.- disse o velho, numa voz pausada e quase inaudível.

— Com certeza ele já o perdoou. – respondeu Jonas, e molhou o dedo no óleo para fazer o sinal da cruz sobre a testa enrugada do moribundo.

Ele aguentou ficar ali, até o velho exalar, pela última vez, o ar dos pulmões.

Saindo da casa, Amélia disse que iria mostrara a igreja, que já estava preparada para a missa de domingo. As pernas de Jonas fraquejaram. Saiu-se bem na extrema unção, mas com certeza na missa, veriam que ele era um impostor. Na porta da igreja estava uma fila de cinco moradores para se confessar. Algumas pessoas eram extremamente religiosas e queriam confessar seus pecados, antes que a ira de Deus caísse sobre elas. E foi exatamente isso que aconteceu quando um forte tropel de cavalos soou na ponta da rua.

O chapéu de aba larga dobrada, enfeitada de botões e medalhas, a cartucheira atravessada no peito, o rifle e o punhal, não deixavam dúvidas de que eram cangaceiros. As pessoas correram para se esconder. Cerca de 48 homens chegaram atirando para o alto e gritando para meter medo, desceram de seus cavalos, tiraram os moradores de suas casas e os colocaram reunidos na praça. O chefe dos cangaceiros, Robério Gouveia da Silva, apelidado Caburé, apeou do cavalo e encarou o povo Era um homem de aspecto asqueroso, de estatura baixa, gorducho, de um só olho, o rosto marcado pelas cicatrizes da varíola. O olho reluzente como um farol relanceou um olhar sobre os moradores de Carijó.

— Quem é o prefeito? – perguntou numa voz rouca, com um tom sinistro.

Sebastião deu um passo para a frente. Precisava demonstrar que não tinha medo, que era uma autoridade.

— Sou eu, Sebastião Figueira.

— Meu bando vai pegar uma casa para morar e os moradores que se arrumem noutra parte, o problema é seu. Eu vou ficar morando na sua casa, que eu sei é a melhor da cidade e o senhor e sua família se arranje em outro lugar. De agora em diante, todo mundo paga seus impostos a mim, que eu sou o novo prefeito. Ninguém sai e ninguém entra nessa cidade sem minha autorização. E vocês vão construir um palacete pra eu morar quando casar.

Robério fez uma pausa, se aproximou de Mariana com um sorriso malicioso.

— Como se chama, minha flor?

— Mariana.

— Que idade, tens xuxuzinho?

— !6 anos.

O homem sorriu, deu meia volta e mandou o povo dispersar.

A rotina em Carijó mudou drasticamente. Ninguém podia sair ou entrar na vila. A população ativa foi obrigada a construir o palacete. O chefe dos cangaceiros passou a morar na casa do prefeito. Jonas ficou indeciso, entre se tornar um deles, já que era um criminoso, ex cangaceiro, ou permanecer como um religioso, mas tinha receio de sofrer consequências.

O prefeito e a filha, assim como aqueles que foram expulsos de suas casas, crianças e idosos, pernoitavam na igreja e Jonas, apesar de não ser um padre verdadeiro, com sua presença, dava-lhes um certo conforto espiritual. Certa tarde estava ele lá, sozinho, observando aquela figura na cruz e pensando na vida, quando Mariana chegou correndo e chorando. O pai dela e os outros, estavam trabalhando na construção.

— Padre! Padre!

— O que aconteceu?

A jovem atirou-se a ele, procurando abrigo em seus braços

— O chefe dos cangaceiros disse que vai ser casar comigo logo que o palacete ficar pronto. Eu não quero casar com aquele homem feio, tenho medo dele!

— Calma, não se desespere. Você ainda é muito jovem. Muito nova pra casar.

— Ele disse que não importa, que nem meu pai vai impedir.

— Não se preocupe, eu vou falar com ele. Fique aqui. Dona Amélia está nos fundos preparando a janta, fica com ela.

Jonas saiu, foi a casa de Robério, O vigia na entrada, disse que o chefe não estava passando bem, que não receberia ninguém. O chefe cangaceiro que saía todos os dias para supervisionar a obra, não mais apareceu, nem para dar ordens ao seu bando. Apenas Chico, seu braço direito entrava e saía e numa dessas saídas, ele foi à agencia funerária, comprou o caixão mais caro e mandou entregar na casa onde o chefe estava morando. Quando o caixão chegou, a população achou que o temível cangaceiro havia morrido. Será que o bando vai embora agora? Um grupo de moradores se postou na frente da casa do novo prefeito para comemorar. Ergueram as mãos e deram graças a Deus pela morte do malvado cangaceiro.

Malvado é pouco. A porta abriu-se e apareceu o Caburé, vivo e faceiro, regozijando-se com a decepção das pessoas. O único olho brilhou acompanhado com um sorriso maligno.

Ele e Chico abriram fogo naquelas pessoas, que não tiveram tempo para fugir. Jonas, que estava chegando, ficou paralisado no mesmo lugar. Quando o pipocar dos tiros cessou, um pesado silêncio caiu sobre a rua. Jonas permaneceu vivo, ileso, de pé. No pó estavam 13 corpos estirados varados de bala, entre eles, Sebastião, o antigo prefeito.

— Não tenho nenhuma religião, não sou católico, mas não mato padre porque dizem que dá um tremendo azar.- disse Caburé.

De entre os corpos, uma mulher de meia idade soergueu-se, o peito perfurado por dois balaços, um fio de sangue escorrendo pelo canto da boca, apontou um dedo tremulo para o cangaceiro balofo e proferiu uma maldição.

— Tu estás condenado ao inferno, serás devorado por criaturas sanguinárias e os teus gritos soarão por toda a eternidade.

Era dona Firmina, parteira, benzedeira e cartomante. Imperturbável, Caburé aproximou-se dela, puxou a parabélum da cintura e disparou um tiro na testa da mulher.

Com aquele acontecimento, o resto da população, que já estava com medo, ficou apavorada. Jonas desistiu de conversar com o cangaceiro. Nada podia fazer para impedir aquele casamento. Não havia como fugir da cidade. Tinha esperança que a polícia da capital descobrisse o que estava acontecendo ali. Com a morte de Sebastião, Mariana ficou aos cuidados de dona Amélia.

Os dias passaram, a casa ficou pronta e Robério mandou fazer os pr5eparativos para o casamento A praça foi enfeitada com bandeirinhas de papel colorido, construíram um arco de madeira e flores, onde os noivos se postariam para receber a benção do padre e um coreto para a bandinha tocar um xaxado.

O povo foi obrigado a assistir e prestigiar a cerimonia. Jonas já sabia como proceder, lembrava-se de como foi o casamento da irmã e o que o padre disse e fez. Não havia problema, mas se Robério descobrisse que ele não era padre e não sendo padre, sua morte não lhe traia azar, caso decidisse mata-lo. Vestindo um traje novo, perfumado e com os dedos cheios de anéis, Robério, o Caburé, deu o braço para a noiva e os dois dirigiram-se para o arco de flores, onde estava Jonas com a Bíblia nas mãos. Ele tremia tanto quanto a noiva

Mariana continha o choro. Estava vestida de noiva e sempre achava que aquele seria o dia mais feliz da sua vida. Nunca imaginou em se casar com um cangaceiro, ainda mais feio e repulsivo como uma cobra. Desejava que algo acontecesse, nem que fosse um raio caindo em sua cabeça para impedir aquela cerimonia.

E os céus lhe concederam tal desejo, mas não como um raio...

As duas sentinelas na entrada da cidade, perceberam uma súbita mudança na atmosfera. Vislumbraram algo escuro se movendo na distância. Parecia uma onda de lama preta se aproximando. Chegando perto viram que eram ratos, milhares de ratos avançando pela campina. Os dois homens ficaram paralisados pelo medo, as pernas não obedeciam a vontade de correr. Os ratos os envolveram e rasgaram suas carnes.

Os gritos foram ouvidos na praça e quando viram aquela avalanche de roedores, o povo procurou se proteger. Robério abandonou a noiva e se refugiou no alto do coreto, Jonas pegou a mão de Mariana e correu para a igreja. Mas os ratos só atacaram os cangaceiros e Robério, motivo da praga. O Caburé desapareceu sob um monte de ratos famintos e quando eles se afastaram, só sobraram os ossos do cangaceiro.

Assim como vieram, os ratos desapareceram, voltando para a caatinga. Na cidade, ficou 48 esqueletos de cangaceiros. O povo saiu ileso. Jonas considerou que foi um milagre não ter sido devorado. Livre dos bandidos, a cidade voltou ao normal.

Na manhã seguinte, ninguém encontrou o padre e nem souberam mais o seu paradeiro.

Jonas resolveu ir embora, antes que descobrissem a sua farsa. Resolveu voltar a Pirapora e se entregar à polícia e para sua surpresa, descobriu que o verdadeiro culpado pela morte da mulher fora descoberto e preso. O motivo foi ciúme de um dos clientes dela.

Como o Jonas da Bíblia, que foi engolido por uma baleia e cuspido 3 dias depois, Jonas, o ex cangaceiro, despiu o hábito que não lhe pertencia e voltou ao trabalho de vaqueiro.

Tema: Cangaceiros- Imagem.

Antônio Stegues
Enviado por Antônio Stegues em 07/08/2023
Reeditado em 23/08/2023
Código do texto: T7855913
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