COMEMORANDO O ANIVERSÁRIO DO MEU FILHO ÚNICO, O GABRIEL PINHEIRO.

Gladius Domini (A ESPADA DE DEUS)- Texto publicado no livro Mulheres em Verbo em 2019.



 

Hanelore Diniz Smith escolheu seu traje de princesa oriental para o passeio daquela tarde. Ia visitar a caverna misteriosa de Ali Baba e Aladim, ia encontrar a lâmpada com o gênio dentro, e ia fazer três pedidos mágicos que havia desenhado em um papel porque ainda não sabia escrever. Aquele era o último dia que passariam no Egito, e ela precisava encontrar os baús de riquezas infinitas. A cada salão que entrava, brandia a varinha de condão contra as paredes e falava a frase que revelaria as portas secretas: “Abre-te, sésamo!” Mas depois da décima tentativa a menina começou a ficar entediada.

A excursão fora programada de última hora porque o grupo havia descoberto um horário livre no fim de tarde. Poderiam ter ficado no hotel, ou ido ao shopping fazer as últimas compras, mas uma das mulheres descobrira um guia que fazia passeios em grutas pouco visitadas. Quando soube para onde iriam, a garota vibrou, mas o entusiasmo inicial foi se desmanchando entre os corredores intermináveis do lugar. Já era o oitavo salão em que entravam naquele dia, e nada da sala de joias exuberantes roubadas de mil sultões que esperava encontrar. Só uma enorme caverna com passagens para várias cavidades que se sucediam, e um homem de fala engraçada explicando tudo o que havia lá, ou seja, rochas e mais rochas.

A quinta-feira era o último dia de trabalho de Yunet Qandil como guia de turismo. A tarde chegava ao seu termo e só havia mais uma turma de estrangeiros para levar às cavernas. Yunet estava feliz. Depois de tantos anos mostrando o seu país para os turistas, ia ter tempo para ficar com os filhos e o netinho de dez anos. Havia mandado preparar um grande jantar para comemorar sua aposentadoria. Pelo mesmo motivo ele decidiu que iria caprichar, mostraria a este derradeiro grupo alguns dos salões restritos, onde ele já havia entrado sem a fiscalização dos guardas do patrimônio espeleológico nacional.

Seria um passeio inesquecível.

Quando o grupo chegou, o egípcio percebeu que ia fazer um bom negócio oferecendo um “roteiro extra” para clientes especiais. Viu pela ficha que eram brasileiros e que estavam hospedados no The Nile Ritz-Carlton, e teve certeza que estava tratando com gente “da alta” do tipo que capricha nas gorjetas.

Enquanto as pessoas ouviam as explicações de Yunet, a menina perscrutava cada minúsculo detalhe que pudesse distrair sua mente, e ele apareceu na forma de um pequeno e inofensivo ser, um lagarto pouco maior que a sua mão aberta, mas de tamanho suficiente para atrair a sua atenção, e levá-la ao encontro do assustador destino que a aguardava.

Ninguém viu quando a menina entrou na estreita fenda para seguir um bichinho que deslizava em pequenas corridas sobre a rocha. Nem mesmo perceberam que ela sumira por uns cinco minutos, hipnotizada pelas luzes brilhantes recobrindo as paredes daquela câmara secreta. Também não souberam que ela havia recolhido uma boa quantidade do pozinho verde que refulgia de modo mais intenso. Não havia encontrado as preciosas joias, mas voltou para junto do grupo com a bolsinha bem cheia do pó verde que ela deu o nome de magia das fadas.

A socialite Helena Diniz Smith achava que a vida não poderia ser melhor. Hospedada em um luxuoso hotel italiano, a beldade ruiva flutuava leve e elegante sobre as águas mansas de uma enorme piscina com borda infinita. Lá embaixo o Adriático se estendia preguiçoso e convidativo enquanto o sol brilhava em ascensão. Em poucos minutos o almoço campestre seria servido no jardim da ala oeste do hotel, e Helena precisava chamar a filha. Demorou um pouco para encontrar a menina rodeada por outras crianças. Em suas mãos havia algo brilhante que Hanelore passava no rosto delas. A mulher sorriu, gostava de ver a garota fazendo amizades.

Aos cinco anos de idade Hanelore Diniz Smith já conhecia mais países que todos os dedinhos dos seus pés e das suas mãos juntos. Havia começado cedo a acompanhar os pais nas viagens de férias que faziam. Já havia andado em palácios e museus, tantos que as imagens se misturavam com seus sonhos e com as histórias que seus pais lhe contavam antes que ela dormisse. Algumas meninas mais velhas riam dela na aula de balé, mas agora que estava levando o seu tesouro na bolsinha, elas iriam acreditar e pedir desculpas.

Rogério Smith era uma águia no tribunal. Trabalhava no andar mais alto do escritório de advogados mais caro da cidade, o andar dos sócios. A fama, o dinheiro e o sucesso não foram obtidos à toa, desde a época de estagiário era sempre o último a sair do fórum e pegar o ônibus junto com o segurança. Foi por causa desta dedicação que quando terminou a faculdade foi imediatamente contratado por um escritório badalado, por recomendação do juiz da vara em que trabalhava. Menino vindo da pobreza, filho de um marinheiro inglês com uma costureira paranaense, subir na vida era a sua meta, e nada poderia afastá-lo deste objetivo.

O advogado era com um trator sem sentimentos, não havia sorriso ou lágrima que o comovesse, e nem dinheiro que o fizesse fazer algo desonesto, e foi assim até que a sua filha nasceu. Todo o sentimento reprimido durante tantos anos se destravou em seu peito numa grande inundação de amor, concentrado em um ponto careca chorando no centro do berço. Acompanhou o crescimento da filha de perto, fazia questão de ler histórias infantis para ela, a sua princesa encantada.

Depois do retorno ao Brasil, Helena achou que era manha quando a menina se recusou a ir para a casa da sua madrinha, Hanelore sempre reclamava dos abraços sufocantes e dos beliscões nas bochechas que levava da tia avó, mas quando se aproximou pode sentir a quentura da pele da criança, os pequenos olhos entreabertos, a palidez do rosto. Desmarcou os compromissos e rumou com a menina para o hospital infantil mais próximo, depois marcaria consulta com a pediatra de costume.

Durante o trajeto a mulher teve que parar num posto, porque a menina começou a vomitar em fluxos regulares uma gosma marrom com pedaços de massa vermelha, desesperada Helena pediu uma ambulância.

O corredor do hospital estava cheio de crianças, várias delas esperando atendimento deitadas em macas. Helena nunca havia visto o Vita Batel tão lotado.

Quando a secretária da diretoria interrompeu a reunião com o grupo japonês para falar com Rogério, ele soube que devia ser algo muito grave. Correu de imediato para o hospital mas não a tempo de falar com a menina antes da internação. Separado da filha por um vidro grosso, mal conseguia ver seu cabelinho vermelho espalhado pelo travesseiro rosa da UTI infantil.

A misteriosa doença havia se disseminado por todos os lugares, matando, em sua maioria, crianças menores de dez anos. A primeira leva de infectadas não foi a óbito de imediato, a maior parte passou alguns dias flutuando entre a inconsciência e uma profunda sensação de apatia, para em seguida entrar em uma nova fase em que a sensibilidade periférica ia se reduzindo gradativamente paralisando dedos, braços até que o fungo atingia os órgãos vitais, endurecendo-os, e os impedindo de funcionar. A pele enrijecia e craquelava, e então era questão de dias para ocorrer a falência do organismo e o consequente falecimento.

A moléstia parecia ganhar força a cada onda de contágio, e da segunda leva de infectadas em diante o óbito ocorria em no máximo quinze dias a partir da confirmação do diagnóstico. Apesar do forte investimento dos líderes mundiais na cura, ela parecia improvável, e em menos de um ano, doze milhões de crianças jaziam nas estatísticas de um mal sem esperanças ou respostas.

A doença em Hanelore se desenvolvia em ritmo desacelerado, ela fazia parte de um grupo de crianças infectadas com sintomas mais brandos, quase inexistentes. Os médicos já falavam em dar alta à menina. Tudo parecia apontar para esta solução, mas resolveram deixá-la mais uma semana no hospital, por medida de segurança.

Fazia tempo que Rogério não conseguia sorrir. Quase não ia ao trabalho, pouco se alimentava, passava a maior parte do tempo no hospital com a esposa, esperando pelos boletins médicos. Nem acreditaram quando o Dr. Carson os encontrou no café do hospital e comunicou que a filha ia ser transferida para um quarto na ala infantil.

Ainda demoraria algumas horas para a transferência e Helena sugeriu que voltassem para casa e pegassem alguns brinquedos de plástico para a menina, esterilizando-os primeiro.

- Ela vai gostar de ver o Mr. Bubles e as Barbies, vou comprar também lápis de cor, papel, cola e purpurina colorida, que tal?

- Ótimo, enquanto isso eu vou lá em casa tomar um banho e aproveito para pegar os brinquedos.

Enquanto tomava um banho mandou que a babá fervesse tudo e depois vestisse as bonecas e colocasse em uma sacola.

Todos na casa dos Smith estavam felizes. Andreza pegou as bonecas preferidas da sua princesa, retirou suas roupas, colocou para lavar e escaldar tudo, não queria que a menina corresse qualquer risco, depois pegou tudo e colocou na mochila da escola da menina, e entregou para o patrão.

Duas horas mais tarde, Hanelore, ainda debilitada, abria os zíperes de cada bolso e ia retirando seus brinquedos. Lá embaixo, escondida sob um saco de biscoitos caseiros mandado pela cozinheira estava a bolsinha com o pozinho das fadas.

No novo quarto a menina brincava de misturar o pó das fadas com a purpurina que a mãe havia trazido, e passava no próprio rosto enquanto olhava o resultado num espelho.

- Estou linda, mamãe ?

Nada conseguiu deter a recaída daquela criança, nem todo o empenho dos médicos, nem os joelhos dobrados da mãe, ou o dinheiro gasto pelo pai, nem a profunda investigação ou os esforços infrutíferos que os pesquisadores fizeram para tentar descobrir a identidade do assassino. Talvez porque estivesse escrito, e as engrenagens do destino, como um rio, abrissem novos leitos para alcançar o mar.

Não houve um remédio para deter a destruição do fungo depois do segundo contato com o corpo já debilitado da menina, matando-a assim como fizera com outras tantas crianças.

Assim como Hanelore, milhares de pessoas acabaram sucumbindo ao poder do monstro, um assassino esquecido na reentrância aparentemente vazia de uma caverna fora do roteiro oficial, os restos quase mortos de um tipo de cogumelo que um dia fora abundante nas margens do Nilo, responsável por centenas de mortes atribuídas a uma praga divina, e voltando ciclicamente para espalhar terror e destruição, como a espada de Deus sobre a humanidade.


Feliz aniversário, Gabriel