O outro lado da serra, a sombra da faca - CLTS 24

“— Cada um que se vai, foge com um pouco da gente, meu Mocinho…”

Em A estória de Lélio e Lina...

A fogueirinha estalava, amontoava algumas pedras e colocava, por cima, a caçarola, daí era só pôr a banha e começar. Já cortara, milimetricamente, cinco linguiças, tendo-as meado de uma ponta à outra e feito o mesmo com os pedaços; nisso, cortava-os em umas cinco tiras e, por fim, fazia outros cortes, de modo a deixá-los em cubinhos. Quando a banha derreteu e o frigir cantou, jogou a carne, fazendo logo subir a fumaça cheirosa. Saméu chegou-se, carregando, num paninho seu, mais três linguiças:

– O Chefe disse que é bom fazer mais, já que chegou aquele pessoal novo...

Fechou a cara, pegou a tabuleta que usara e entregou ao rapaz: – Corta aí, do jeito que eu faço.

Saméu obedeceu, tentando melhormente. Quando terminou, não com a mesma perfeição, estendeu a tábua; a caçarola ganhou mais volume. Pegou, de sua bolsa, uns pozinhos: pimenta preta, jogada aos poucos; repiques de alho e cebola, ressequidos. Com colher de pau mexeu tudo, misturada. Depois, pegou o saco com a farinha amarela e remisturou. Saméu observava a farofa se formar, imaginando o sabor pelo aroma. Aqueles temperos pela primeira vez eram usados, conseguidos a partir de um saque feito pela manhã, em Brejo Santo; renderam uma mercearia, de lá teve a ideia de levar os condimentos. O chefe tirava o tempo, com uns outros, para averiguar o resultado do roubo, tendo posto tudo no chão, às vistas.

– Eu lembro que, quando você não tinha chêgo, quem cuidava da comida era o Tinco. Era um negócio tão rúim... Tinhum gosto réi massento. Fora que já vi ele até cuspindo. Têrrum dia que acharam um dente na mistura! (e riu).

– É, menino, vai rindo, ele puxa teu pé quando dormir.

Estava uma boa noite, dessas do sertão: imensas em silêncio e profundidade, como se o céu, escuraço e com estrelas corredeiras, fosse um lençol negro com cristais sendo lentamente levado, subindo e descendo, à dança do vento; fora a própria terra, a qual, pelas vistas, seguia a mesma natureza infinita: o chão interminável, que só se via, bem longe, manchas de serras soprantes.

– E por que foi mesmo que cê quis entrar e como fez pro Chefe deixar?

– O santo era o mesmo, fui lá e fiz um apelo.

– Cuma?

– Ele não queria, teve c’um beato lá de Barbalha... que diz as coisas todas precisarem ser como manda o Pai Eterno – que mulher fazer serviço de homem é coisa do inverso... Quando invadiram Missão Velha – o maior desmantelo do mundo – eu vi foi só ele passando naquele mesmo cavalo ali... Daí, eu já tava na desgraça, tava acabada... minha casa caindo aos pedaço, querendo morte... me joguei de joelho e pedi pra deixar eu ir junto. Só qu’ele não quis... Não sei que diabo deu dele ficar me olhando, eu tava agoniada. Corri pra ele, me agarrei na perna dele, esperneei. Daí, vi reluzindo uma medalhinha nele, pesquei que era São Expedito, aí usei a cabeça. Ele deve ter ficado com medo de negar ajuda em nome do santo.

O rapaz ouvia, atentamente, como se fosse história de vó. Na ocasião, ele só a viu quando a mulher veio ao lado de Chefe, na hora da fuga. Ela bateu na panela, todos vieram, como cachorrinhos à mãe, cada qual com sua cumbuca. Duas porções para cada, quatro pro chefe. Para Saméu, dava três, em segredo, até dele mesmo – no íntimo, cultivava a ideia de que era porque ele tava magrinho. Enquanto comiam, os dois, juntos, Verana viu um rasgo na calça de Saméu: – Ê, menino, deixa que amanhã eu ajeit’issaí, peguei linha também, tem agulha na bolsa.

– Precisa não...

Nas memorações, começaram, propicidades do silêncio noturno, a trocar as histórias: – Eu por causa do meu irmão. A gente vivia junto. Ele era mais velho cinco anos. Eu tinha quinze. O pai sumiu-se, a gente recebeu recado de que acordou de lepra durante uma viagem, grande, tava fugido do mundo. A gente se desgraçou, o povo expulsou nós, achando bem que também cairíamos doente. Ficamos pros andamentos. Mãe adoeceu, sei nem se de tristeza. Meu irmão tinha virado o homem: saía, dizendo que ia arrumar sustento, e voltava com algumas coisa no merm’ dia. Vinha ralado, de vez em quando. Dizia ser serviços. Mas vieram atrás de nós, de novo. Falaram que ele era ladrão. Apois ele saía pra roubar, pr’arrumar o de comer. Quando contaram, a mãe ainda tava rúimzinha. Acabou morrendo, disseram que de desgosto. Sobrou só eu e ele. A gente ainda junto. Fomos embora, corridos, sem despedida. Não teve jeito. Viemos pra se meter com esse povo, que a gente só conhecia de falação. Entramos no resto do cangaço. Cada um com uma arma. Pra ele, deram uma espingarda; já sabia. Tiveram que me ensinar pistolada, faca. Me deixaram entrar porque, já que eu tava com ele, e ainda mais juntando com os outros, não me faltava professor. Agora tô aqui, já faz quatro anos. Meu irmão acabou morrendo, tem dois anos já.

– Foi com a polícia?

– Não, uns convertidos, jagunços, a gente se meteu pra perto do Caldeirão, receberam a gente com muita bala. Saímos, tiroteando, mas ele se deu de ir pra lá pro meio. Quando revolvemos, tava o corpo dele estirado, com uma bala na cabeça, só, e a carabina no peito.

– Deve de sentir falta, né?

– Na verdade... comecei antes, desde que mãe morreu, quando pegaram a gente, que comecei a sentir falta, porque ele foi piorando de sustança até chegar o fim, foi murchando, ficando em-só. Chegou um dia que não falava mais nada, foi levando. Tudo que se falava com ele, era com gestos e olhares, por ele mesmo se calar, não querer vozear. Virou um fantasma, pra mim. Ficou ele, vivo, só na minha lembrança, já antes de ter morrido.

Aí Verana ouvia aquelas histórias e via o moço, observando assim o céu, muito tranquilo, apesar do que contava. Via nele o rosto da inocência. A pele, que decerto era leitosa, virada da cor castanhada, coco queimado; e o cabelo ralo, liso, parecido com índio, escurado claro. Era menino de estar tendo uma vida na escola, quem sabe ser um professor, pra ensinar as outras crianças, porque ele tinha, sentia, coração bom. Como fazia quietude, ficava certo dela contar as dela, móde até respeito.

– Pois olhe, até que ninguém sabe o mesmo d’eu ter vindo pra cá...

E cantou uma suindara.

– Meu menino, batizado André, que carreguei na barriga, dei à luz, cuidei com meu amor, foi-se. Num teve pai, porque a peste só serviu pra fazer, depois tomou sumiço, então ele só tinha a mim e, por um tempo, uma “tia”, que ajudava na casa, mas, mesmo assim, acabou criando umas amizades más. Tinha um cãozinho, ainda quando pequeno, que se achegou ao meu menino. Era uma praga. Matava bicho por gostar. Violento, parecia cachorro se a gente fosse lá dar uma pisa pra tomar jeito, pegava até faca, tinha parente não. Pedi tanto pr’André não se meter com aquele, mas ficaram muito amigos, daí acabou aprendendo... Cresceu com bandoleiragem. Quando ficou sabendo dessas histórias de cangaceiro, de jagunço, arma, ficou dizendo que seria um. Mas nunca me deixou de ver como mãe. Minha desgraça foi quando ele saiu de casa, ouvindo dizer que tinha um pessoal de Lampião combinados de passar por Milagres, se mandou pra lá e não mais o vi. Eu fiquei esse tempo todo perturbada. Quando vi o Chefe diante de mim, cangaceiro, só fui, achando que seria a chance de poder encontrar ele.

Saméu tudo ouvia, dando extrema atenção. Ficaram conversando por um tempo, até cair o cansaço das batalhas. Saméu foi, deu despedida, tomou o outro lado do braseiro e deitou de bruços. Verana, sentada, tomou fôlego – as lembranças da vida. Tinha esperanças, sim; ouvira que o novo cabeça, tendo morrido há semanas Virgulino, se chamava, de batismo, André, que primeiro nomeou-se Boca de Onça, mas virou Carjirú. Alertou-se, botando fé de ser ele mesmo, haveria de encontrá-lo, qualquer hora, nas reunianças – disso, só ela e, agora, um pouquinho, Saméu sabiam.

Tentou pegar o miado do sono, que a noite é curta. Estendeu sobre o chão seco, e de pedrinhas marrons, um pano dobrado, para aparar o quengo. Quis rezar antes de deitar. Se distraía com a própria respiração, com a noite mesma e com o luzir do fogo. Via Saméu dormindo, com a carinha meio clara pelas chamas. A pele muito lisa, sem penugem, como podia? Teve modo de vê-lo criança, menino no meio de bandidos. Mas sabia que Saméu já matara. Ela era novata, ele já tava há quatro anos. Quantas batalhas? E se já tiver alvejado gente? Mas não tencionava crer. Era, apesar, um ser puro. Caminhava no vale escuro, por causa do destino. Haveria de ter luz. Queria bem a ele. Nessas meditações, o corpo pesou duma vez o que já pesara pelo dia inteiro. Tinha muito de trabalhar: com roupas, comidas, e mais coisas a que uma mulher sob ordens de homens tem de fazer. Olhou a serra, escura... lembrou do dia derradeiro, de quando, gritando, via o filho a galopar através de estrada infinda. Olhou pro lado, as colinas baixas quase sendo tocadas pelas nuvens, muitas, e viu-se numa sombra, sozinha. Quem tava de vigilância era Manôco, cantador, com uma violinha, cantando baixo, mas tão audível para Verana:

Me conta, distante monte

Qu’esconde a luz do viver:

Quand’é que vou eu d’encontro

Com o meu tão bem-querer?

Com o meu tão bem-querer?

Érro em tudo quanto ando

Nos vazios do sertão

Pergunto quem poderá

Me ser guia desse chão...

Me ser guia desse chão...

Com sua armadura santa

Benza com ramo na mão

Livra tudo quanto pode

Só não livra a solidão...

Só não livra a solidão...

Adormeceu.

No sonho, ela não tinha dormido, estavinda às vésperas, na noite, sozinha no calor da brasa, vendo Saméu repousar. Por algum motivo, não tinha sono, apenas o espírito de uma estaca, fincada sempre no chão, deixada por vaqueiro peregrinante; à espera de quê... ou quem? Silêncio absoluto. Uma mão escorregava de seu ombro, e uma voz dizia ao seu ouvido, com tons de riso: – Preparou algo especial pra mim de novo?

Era o tal Almir, o qual encostava sua barba rala na lateral do rosto de Verana, que o afastava: – Sai, peste. Vá se aquietar.

– Tá enjoada, hoje? Quando chegou, não tinha disso! – e a deixou, olhando pra trás e sorrindo com deboche.

Sua desistência, porém, não era mero alívio, ficara nela a lembrança daquele corpo, que há pouco tempo já imaginava podre, cadavérico. Tomara nojo, queria distância daquilo. O sujeitamento à porquice, irmão do Chefe - ficava calada, se concordando, para manter-se, não ter o perigo de mal falação; depois de qualquer coisa, se quedava de imaginar nada ter feito ou acontecido, era seu remédio. Tocaram um sino, aí ela acordou.

Era bem cedo, o sol ainda estava baixo, e tinham chegado uns dois homens a cavalo, das balas também, companheiros. Se dirigiam ao Chefe, muito agoniados, falando: – É pra juntar quanto der, que o Major Torres tava de traição, estão trocando chumbo com Carjirú na Onça Grande desde madrugada, já tem quatro nossos mortos, e dois tão pra morrer. Parece que foram pra arapuca, e vem chegando mais pra desgraçar de vez!

– Cachorro! – trovejou – Bora! – e atirou pro alto, beijando o medalhão.

Todo mundo se ajeitou, montaram os cavalos num átimo – e não tinham sequer sentido o cheiro de um ovo estrelando. Onça Grande ficava na divisa com Pernambuco, era deles um sítio conhecido, no qual o tal major se aliava, dando guarida em troca do bando impor terror em alguns arredores, móde conseguir desapossar terras pra ele. Dessa arte, estava o grupo em Jardim, sortezas, próximo do local. Tomaram galope desabalado, para pronto lá chegarem, eram o Chefe, consagrado ex-oficial José Miguel Abraão da Silveira, tido por professor o Caixa de Fósforo, repartiu-se para integrar um grupo, sub-bando, e espalhar-se pelos lados menos visitados, também pra recrutagem, tinha mais de 40, corpulento e de postura que impunha respeito, não muito alto, e a pele avermelhada de sol, quase bronze ou prata, um rei; Bambalão, o quase-pai, era o braço direito, muito cordial e tranquilo, sem cabelo, mas com um bigodão grosso; Almir da Silveira, o Garanhão, irmão do Chefe, esse era famoso por, a cada invasão, escolher uma mulher para seu momento; João Matias, Capeta, Coroço e Muído, todos cearenses, latrocidas fugitivos de Sobral; Anú, filho de alforriado; Tio Manôco, o mais velho, inventor de versos; Juras e Quinquilho, da Paraíba; Surrêpo, o que matou mais de cem; Garra do Diabo, bicho, nascido e criado no mato; Saméu, o mais novo, trazido pelo irmão, tratado bem por todos.

Tomaram rumo, entrando pela perimetral, via de toda a cidade, mãe de mil encruzilhadas, descendo para Pernambuco. Viram de longe a Lagoa do Alto, na qual a Florzinha, santo açude da terra, que nessa época estava baixada, com um redor arenoso e quebradiço, vivia; era um espelho derretido. Contornaram as águas, indo mais pra baixo, passando pelas terras de Alfredo de Freitas, dos canaviais, ausente no momento, e também pela Boa Sorte, que luzia longe, tendo o sol suspenso acima de si, as brancas colunas onduladas da varanda da casa; todas essas outrora lhes deram moradia temporária. Passavam rápido pelas boiadas livres, pastantes. A ordem era chegar o quanto antes, preparados para guerra.

Passadas umas seis léguas, chegados, avistaram bolões de fumaça muito preta, oriunda dum compartimento da casa, circundando a Onça Grande. Enxergavam uns vultos, eram os traíras. Brilhavam de lá e cá os tiros nas pontas das carabinas. Chefe parou, seu cavalo ergueu o dorso, dando um forte relincho, e gritou às coragens. Todos foram, de vez, descendo o barranco, já metendo bala, pegando os soldadiços de surpresa; ali tinham pra uns vinte e poucos. Dividiu-se a luta, dos cangaceiros na casa e os que vinham por trás. Verana tentava manter a respiração e o equilíbrio, tendo passado esse caminho todo sem um descanso, donde sentia certo desconforto no joelho e o peito muía-se. Descia, corajosamente, apontando sua espingarda para algum daqueles carniças de azul. Saméu estava ao seu lado, sorridente, com o corpo para frente, feito fosse uma jaguatirica preparando bote, sem segurar a rédea, mas empunhando, baixo, uma faca do tamanho de seu braço e, na outra mão, a pistola, à altura do rosto, tentando encaixar mira.

Os outros gritavam e zuniam. Quinquilho, Juras e Garanhão estavam juntos, dando tiro a torto e direito. Anú, que adiantava o passo, ultrapassara o Chefe às artes, e já entre os malditos, apeara do alazão e corria até eles, esfaqueando o pescoço dos que encontrava no meio do chamusco. Na direita, se via Muído tirar do surrão uma garrafa de cachaça, enquanto disparava coutra mão. Se espalhavam os demais, tentando circundar a bagunça e arrumar meio de entrar na casa. Verana, desconcentrada pelas dores e pela sufocante fumaceira espessa, virava arredia, pela lentidão que tomava. Saméu, que estava ao seu lado, adiantou-se e se meteu no meio da confusão. Ela o visava, acompanhando o luzir da lâmina dele. Tinha era quase parado o galope, ficada pra trás. Não sabia se se sentia covarde. Lembrava-se, também, de sua missão. Quis rezar, pra ver se virava de ir lá dentro, pros combates. Lembrou do Santo Expedito, e empreendeu o ‘meu santinho, que ajuda no aperreio, dai-me força, Expedito, pra superar meus medos’... Em diante, só foi, sem querer saber de mais nada, confiante, apenas. Enquanto descia o íngreme chão, avistou, do outro lado da casa, vultos achegarem, de má vestança, uns dez, armados, mas não eram cangaço, não. Todos de amarelado couro, malamanhados, e chapéu arredondado, só podiam de ser da jagunçagem. Vinham pra esculhambar, quiçá metidos com o Torres. Ela tinha de ser ligeira, avisar o Chefe, os outros, do perigo. Avançou, se meteu na guerra de vez. Era papoco, zuada correndo alta, bala por todo lado. Não tinha saber de onde vinha o quê. Deu um tiro numa sombra que agarrara, olhou, Anú por trás. A bala pegou, e Anú se livrou, com o corpo do inimigo caindo sozinho. Gritou de grato, e voltou a correr pelo nevoeiro. Seguiu mais um pouco e viu Saméu. Estava no chão, seu cavalo morto estirado, e esquartejava com tamanha agilidade um soldado que ela sequer compreendia como aquele menino, que ela tinha por um anjo, tinha essa capacidade: em cima do corpo, cravando mil vezes a faca como brincadeira.

- Ei, sobe! Vamos pra dentro! – rasgava a voz, mas ele ouviu – Vem vindo uns lá na frente, do outro lado. Vamos!

Ele subiu no cavalo junto dela, e foram, invadindo a casa. Desapearam, no salão havia três cadáveres, e algum sangue espichado nas paredes azul-claro. Lá dentro: um nada predador; parecia até que lá fora a guerra se calara. A fumaça tinha inda mais força dentro, a foguear as gargantas, turvidão! Estavam de prontidão, cada um com a arma preparada, na mira, dedo no gatilho, para pôr fim em quem surgisse. Apareceram quatro, dos jagunços, vindos da cozinha, foram pegos de revestréz, levaram bala, mas revidaram, acertando, de raspão, a orelha de Saméu. Verana quis acorrê-lo, mas ele disse estar tudo bem; tinha o lado pingando sangue, entretanto. Continuaram. Queriam entrar no quarto do dono, onde, presumia-se, estava o resto dos aliados. Avançaram a alguns pés, atentando ao restante. Raspava tiro pela casa, ouviam pedaços da parede caindo. Perigo d’algum projétil varar e acertar um deles. Foram, a passo seguro. Se deram com mais um, mas Saméu foi mais rápido e atingiu-lhe o peito com a faca, e Verana pôde matar o infeliz com tiro na cabeça.

Entretanto, apesar dos sucedidos, quando entraram no quarto encontraram cinco deles, todos mortos, três alvejados, e dois degolados. Um deles tinha a cabeça pendida sobre a cama, exposto, com um buraco na testa. Verana, ali, perdeu o senso, baixou guarda, deixou a arma cair-lhe pelo ventre, pendurado no suporte. Se aproximou da cabeça exposta, a qual era velada pela imagem do Jesus Menino, que dispunha as mãozinhas justamente em direção à visão horrenda. Via aquele rosto, os olhinhos verdes olhando pro alto, com o olhar de quando a morte vem, violenta, diante de nós, tomando nosso corpo, e nada podemos fazer. Ela imaginou que ele deve ter visto seu algoz degolá-lo, testemunhado a faca invadir o pescoço, e, talvez, até ficado vivo para ver a própria cabeça desprendendo do corpo. Viu também os cabelos doirados escapando do chapéu. Tomou olhar o formato do rosto, as bochechas, o nariz, a boca...

Saméu, pouco após da porta, mais atrás dela, via também, caído pelo silêncio que impusera a senhora, e cortou, assustado: - Mas... é Carjirú!

Então, Verana estremeceu. Tocou o coração, batendo forte nele três vezes. Num ímpeto, quis tomar a cabeça para si, quando estourou o barulho de um tiro e o rapaz gritou. Quando se desprendeu do momento, tomou a vista pro menino e viu ele sendo atacado por um jagunço, avançando com tudo nele, dirigindo uma faca manchada de sangue fresco ao seu pescoço.

Se sentiu abandonada?

~

Consideração brevíssima: para esse texto, decidi tomar uma abordagem diferente da qual estou habituado, é um texto-teste, portanto quanto mais críticas, melhor.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 05/08/2023
Reeditado em 18/08/2023
Código do texto: T7853716
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