O Trem do Inferno

O sítio em que morávamos era cortado por uma ferrovia, e ao longe dava pra ver as montanhas e as ruínas da estação.

Minha mãe havia acabado de fritar bolinhos quando meu avô entrou trajando seu velho casaco marrom. O ancião tirou o chapéu e ao puxar a cadeira, meus primos meteram a mão no tabuleiro, que exalava um cheiro bom de açúcar com canela e se levantaram. Vovô, ao vê-los saírem lançou um olhar de reprovação e disse:

_ Eduardo, você é o único que me dá atenção, posso contar com você?

Com um bolinho inteiro na boca, fiz que sim com a cabeça e ele sorriu sem mostrar os dentes.

Não tiro a razão dos meus primos; afinal, vovô era muito rígido em relação aos afazeres do sítio e sempre que tinha oportunidade inventava uma nova tarefa.

Ainda naquela manhã iríamos visitar a tia Selma. Entretanto, vovô me pediu para ficar e lhe ajudar a consertar a cerca, pois estava muito preocupado com o trem. Logo perguntei arregalando os olhos:

_TREM?

_ Isso mesmo, Eduardo. Temo pelos animais serem atropelados.

Aquilo me preocupou. A ferrovia estava desativada há décadas. Então falei ainda com a expressão de espanto desenhada no rosto:

_ Mas... o Senhor tem certeza?

Ele desviou os olhos da gaiola do canário que pendia do teto e disse quase sussurrando:

_ Eduardo, sei que você deve estar pensando que estou ficando louco, antes fosse... mas é verdade! A cada cem anos o trem passa à meia noite; só se houve o barulho. Foi seu bisavô que me contou pouco antes de falecer. Confidenciou que a locomotiva com enorme estardalhaço rompe as entranhas da terra e justamente dentro da nossa propriedade ganha os trilhos para pegar as almas pecadoras e levá-las todas para o inferno. Acreditei, meu pai era um homem sério, temente a Deus e abominava mentiras.

Não quis atrapalhar o passeio dos meus familiares e não comentei; mas se não tomássemos providência, em breve meu avô estaria dentro de uma camisa de forças.

Assim que o pessoal saiu fomos pegar as ferramentas. Os mourões apodrecidos, o arame enferrujado e todo arrebentado denunciavam a árdua tarefa que teríamos ao longo do dia. Enquanto com o pé de cabra eu esticava os fios novos, vovô, ágil com o martelo, ia pregando os grampos nas achas recém trocadas. Já era noite quando terminamos e, exaustos, acompanhados por uma sinfonia de insetos sugadores fomos para casa. Tudo estava às escuras. Vovô abanou o chapéu com intenção de ressuscitar as brasas do fogão, mas foi em vão, teve de riscar um fósforo.

Havia a possibilidade da minha mãe, tios e primos pernoitarem na cidade. Tia Selma tinha se casado com um homem de posses, e haja tempo para mostrar cada detalhe da casa, abrir armários e falar de tudo o que estava dentro: coisa de pobre que melhora de vida.

Para minha decepção meus primos antes de saírem zeraram os bolinhos, e pelo brilho do alumínio lamberam até o tabuleiro. Por sorte ainda tinha arroz cozido e ovos para fritar. Eu estava tranquilo, mas à medida em que o tempo passava ia sendo contaminado pelo nervosismo do meu avô. Perguntei se estava passando mal, e, ele, trêmulo com os olhos fixos no relógio que tirou do bolso permaneceu em silêncio.

De repente, houve um estrondo tão forte que fez com que os lampiões se apagassem.

Ouvi o tropel do gado, que assustado com a explosão, descia o morro como uma avalanche, e, sem notarem a nova barreira, por algum tempo, berrando em crescente agonia, ficaram entrelaçados entre as fiadas de arame, até que, com força brutal, arrancaram os mourões e arrastaram tudo até se engancharem no meio da linha.

O apito e o cavalgar característico da composição batendo os trilhos sobre os dormentes era ensurdecedor. Fiquei petrificado. O som se misturava com o triturar dos ossos dos animais que urravam sendo esmagados por aquela força invisível. Por alguns instantes permaneci em estado de choque, e só voltei à realidade quando meu avô tombou pesado no chão. Tentei levantá-lo; mas a parca claridade que vinha do fogão à lenha me fez ver que estava morto. Foi de forma instintiva que me debrucei sobre seu frágil peito, e na intenção de que seu velho coração voltasse a bater, fiz todas as manobras possíveis para um menino, até que perdi as forças... Não sei por quanto tempo fiquei abraçado ao cadáver, mas foi o bastante para que os primeiros raios de sol rompessem a escuridão.

Naquele dia não ouvi o galo anunciado o amanhecer, o mugido das vacas aguardando para serem ordenhadas, o relincho dos cavalos saltitantes no pasto e o canto do canário da terra. Tudo era silêncio, até os porcos famintos no chiqueiro estavam mudos, apavorados talvez, com o forte cheiro de morte que pairava no ar.

Cobri meu avô e saí para o quintal. A ferrovia, quase que na porta da nossa casa era palco de um cenário de horror: couro, carne, ossos e vísceras se misturavam a pedaços de pau e centenas de metros de arame farpado.

Enfim, quando chegaram me encontraram estático, calado na porta com os olhos projetados naquela colossal massa ensanguentada. Tentei, mas não consegui articular palavras. Foi então que o tio André me abraçou dizendo que o estrago foi causado pela enorme pedra que rolou da ribanceira e deslizou sobre os trilhos, que eu precisava me acalmar e ser forte. O choro veio e desatou o nó da garganta, mas bastou um olhar para que todos corressem para dentro de casa. Minha mãe num solavanco puxou o lençol, e para surpresa de todos, vovô estava com os olhos abertos.

Havia sofrido uma parada cardíaca acompanhada por um AVC e ficou quase dois meses no hospital. Os médicos disseram que as lesões foram gravíssimas e que teríamos de ter muita paciência. Não tive coragem de falar sobre o trem; a pedra que rolou do alto da serra era bem mais convincente.

No início todos ajudavam, mas com o passar do tempo (como era de se esperar) foram deixando tudo por minha conta. Segundo o Doutor Firmino, a mente do meu avô havia se apagado. A criatura passava o tempo todo na cama com os olhos fixos na gaiola do canário da terra, que estava sempre a pular de um lado para o outro.

Quase dois anos se arrastaram, e mesmo com toda dedicação e remédios cada vez mais fortes, vovô só piorava. Eu me sentia enfraquecido, e sem esperanças pedia a Deus que o levasse para um mundo sem dor, onde tivesse uma grande horta e muitos animais para cuidar.

A morte veio na forma de um gato, mas só para calar o pobre canarinho. Acho que meu avô não se importou. Continuou da mesma forma, fixo no local onde antes ficava a gaiola. Enquanto todos voltaram aos seus afazeres normais, eu tinha de alimentar, dar banho, trocar fraldas e limpar excrementos dia e noite. Como minhas orações não eram atendidas, comecei a ter pensamentos e pesadelos horríveis que me afastaram de Deus. Os outros da casa ficavam semanas e até meses sem entrar no quarto, que passou a ficar fechado. Ninguém suportava o cheiro que fluía daquele ser deplorável. Diziam que tamanho empenho me proporcionaria um lugar privilegiado no céu. Ingênuos, não imaginavam que a minha intenção era matá-lo e mandar todos para o inferno.

Planejei. Esperei que fossem visitar a "querida tia Selma".

O domingo havia amanhecido chuvoso. Mas já estava tudo combinado, de jeito nenhum deixariam de visitar a abastada Selminha, promessa de uma mesa farta, lotada de guloseimas preparadas por uma exímia cozinheira. Cristina era o nome dela. Criava pratos deliciosos. Porém, foi descoberto mais tarde, que a danada tinha uma pimenta poderosa. Deixava um pedacinho perdido em um dos tão bem elaborados quitutes e ficava observando a roleta russa. Quando o infeliz era contemplado e saía cuspindo fogo feito um demônio, a bondosa Cris, já preparada, corria e socava uma gigantesca colher de açúcar na boca do desgraçado. Depois, com o seu passaporte garantido para o inferno, dava uma risadinha sem graça e ia correndo para o quarto rezar.

Esperei que se arrumassem, e quando saíram impregnados pelo perfume caro (amostra grátis da minha titia querida) que estava sempre a dizer: "Não tenho coragem de ver papai nessas condições", fui até o quintal e peguei um cobertor. Estava umedecido e tão frio quanto meu coração. Caminhei arrastando a enorme arma pela grama, e quando cheguei na porta do quarto com a mente voltada para sufocá-lo, desabei em lágrimas. Comecei a pensar no quanto ele foi bom pra mim.

Meu pai, pelo o que me contaram enganou minha mãe com promessas de um futuro melhor; quando na verdade se tratava de um matador de aluguel, que depois de fazer um inferno na família, acabou morto em um confronto com a polícia. Meu avô nunca me abandonou, mesmo sabendo que eu era filho de um assassino. A maldade que, porventura, eu tenha herdado do meu pai, não pode ser maior que o exemplo de bondade do meu avô. Larguei o cobertor e quando entrei no quarto vovô estava de pé.

Era um esqueleto, cuja pele asquerosa desenhava o relevo dos ossos. Escaras derramavam um liquido purulento embebedando as larvas que caiam sem rumo. Parte das costas devorada pelas feridas deixava a mostra o omoplata esquerdo. A coluna vertebral, que mais parecia um ponto de interrogação, indagava o porquê de tanto sofrimento. Quando virou-se com a face retorcida pela dor, raspou a garganta, uma, duas, três vezes e escarrou forte. A placa escorreu grudenta até que se estacionou em um buraco qualquer na parede.

Nem por um momento me assustei, e quando veio em minha direção, pensei que logo acordaria. Mas para o meu indescritível desespero, quando me abraçou, arfante, percebi que não era mais um pesadelo. Livrei-me daquele contato asqueroso, mas não do cheiro podre que saiu de sua garganta quando falou:

_Eduardo, não se assuste, antes de morrer juntei forças, eu preciso te contar...

Fui invadido por uma sensação de medo que fez com que meus cabelos ficassem de pé, e a tremedeira foi tanta, que me impediu de correr. Caí entre o guarda-roupas e a cama. Entretanto, só quando senti um líquido morno vazar entre as minhas pernas e ele riu sem mostrar os dentes, foi que o reconheci e, constrangido, também comecei a rir.

Meu avô me contou que na ocasião sentiu uma dor muito forte e que assim que perdeu os sentidos, surgiu entre uma infinidade de pessoas, que só percebeu que não pertenciam a esse mundo quando viu antigos conhecidos já falecidos e criaturas horripilantes munidas com chicotes incandescentes.

Os seres grotescos agiam como soldados nazistas fazendo com que entrassem no trem. Eram milhões de vagões que foram abarrotados por pecadores. Havia pessoas que morreram em todas as idades, e enquanto eram espancadas pediam perdão pelos seus pecados. Jovens (meninos ainda) gritavam que seu único pecado foi roubar um celular para tomar um refrigerante. As figuras demoníacas gargalhavam, pois o roubo de celulares desgraçavam famílias e financiavam o mundo do crime.

Assassinos, estupradores e todos que foram contrários às leis de Deus choravam arrependidos. Sabiam que o destino daquele trem era o inferno.

Meu avô ainda disse que se não fosse pelo meu esforço de fazer com que ele voltasse a vida, estaria perdido para sempre, pois sua alma estava entre as outras no momento exato em que o trem passava. Que um daqueles demônios ainda tentou segurá-lo, mas que o espírito do meu pai que estava no trem, saltou sobre o monstro para que ele pudesse fugir e voltar para o corpo.

Senti orgulho do meu pai mesmo sabendo que era um assassino condenado a pagar pelos seus crimes por toda a eternidade.

Meu avô, antes de se calar para sempre, ainda me contou que o trem, sem fazer barulho, chocou-se contra as montanhas e desapareceu, que ainda conseguiu ver o maquinista, que não tinha chifres, dentes afiados e garras poderosas. Tinha as feições perfeitas de um anjo, e na boca, ao invés das secreções cheirando a enxofre tinha apenas o desenho bonito de um sorriso.

FIM

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 29/07/2023
Reeditado em 09/08/2023
Código do texto: T7849013
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