A Grande Ratazana

Eu estava desempregado. Sou formado em jornalismo, mas trabalhei de cobrador por meses. Pode-se dizer que fui vítima do chamado “desemprego estrutural”. A prefeitura de Salvador demitiu cobradores, pois ficamos inúteis desde a chegada de novas tecnologias que permitem a cobrança de passageiros sem precisar de uma pessoa no comando. É a inteligência artificial. Um motorista colega de trabalho disse lamentar, porém não acredite. Ele estava zombando. Ele que me aguarde, logo a IA vai dirigir ônibus e nos encontraremos na fila do SineBahia.

Bem, eu estava desempregado. O leitor notou o verbo no passado “estava”? Pois bem, recebi uma proposta de trabalho incomum. Não, não se trata de roubar ou matar ninguém. Estava num apartamento em algum buraco de Brotas quando um velho conhecido, Carlos, chegou.

- Soube que você foi pro olho da rua. - ele disse.

Eu estava prestes a socá-lo. Chega de zombarias.

- Não me soque, velho amigo. Preciso de sua ajuda.- ele disse, ao ver minhas mãos se fechando.

Ele estava com um livro em mãos. Um diário na verdade.

- É o diário de um Missionário. O cara foi pregar dentro do esgoto e nunca mais foi visto. Apenas seu diário foi recuperado.

- Pregar dentro do esgoto? Que diabos!

- Tem uma passagem em Colossenses que diz que o evangelho foi pregado a toda criatura. Pelos escritos, o Missionário duvidou disso e disse que uma comunidade nos esgotos ainda não havia sido alcançada pelo evangelho. Provável que ele encontrou ratos, que o mataram. Veja, o diário está todo roído.

Foi a história mais bizarra que já ouvi.

- E qual seria o trabalho? - perguntei. Como eu sou imbecil. Não acreditei em nenhuma palavra, por que manifestei interesse?

- Acabar com a Grande Ratazana.

- Grande Ratazana?! - perguntei. Caralho, eu duvido muito dessa história. Já devia ter mandado esse cara vazar, mas continuo manifestando interesse.

- O Missionário expressou seu temor da Grande Ratazana no diário. Puro horror. Ele sabia que seria comido pela criatura. Tudo aconteceu há pouco tempo.

- Deve ter profetizado. E você quer que eu vire comida dela também?

- Não, nós vamos juntos.

- Nunca imaginei que alguém teria o desejo de ser comido pela Grande Ratazana.

- Não vamos ser comidos. Vamos acabar com ela. Há um financiador por trás.

- De onde você tira tanta confiança? Aliás, vou dizer, isso é uma conversa absurda. Não acredito numa única palavra.

- Há uma financiador por trás, teremos recursos e ele pagará uma bolada.

Ele disse o valor da bolada. Fiquei boquiaberto, mas ainda não acreditava. Então, ele tirou percentual da grana e me deu. Dinheiro real, vivo. Me convenceu. Quando o homem lhe dá bolada de dinheiro, você acredita em tudo que ele diz automaticamente. E não questiona mais nada. Não quero nem saber sobre o absurdo de o dinheiro ter entrado fácil assim.

- A outra parte do dinheiro só quando terminarmos o serviço.

- Estou dentro! Quando começamos?

- Amanhã iremos nos mudar, temporiaramente.

- Quê?!

- O Missionário desenhou um mapa. Tem o local exato onde o ninho da Grande Ratazana fica embaixo. Fui no local e vi que os moradores sofrem com inúmeros ratos. É um trabalho que levará dias. O aluguel é pechincha. Melhor do que ficar deslocando. Se exterminamos todas essas coisas, também ganharemos grana da vizinhança de lá. Pegue o diário e leia.

Normalmente eu continuaria duvidando de toda essa merda. Mas o homem me deu um dinheiro real, então sou bobo, ingênuo…

- Feito! Vamos para o local amanhã! Vou arrumar minhas coisas. - eu disse.

Dinheiro fácil, uma história absurda e mudança. Será uma armadilha? Alguma pegadinha da TV? Foda-se, tenho dinheiro!

Minha última noite naquele quarto esquálido foi lendo o Diário do Missionário. Parecia autêntico, honesto, sincero. Alguém gastaria energia e dinheiro inventando uma mentira absurda? Com certeza, mas o diário é tão bem feito que a gente acaba dando uma balançada no ceticismo. No meu caso, ainda há o estímulo do dinheiro.

Em um excerto, o Missionário questiona o porquê que Deus, sendo um ser perfeito, criou ratos imundos que só trazem doenças e agora comem até pessoas: “Vou virar comida da criatura. Se tudo que Deus criou tem um propósito, qual o propósito desses seres nojentos?”. O Missionário sugere não acreditar na Teoria da Evolução. Talvez não faça a menor ideia do equilíbrio ecológico. Deus esqueceu de revelar para ele. Em outro excerto há uma revelação que me causou asco: “estava com muita fome. Vi o rato, ele parecia suculento. Não hesitei em fritá-lo. Eles devem ser a refeição da comunidade que busco".

Há um trecho do diário em que ele menciona a construção de afetividade entre ele e uma rata: “fiz carinho nela, que rapidamente gostou de mim. Logo me trazia queijo, migalhas de comida… Também gostei dela”. Outro excerto sugere algo que causaria horror em desavisados: “há dias nas profundezas do esgoto, sem irmãzinhas da igreja para me darem o devido consolo. A rata, que dei o nome de Fausta, parecia se insinuar para mim. Eu estava delirando, era a fome. Porém, eu precisava saciar outro apetite…”. Depois disso, parei de ler. Melhor dormir.

No outro dia, eu e Carlos nos estabelecemos na rua cujo subterrâneo supostamente habitaria a Grande Ratazana. A moradia era horrenda. Na rua havia o odor pútrido de ratos mortos. “Matamos uns vinte ratos por dia”, disse um morador. Dissemos que estávamos ali para resolver os problemas. Comentávamos sobre a Grande Ratazana e todo mundo ria. “Coisa de ficção científica”, disse um outro morador.

- Eles vão ver, vamos mostrar para eles. - disse Carlos.

- Mas como? - perguntei.

- Atraindo ela para fora.

- E como vamos fazer isso?

Para ser honesto, eu também achava aquilo um monte de bobagem e que há um imbecil bancando toda essa palhaçada por trás. Mas como escreveu Umberto Eco em “Confissões de um Jovem Romancista”, há um acordo tácito entre o leitor de ficção e seu autor - o primeiro finge ser verdade aquilo que está lendo e o segundo quer que o leitor a sério. Ao me pagar em dinheiro vivo, esse obscuro financiador de caçada de ratazanas construiu um acordo comigo: leve a sério essa aventura.

Uma mulher gritou.

- Deve ser um rato. - disse outro morador. - Ainda bem que vocês estão aqui, né? Façam o trabalho de vocês.

Ação rápida. Matamos o bicho a vassouradas. Descobrimos um buraco de onde os ratos saíram. Iam saindo e a gente ia matando. Em mais ou menos uma hora matamos uns 40 ratos.

- Vocês são mesmo produtivos! - elogiou uma moradora.

Resolvemos expandir o buraco. Descobrimos um túnel que provavelmente levava ao ninho. A Grande Ratazana supostamente estaria lá no final.

- Vamos. - disse Carlos.

- Mas nem ferrando. - respondi.

- Você foi pago para isso.

- Sim.

- Então, bora.

- E se a Grande Ratazana for real? - perguntei. Na hora do vamos ver, não tem ceticismo.

- Pegue a espingarga e vamos ou vou dizer ao financiador que você é bundão. Não vai querer o resto do dinheiro. Eu vou na frente!

- Cara, joga uma bomba aí dentro! Temos mesmo que descer?

- Uma bomba? Você quer ferrar com o sistema de esgoto dessas pessoas?

- Ok, vamos nos matar. Foda-se.

Descemos. Cada vez mais que descíamos pelo túnel de pedra, mais o odor pútrido piorava. A fonte do fedor era ali. As luzes da lanterna afastava os ratos. De repente, Carlos parou.

- Sobe devagar. - ele disse.

- Por quê?

- Apenas sobe.

- Com prazer!

Subi. Carlos ficou mais uns cinco minutos lá dentro. Depois subiu. Pegou um queio estragado imenso e amarrou numa corda.

- Ela está mesmo lá embaixo. Vamos atraí-la para cá. Vou precisar que o beco fique totalmente deserto. Ratos gostam de quietude.

Carlos joga a isca. Deixa cinco minutos e depois puxa.

- Tempo suficiente para a ratazana sentir o cheiro.

A isca é puxada até a boca do túnel. Beco deserto. Todos olhando de suas janelas. Quinze minutos depois, a Grande Ratazana dá as caras! Era mesmo real. O rato do tamanho de um cachorrão adulto. Puta merda. Todo mundo ficou horrorizado. Eu fiquei perplexo. Carlos estava de cima da marquise e com um único tiro de espingarga explodiu a cabeça da Grande Ratazana. Aplausos. Em seguida, ele cometeu um ato que chocou. Abriu a barriga do bicho. Havia restos humanos dentro do estômago da ratazana. Possivelmente o Missionário.

Depois da missão cumprida, o financista pagou o dinheiro todo. Aluguei um apartamento num bairro melhor. Semanas depois, Carlos me procurou dizendo que havia mais Grandes Ratazanas pela cidade. Dessa vez aceitei de imediato. Vamos matar cada Grande Ratazana dessa cidade, teremos prestígio, fama e, mais importante, dinheiro.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 10/07/2023
Reeditado em 11/07/2023
Código do texto: T7833633
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