O FAROL
As seguintes anotações foram tiradas do diário de bolso do faroleiro João Medeiros. Resolvi manter a formatação e linguagem do autor, sem alterar nenhuma palavra. Assim, espero que os leitores tenham na íntegra a sensação de acompanhar história tão curiosa. Assinado: S. Silva. 21/04/2020
15/02/1912
Chegamos hoje. E que viagem! Saí da cidade do Rio com a expectativa de alguém que está para encontrar algo grandioso. Sou um homem acostumado ao mar, mas sempre imaginei de que o mar do Norte tinha algo de especial. Entramos no trem não havia nem uma hora e eu já estava falador, tentando mostrar para Otávio o quanto estava animado. Ele continuava lendo seus livros e tomava minha animação como mera ingenuidade do acaso.
- Veja bem, Otávio. – Eu disse naquela hora. Estava tomando uma xícara de café forte e ainda estava me acostumando com a incrível versatilidade das roupas comuns. Fazia tempo que não usava nada que não fosse o uniforme. – O mar é traiçoeiro, sempre leva os melhores. Mas, escuta, Ele ainda dá prazer!
- O mar é traiçoeiro para quem ainda não sabe com o que está mexendo. – Disse meu amigo Otávio, virando mais uma página do livro depois de tocar rapidamente a ponta do dedo com a língua. – Tudo é proveitoso quando se há moderação.
Que homem, este meu amigo! Tinha afinidade pelas palavras e usava as mesmas com sabedoria. Não era à toa que dedicava quase todo o seu tempo livre nos faróis a leitura e meditação.
Na ocasião, olhei para a janela do trem e vi as serras, pensando em como o mar do Norte seria. Fazia tempo que eu e meu amigo estávamos no Sul – mais precisamente no Rio de Janeiro – tomando conta de um farol belíssimo, mas muito mal estruturado. Às vezes tinha-se a impressão de que se estava dentro de uma noz ou de algum quarto de pensão, embora a vista do lado de fora parecesse magnífica.
Pescar se tornou um hábito rotineiro. O silêncio do farol é instigador – e o contraste com o altíssimo bradar de um navio cargueiro no meio da noite era ainda mais -, nos obrigando a ocupar a cabeça com uma infinidade de inutilidades que só matavam a hora infernal. E como as horas demoravam para passar! Nos primeiros dias era quase insuportável, mas a partir da segunda semana, se matava o tempo pescando ou jogando baralho, e não havia tanta reclamação ou choro pela noite.
Depois de um longo tempo no farol do Rio, eu e meu amigo fomos escalados para cuidar de um grandiosíssimo que havia em Alagoas. Era uma viagem longa. Eu e meu amigo ficamos temerosos, com medo do que o destino nos esperava. Só depois é que ficamos sabendo: nosso chefe estava a par de gordas negociações para que ganhássemos uma remuneração muito além do compreensível – e, além de tudo, generosa – assim que começássemos a cuidar do tão estimável farol de Ungidas. Pelo que fiquei sabendo, ainda por intermédio de nosso chefe, os faroleiros que estavam lá haviam adoecido e não poderiam voltar ao trabalho, mas a peste já fora contida e, como o farol era muito requisitado, guiando os navios que vinham de diversas partes do mundo, eu e Otávio devíamos guiá-los, em missão santa.
Não temos família. Eu mesmo caí no mundo quando tinha dezesseis anos e até hoje não há notícia de meus parentes adotivos. Não conheço muito bem a vida de Otávio, mas sei que ele também não é apegado a lugar nenhum. Vivemos no mundo, e desde que eu conseguira o emprego de faroleiro, nunca mais me apeguei a residências. Temos um ao outro, e o farol imponente, o deus dos faroleiros que vivem para cuidar dele e pescar no mar traiçoeiro. Mas o mar só é traiçoeiro para quem ainda não sabe com o que está mexendo!
O trem é confortável, embora fadigoso. Depois de mais uma hora de viagem, Otávio largou o livro num canto e passou a olhar com muito mais interesse pela janela, vendo as serras e tudo mais. Eu estava com sono, já que não dormira muito bem com tantos preparativos para a viagem. Acho que vou colocar minha mala no banco e encostar minha cabeça cansada. Quem sabe eu durma. Quem sabe não.
16/02/1912
O Norte é um lugar desconhecido para mim. Sempre morei no Sul e nunca tive a mínima ideia sobre como o Nordeste seria. Estava curioso, pensando se iria conseguir me adaptar ao clima mais quente e seco, ou até mesmo a cultura, que na minha convicção deveria ser muito diferente da do Sul. Como ficamos alguns dias soltos enquanto fazíamos os preparativos para a viagem, tomei a liberdade de ir até a biblioteca municipal, a fim de obter informações sobre o estado de Alagoas, mais precisamente sobre o município de Ungidas.
No dia em que fui a biblioteca fazer minha pesquisa, encontrei um livro de capa grossa e colorida que falava especialmente sobre o Nordeste. Claro que isso era algo muito geral e pouco específico quando se está procurando apenas um município em particular, mas quando vi o mapa de Alagoas logo encontrei o município no litoral. Ungidas era muito menor que o Rio de Janeiro e ainda menor do que Maceió, mas não encontrei mais nenhuma informação sobre a cidade no livro, a não ser um pequeno levantamento sobre a área total em quilômetros quadrados e sua população.
Na ocasião, levantei os olhos do livro e olhei para todas as estantes da biblioteca. Percebi que seria muito difícil encontrar qualquer informação sobre Ungidas naquela biblioteca tão vasta, e por isso guardei o livro em seu devido lugar e me dirigi até a bibliotecária a procura de informação.
A responsável pela biblioteca era uma moça esquálida usando óculos grosseiríssimos e roupas coloridas e bastante fechadas, que olhou para a mim sob a visão de suas lentes, escutando todo o meu relato sobre minha viagem e meu interesse em saber mais sobre a cidade. Ela refletiu sobre isso durante alguns segundos, e depois deu um sorrisinho descontraído e me guiou até uma estante em particular, onde me entregou um livro sobre faróis. Perguntei o que poderia encontrar naquele livro, e ela apenas me disse que conhecia o farol de Ungidas – de certo tinha uma longa história – e, com certeza, havia muitas informações sobre ele no tal livro e, consequentemente, a história da cidade.
Agradeci e tomei o livro em mãos, indo para a mesa mais próxima desocupada e folheando-o avidamente. Não demorei para encontrar informações sobre o farol de Ungidas. Era um farol gigante, que tinha fama de ser o Guia dos Ventos Solitários. Encurtando a história, ela começava quando os holandeses estavam tomando a região e acabaram construindo um farol para guiar os navios que chegavam.
A história da cidade que é contada é ainda mais curiosa. Pelo que parece, um colonizador vindo de Pernambuco armou barraca em um descampado próximo ao mar. Passou-se alguns meses, um grupo de peregrinos que vinham do Sul do Estado encontraram uma barraca intocada com um corpo ajoelhado e de bruços dentro. Supõe-se que era o tal colonizador. Além desse achado macabro, foi encontrado na barraca um alto valor em dinheiro, que foi empregado por seus descobridores no comércio. Mais tarde, os comerciantes voltaram para o descampado e ali fundaram a cidade em homenagem ao seu fundador sem nome, que morreu rezando e deu o dinheiro necessário para que esta fosse fundada. Como em homenagem as mãos rezando, foi dado o nome de Mãos Ungidas, que mais tarde ficou apenas como Ungida.
Estremeci ao ler essas palavras na biblioteca silenciosa. Consegui apenas pensar em como uma morte tão misteriosa poderia ser tido como milagrosa por um comerciante. Mas eu já tinha ouvido falar em casos de que mortes geraram milagres, embora minha fé seja muito protestante para acreditar nisso. Fui criado sabendo que apenas Cristo Salva, e isso molda minhas convicções até o dia de hoje. O mais curioso da história era o Farol, que além de ser fundado por holandeses, teve como faroleiro um homem muito carismático chamado Paulo. Segundo o relato do livro, Paulo cuidou do Farol até a sua morte, época na qual o intenso volume de exportações saindo de Alagoas deixaram a região rica. Mais um possível milagre. Não sei como Paulo morreu, já que no livro não falava nada sobre, mas creio que deve ter partido em grande riqueza.
Pensei em como as histórias de cidades poderiam ser bastante interessantes. Eu estava a poucos dias de morar em um lugar desconhecido para mim, e conhecer um pouco do local tinha sido minha ideia inicial. Na verdade, encontrei apenas mistérios. Seria melhor deixar essa curiosidade de lado e esperar ver a cidade com meus próprios olhos. Por isso, deixei o livro na estante e agradeci a bibliotecária, saindo para a rua e indo para meu apartamento.
Isso já faz alguns dias, e hoje ainda estou no trem com Otávio. Nós descemos em uma estação na Bahia, passamos a noite sentados em bancos de madeira e depois pegamos outro trem para Alagoas, antes comendo um jantar barato num dos quiosques da estação. Comentei com Otávio sobre a minha ida a biblioteca, mas ele não pareceu se importar muito. A cidade qual estávamos era desconhecida e eu não sabia de nada. Apenas acompanhei Otávio, com seu gênio incrível, e conseguimos facilmente pegar o outro trem.
Tomamos um café da manhã leve e nos sentamos em uma cabine com uma vista para uma chapada. Eu nunca tinha visto algo do tipo, e fiquei encantado. Enquanto Otávio folheava mais uma vez um livro – dessa vez consegui ler na capa algo sobre poesias – eu me deliciava com a visão da chapada. O trem começou a andar e eu me perdi em pensamentos.
Muito tempo depois, já tínhamos feito um almoço leve e eu contava para Otávio mais algumas curiosidades que havia descoberto sobre o Farol de Ungidas. Contei de como o mistério do pioneiro a descoberta do descampado havia inspirado vários romances na época. Otávio apenas murmurou algo incompreensível, já que o sono estava tomando-o como uma sereia cantando para o faroleiro no mar... Eu apenas coloquei novamente minha mala no banco e me deitei. Agora é só esperar a próxima parte da viagem.
18/02/1912
Chegamos na tão famosa Ungidas. Descemos da estação com a curiosidade de uma criança, vendo todas as construções e pensando se o grande farol era parecido com o que vimos nas fotos. Guiei Otávio por todas aquelas ruas, já que tinha lido o mapa de forma extensiva e havia reconhecido a famosa catedral. Não demorou para acharmos nosso chefe, qual nos atendeu em um escritório bem-arrumado e pouco arejado. Fazia um calor dos diabos.
- Cuidem bem do nosso precioso – Disse ele, fumava um charuto caro e usava um terno bastante surrado – Esse farol guia e guiará importantes navios.
Prestei bem atenção no escritório de nosso chefe. Um cinzeiro estranho – em forma de cabeça de gato – decorava a mesa, de onde repousavam várias bitucas de cigarro, deixando bem a mostra que nosso chefe gostava de fumar os cigarros até ficar apenas o toco carbonizado e cheio de cinzas e alguns resquícios de tabaco. Ele fumava um cigarro atrás do outro, e a fumaça incomodava meus olhos como se ali houvesse algum cisco. As paredes do escritório eram pintadas num azul deprimente e, embora os papéis na mesa de forma arrumada dessem a impressão de se tratar de um local de sérias negociações, o ar do lugar em si fazia eu e Otávio nos sentirmos em uma redação engordurada do jornal mais melancólico da cidade.
Otávio pigarreou. Pensamos que a conversa seria ainda mais monótona, mas então nosso chefe começou a lançar pérolas, o que queria nos dizer que havia algo sobre a cidade que não poderíamos tocar ou comentar, ainda mais se fosse pelo "precioso" farol.
- Tentem não serem boêmios ou se engraçar com alguém da cidade. – Disse o coroa, colocando mais uma bituca no cinzeiro. O gato de louça parecia nos fitar com um olhar instigador.
- Como assim? – Disse Otávio. – Há alguma restrição sobre nossa vivência? Sabemos que temos que cuidar do farol e apenas isso, não acho que sairíamos para curtir na noite em plena...
- Você não está entendendo, caro homem – Disse o chefe, depois de dar uma risada seca e breve – Não queremos que o farol vire uma espécie de.... – Ele parou por alguns segundos, tentando achar o que dizer, como se estivesse escolhendo cuidadosamente as palavras – Enfim, não queremos que mais ninguém entre ali a não ser vocês. E não quero que mais ninguém fique a par do que acontece lá.
- Era só isso? – Eu disse, começando a achar graça em todo aquele falatório – Por que não diz que nos quer trabalhando noite e dia? Não foi assim com os outros faroleiros?
Ele me fitou com um olhar que não era de medo nem de raiva, e sim de puro desconcerto.
- Bem, eu... – Sua voz vacilou um pouco, para então voltar firme e forte – Os outros faroleiros se envolveram demais na cidade e ficaram doentes, a administração do farol é estritamente de interesse público e não queremos que mais um caso de afastamento aconteça. Ah, mas que terrível foi o adoecimento de Luís e Sandro... Terrível como o... – Parou aqui.
Eu e Otavio nos entreolhamos, pairava no ar um sentimento de desconfiança e medo. O chefe apenas gaguejou mais umas palavras incompreensíveis, como se não soubesse como terminar a frase que começara. "Terrível como o...". Como o quê? Tinha algo de terrível no farol.
No final ficamos sem resposta para nossas dúvidas. Saímos do escritório enfumaçado de cigarro para a luz da cidade com as chaves do farol nas mãos e a pergunta sobre o que teríamos de evitar na cidade, já que nada ficara claro.
Ungidas era um lugar aparentemente pacífico e vívido. Víamos barracas de peixe, fumo, amendoim e várias outras coisas que as pessoas gostam de comprar. O caminho até o farol era uma estrada de terra batida que saia do centro e dava numa vila próxima ao porto. Eu e Otávio cruzamos aqueles lugares sempre de olho no ambiente, prestando atenção nas pessoas da cidade e nos ares que emanavam do chão. Ao chegarmos no farol, vimos o mar imponente, as pessoas que se banhavam naquela água salgada e as vendas que se formavam perto dos banhistas.
Andamos até a parte menos movimentada da praia, onde o famoso Guia dos Ventos Solitários nos esperava. À primeira vista, nos sentimos pequeninos diante de tal construção. Era bem parecido com o desenho que eu vira naquele livro da biblioteca, só que ao vivo e em cores era muito mais belo. Sua arquitetura grandiosa trazia espanto e surpresa para qualquer um que se colocasse rente as suas paredes pintadas em listras pretas e brancas e olhasse para cima. Nem o nosso último farol no Rio trazia me deixou tão pasmo quando visto pela primeira vez.
Encaixei a chave na fechadura e entramos. O cheiro de um longo tempo de imobilização nos atingiu. Parecia que esse lugar não era usado há séculos. As paredes eram frias – mesmo com o dia tão quente – e a monotonia da visão deixava tudo mais velho e sombrio. Estremecemos, pois teríamos ainda muitos dias de trabalho e chances de adaptação nesse lugar.
Entramos e não demorou para cada um achar seus aposentos e arrumarem as malas. O dia continuou até a noite, quando vamos dormir e nos preparar para começar o trabalho amanhã. Aqui perto tem uma janela de onde dá para ver o mar. Ficarei olhando para ela até o sono vir. Fiquei sabendo – pelo Otávio, que lê muitos livros e é ligado nas coisas – que escrever sob pouca luz faz mal para as vistas. Guardarei meu diário e irei dormir. Tenhamos um boa noite. Amém
19/02/1912
A manhã se sucedeu com fatos estranhos. Eu acordei logo cedo e me preparei para ver o mar, mas enquanto passava pela janela vi uma figura curvada na beira da areia, perto de uma rocha que decerto era escorregadia de tantos musgos. A figura não era ninguém menos que Otávio, em seus trajes de faroleiro, que parecia ter achado algo curioso na areia.
Otávio girava a cabeça para os dois lados, como se procurasse alguma coisa. A mão livre, qual não estava apoiada na areia, examinava o chão, mas sem tocá-lo. Achei isso muito curioso, e terminei de me arrumar rapidamente, descendo pelas escadas em seguidas. Mal cruzei o umbral da entrada do farol, meu amigo olhou para mim, de longe, e me chamou para ver o que tanto ele examinava.
- Venha cá, caro colega. Mas, cuidado para não pisar nas pistas! Venha por esse caminho.
Ou obedeci a meu amigo e, olhando para chão, percebi pegadas. Cheguei perto de Otávio, e ele examinava um rastro de pegadas que saíam do mar e começavam na areia próxima e iam em direção ao farol.
- Veja, pegadas!
- Quem será?
Ficamos um tanto perplexos, já que eram pegadas de pés descalços, e por isso não tinham como ter sido produzidas por um de nós. Sem falar que começavam próximo ao rochedo que dava no mar, um mar perigoso e que eu sabia que já tinha ceifado várias vidas inocentes.
- E pra onde elas vão?
Otávio ficou alguns segundos calado, para então virar o rosto para onde as pegadas iam.
- Isso é o que vamos ver.
Dizendo isso, se levantou e me fez gesto para acompanhá-lo. Começamos seguindo as pegadas. Primeiro, elas pareciam ir até a entrada, mas então arrodeavam e iam para a parte de trás do farol, qual nós ainda não tínhamos explorado. Continuamos a seguir, só para ver que as tais pegadas davam em um alçapão trancado a cadeado.
- Merda!
- Alguém certamente fez isso para confundir-nos, assustar-nos!
- E como saiu daqui? Voando?
Eu cocei a cabeça, já que não fazia a mínima ideia de alguma outra explicação lógica que fizesse aquelas malditas pegadas fazerem sentido.
- Deixa isso. - Eu disse. - Vamos pescar. Depois vemos quem é o engraçadinho.
Otávio concordou, e logo nossas pegadas de sapatos se misturaram com as outras pegadas misteriosas, indo para todos os lados. Pescamos e conversamos com alguns comerciantes.
Perto do fim da tarde, quando ia para meu posto de trabalho, puxei assunto com uma senhora que vendia peixes. Eu estava curioso para saber onde ficava a guarda, para ser respondido de forma insípida por parte da mulher desdentada.
- Não falo com gente dele!
Fiquei impressionado. Mas, não insisti. No entanto, fiquei ainda mais curioso para saber quem era o tal "ele" que ela falava. Estaria uma parte da população de mal com nosso chefe? Ele andara se metendo em confusão? Também não pensei muito nisso, e fui para o farol.
Mais tarde, eu e Otávio estávamos a observar o mar escuro lá embaixo. Estava quase negro, e eu conseguia ver algumas luzes pálidas de barcos pequenos ao longe. Senti muito frio, e resolvi me esquentar.
- Estou indo para...
Mal pude terminar a frase, quando um pingo de chuva bateu no vidro.
- Não pensava que ia chover agora.
- É. - Disse Otávio, olhando para o lugar onde caíra o grosso pingo. Parecia ter sujado o vidro. - Nem eu.
Vários pingos sucessivos atingiram a janela, manchando o visor.
- Mas que droga...
Observamos o vidro, sendo enganados pela escuridão da noite.
- Isso é sangue, caro amigo.
Eu custei a acreditar. No entanto, me aproximei e fitei com meus próprios olhos os pingos rubros que escorriam pelo vidro. Senti mais frio ainda.
- Qual era aquela história que você disse? - Perguntou Otávio, ainda olhando para as manchas.
- Que história?
- A história da cidade... um homem-morto rezando?
Pausa.
- Isso.
Ficamos alguns minutos, olhando um para ou outro, decidindo o que pensar. Por fim, desisti daquela joça.
- Vou me esquentar – Disse, indo em direção ao quarto.
Estou aqui, agora, decidido a saber o que acontecerá quando eu for pedir esclarecimentos aos comerciantes amanhã, para saber quem é que anda com gracinhas. Estou quente agora, mas parece que o frio não sai com tanta facilidade assim.
20/02/1912
Mais pegadas na areia, indo do rochedo até o alçapão. Ainda não sei o que tem lá, e o nosso chefe não está não estava no escritório. Eu voltava do centro, quando alguém que passava por mim deixou um papel em minha mãe e seguiu caminho, rapidamente.
Andei por mais alguns metros e então me sentei numa pedra, abrindo o bilhete e vendo o que estava escrito.
"NÃO QUEREMOS VOCÊS AQUI".
Fiquei perplexo, pensando e repensando o que tinha aquela cidade para nos tratar mal. Estremeci, lembrando o fato dos dois últimos faroleiros terem adoecido e tudo mais que eu não sabia que podia ter acontecido.
Voltei para o farol e não encontrei Otávio. Só podia estar no seu quarto, enquanto saía do meu e ia para o dele, meu pé esbarrou em algo. Havia um objeto embaixo da minha cama, com uma de suas pontas a mostra. Peguei aquilo nas minhas mãos e observei.
Era uma foto com um caderno. Pareciam antigos, e a foto era muito amarelada e gasta. Tive medo. Tomei o papel em minhas mãos, mas não o li.
Segui para o quarto de Otávio e, antes de bater à porta, ouvi vozes, como se alguém estivesse conversando. Colei a orelha na porta e ouvi tudo muito bem.
- Senhor, se for de sua vontade, afasta-me esse cálice!
A voz de Otávio parecia alterada, mas era a única no aposento.
- Eu não aguentarei!
Fiquei com medo e me afastei. Sabia que uma daquelas frases fora a mesma dita por Jesus nos evangelhos, mas não sabia que meu amigo era religioso. Na dúvida, fiquei esperando Otávio na sala do visor.
A noite chegou e Otávio também. Parecia cansado. Eu guardara os papéis num canto, e os barcos no mar ao longe pareciam flutuar pacificamente.
- Ainda tem cigarros?
- Sim.
Dei um cigarro para Otávio e ele fumou. Ficamos imóveis muito tempo, sem falar.
- Amigo... - Eu disse. - Percebeu que nosso chefe nunca mais aparecera no escritório?
- Sim.
- Do que adoeceram mesmo os outros faroleiros?
- Medo. - Pausa. - Adoeceram de medo.
Estremeci, um calafrio percorrera minha espinha, olhei de soslaio para os papéis no canto, mas não tive coragem de falar para Otávio. Mais tarde, ele quis sair.
- Tenho que ir ao banheiro.
- Tudo bem.
Ele saiu, e eu peguei os papéis. O homem na fotografia era esquálido e parecia ter usado bastante ópio. Ele tinha um chapéu de faroleiro e o uniforme. No canto da fotografia, havia uma palavra: Paulo.
Paulo... O famoso faroleiro que dera a vida pelo farol. Até qual longe isso fora? Alisei a foto com os dedos, sentindo calafrios à medida que fazia isso. Eu virei o papel para o outro lado, tentando ver se havia anotações no branco. Não havia nada. Sem pestanejar, fui para os papéis. Ao longe, escutei o baque, o que parecia que Otávio havia derrubado algo no quarto.
Os papéis eram pardos e a letra não era muito bonita, mas consegui ler mesmo assim. O primeiro papel era enigmático.
"Não venham para aqui. Santo Deus que Nos Vigia, aqui é a morte. Paulo ronda, ele sai do rochedo e vai para o [ilegível]. Fiquei sabendo disso, oh meu Deus, fiquei sabendo disso hoje! Estou sendo vigiado e [ilegível]. Nos protejam!"
Escutei passos pesados nos andares debaixo, como se Otávio estivesse impaciente. Olhei para os dois lados, temendo que algo ruim estivesse a acontecer. Passei para o próximo papel com cuidado. Era ainda mais sujo, mas com o mesmo nível de caligrafia.
"O sebo domina essa cidade. Ela [frase ilegível]. A coisa que domina farol, ela vai pegar todos nós. Ela vai pegar todos nós."
Levantei a cabeça e olhei para o mar. Quase infinito, suas águas escurecidas exalavam morte. Os barcos ao longe crepitavam no mar terrível, as águas amaldiçoadas que banhavam Ungida e condenavam o farol à putrefação e a corrupção de seus cuidadores. Do que haviam padecido Luís e Sandro, nunca saberei, mas sei que de algo normal não foi. De súbito, uma saraivada de gotas de algum líquido batera no vidro e o manchou de rubro.
Escutei um baque e corpos rolarem no chão, como se uma briga estivesse acontecendo no quarto de Otávio. Sem pestanejar, desci as escadas e saí correndo para lá. Cheguei na porta, mas ela estava trancada.
- Droga. Otávio!
- Me deixa em paz, seu diabo!
Otávio disse isso com quem ele estava lutando, mas eu não conseguia escutar a voz dele, e pensava em quem teria invadido o farol e tentado algo contra meu amigo. Lembrei do que ele disse. "Medo. Adoeceram de medo". Sufoquei um grito, e me deixem cair no chão, em lágrimas.
A luta durou por alguns minutos, até cessar. Meus ouvidos zuniam, e parecia ser observado. Criei coragem e, devagar, me pus diante da porta fechada.
- Otávio!
Sem resposta. Decidido, me afastei comecei a jogar meu corpo contra a porta. Fiz isso até ela abrir. Já estava com o corpo doendo, mas minha alma começou a doer quando vi Otávio pendurado pelo pescoço com o lençol na trave que usamos para pendurar coisas. Gritei, mas ninguém ouviu meu grito.
Estou aqui, decidido a matar o que é que esteja assombrando o farol. Já perdi meu amigo, e como achei um machado no meio das coisas dele, arrombarei aquele alçapão. O que quer que seja que ainda esteja vivo, sei que encontrarei com suas pegadas na areia, saindo do rochedo, e irei até sua casa para matá-lo. Não descansarei enquanto não arrombar aquilo e acabar com essa maldição. Deixarei meu diário aqui, para caso aconteça algo comigo. Não posso esperar mais, está frio... Deus, está tão frio!
NAQUELA MADRUGADA...
A procissão saiu da cidade em direção ao farol, com o intuito de checar se o ritual e as invocações haviam dado certo. O Deus Vizinho protegia Ungidas, e o sacrifício de dois homens do mar por ano faziam com que tudo andassem nos conformes. Eles andavam pela praia, calados, com suas velas e suas roupas negras. Na frente, guiando a procissão, ia o homem usando uma carranca de bode na cabeça.
Andaram por um quilômetro até chegarem no farol, onde passaram pela areia, ignorando as pegadas de pés descalços que saíam de perto do rochedo e se misturavam com pegadas de sapatos. Eles sabiam que estavam muito perto.
O farol exalava a desolação. Desde que o grande profeta Paulo havia instaurado o ritual, a imagem do farol sempre soou como algo terrível, santo, e um tabu, eles evitavam-no e o adoravam, pois sabiam, que ele era fruto da misericórdia d'Ele com seu povo. Seguiram até o homem com cabeça de bode parar em frente ao alçapão. Estava destruído, arrombado por um machado.
Se entreolharam, como se sabendo que tudo estava completo. Sorriram e então, devagar, o primeiro da fila adentrou a escuridão.
[O mundo descrito no texto pode não ser o mesmo que o que você leitor estar. Neste mundo os faróis e os faroleiros tem vivência e modos de trabalho fantasiosos]