Padre creu na ‘ré’Encarnação (miniconto da ‘es’Crypta)

O padre Sóstennes recebeu a visita da alma do falecido marido da Dona Maria da Encarnação do Perpétuo Desterro, que puxou o seu pé acordando-o no meio da noite e disse:

— “Você sabe que a minha viúva não me assassinou e que ela está presa injustamente. Esse é um segredo de confessionário que você vai ter de quebrar.”

Padre Sóstennes não levou a sério aquela visagem, embora tivesse sentido claramente um puxão em cada um dos seus pés, e procurou esquecer porque um segredo de confessionário não pode ser revelado. Porém, noite-sim-noite-não, a visita e o puxão em pé direito e em pé esquerdo se repetiam com duração de dois ou três minutos. E chegou o momento em que o sono já não vinha facilmente, devido à expectativa do toque mal-assombrado.

Sim, era verdade que a Dona Maria da Encarnação do Perpétuo Desterro (mais conhecida como “Dona Encarnação”) havia revelado em confessionário que não tinha encontrado coragem de correr atrás do marido quando debaixo de uma tempestade na madrugada ele gritou que estava se despedindo da vida e pediu que ela não tentasse impedir o que ele iria fazer naquele momento. Ela, então, que ardia em febre e tinha sido medicada pelo Doutor Caruso, não teve coragem de sair naquela chuva e segurar o companheiro que correu em direção ao poço de água potável onde terminou por se atirar dando fim à própria existência terrestre.

Padre Sóstennes soube que a Dona Encarnação havia se tornado ré na comarca criminal, sendo que no dia do sepultamento do marido ela havia se confessado com ele na igrejinha e contou que não era verdade que havia empurrado o marido no poço, embora todos na comunidade soubessem que ela era sempre espancada por ele e gritava dizendo:

— “Um dia você me paga, seu desgraçado.”

Padre Sóstennes não resistiu muito tempo ao peso da consciência e aos puxões cada vez mais fortes nas pontas dos pés sempre acompanhados de uma cobrança na voz do mal-assombrado visitante. E a cobrança era sempre a mesma:

— “Você sabe que a minha viúva não me assassinou e que ela está presa injustamente. Esse é um segredo de confessionário que você vai ter de quebrar.”

Padre Sóstennes entrou em desespero e saiu em busca do médico Doutor Caruso, que atendia vários distritos daquela cidadezinha interiorana e havia sido a testemunha esquecida pelas autoridades, embora Dona Encarnação tivesse repetido seguidamente que (cedo daquela fatídica noite) ele tinha visitado a granja onde o casal habitava até a trágica atitude do marido dela.

Juntos, Padre Sóstennes e Doutor Caruso testemunharam no tribunal do júri e salvaram a coitada viúva da cadeia pesada que ela iria pegar.

Daquele dia em diante, o Padre Sóstennes abandonou o sacerdócio católico e cuidou de abrir um “terreiro” onde ele passou a ser o Pai-de-Santo e, a partir daí, o seu guia era o espírito do falecido marido da Dona Encarnação. Mas é claro que o fantasma primeiramente havia se confessado a ele antes, quando o sacerdote ainda estava no ofício perante a Igreja.

Assim, por ter acreditado na ré Encarnação, o “já-não-mais-padre” salvou três almas do sofrimento, que foram: a da viúva, a do falecido... e a dele mesmo.

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Da coleção zezediozoniana: Minicontos da ‘Es’Crypta