Olhos Amarelos
Sempre tive uma conexão inexplicável com gatos. Fofucho foi meu primeiro, de pelo todo branquinho. Eu devia ter cerca de três anos na época, mas lembro nitidamente dele se esgueirando pelas grades do portão e vindo até mim. Alguns anos depois ele desapareceu, mais ou menos na época em que minha avó veio morar conosco. Meus pais disseram que ele fugiu. Que gatos fazem essas coisas.
Depois veio a Mel. Ela me seguiu da escola até em casa. Era muito mansa e toda marronzinha. Gostava de ronronar no meio das cobertas. Quando completei oito anos, não encontrei a Mel nas cobertas e nem no guarda-roupas, onde se escondia quando minha avó cantava alto demais. Minha mãe disse que ela devia ter entrado no cio e saído procurar um gato macho. Não entendi o que aquilo significava, mas devia ser mais uma coisa dessas, sem explicação, que os gatos fazem. O desaparecimento dela me deixou abalada, não brincava, nem sentia fome. Então minha avó fez a famosa “sopa cura tristeza''. A última vez que lembrava de tomar essa sopa foi quando Fofucho sumiu e chorei três dias ininterruptos. Um ano se passou. Sem gatos em casa. Mas achava mágico como eles me seguiam onde quer que eu fosse, ronronando e piscando devagar com seus olhos grandes. Acreditava que eles falavam comigo, e eu falava com eles.
Tinha quase dez anos quando comecei a ter problemas com insônia. Eram noites e mais noites passadas em claro, contando as estrelinhas fluorescentes coladas no teto. E quando dormia sonhava com Fofucho, Mel e uma dezena de outros gatos. Pesadelos. Pesadelos horrendos onde eu os procurava e nunca conseguia alcançá-los. Havia sangue nas cobertas da Mel. Sangue no portão por onde Fofucho entrou na minha vida. Sangue nas minhas mãos. E quando me desesperava na poça de sangue um par de olhos amarelos me encarava nas sombras. Silêncio. Então eu acordava, com a roupa molhada de suor.
Numa dessas noites acordei sem ar, caindo da cama. O relógio na mesinha marcava duas e cinquenta e nove. Eu lembro bem, pois fiquei com muito medo. As histórias costumam dizer que essa é a hora das bruxas, seja lá o que isso queira dizer não parecia bom. Ouvi algo bater na janela e me encolhi toda. O som repetiu. Eu não me mexi. A batida evoluiu para algo arranhando o vidro, aquele som agudo que arrepia os pelos da nuca. De repente parou. Resolvi tomar um gole de coragem, indo espiar no cantinho da janela. Um par de olhos amarelos me encarava. Olho no olho. Tampei o nariz e tentei puxar o ar que não veio. Ainda estava ali. Balançando sua cauda longa para lá e pra cá. Nada de gatos em casa. A voz do meu pai ecoava na minha cabeça. Fechei a cortina e voltei para a cama. Dormi profundamente. Sonhei com cantigas de ninar, cobertas quentinhas e cafuné.
Na manhã seguinte acordei feliz, pois tinha dormido como não dormia há meses. Vesti minhas pantufas e abri as cortinas para ver se o céu estava azul. No beiral da janela, a massa preta continuava ali. Olhos fechados, aproveitando o sol radiante da manhã, do jeito que os gatos gostam. Queria abrir a janela e afofa-lo. Encostar seu nariz gelado na minha bochecha e ouvir o ritmo do seu ronronar. Nada de gatos em casa. Dei meia-volta e segui minha rotina. Já não pensava mais nisso ao chegar da escola no fim da tarde. Mas quando joguei a mochila em cima da cama e me virei para a janela, lá estava ele. Me encarando com aqueles olhos amarelos. Corri até minha mãe e perguntei se ela tinha deixado o gato ficar e ela me perguntou “que gato? Não vi nenhum gato.” e eu respondi que tinha um gato preto na minha janela. Intrigada, minha mãe foi até o quarto averiguar. Não tinha nada na janela. Devia ter ido embora.
O sono não vinha. As cobertas já se enrolavam nas pernas. Batida na janela. Três horas. Levanto esperançosa abrindo as cortinas só para ver o par de olhos amarelos me implorando para entrar. Eu o deixo entrar. Ele caminha pelo quarto como se sempre tivesse vivido ali. Sobe na cama e se enrola ao lado do travesseiro. Toda serelepe, corro para me juntar a ele, me aninhando no seu pelo macio. Cantigas de ninar, cobertas fofinhas e cafuné. Quando acordei estava sozinha. E essa foi nossa rotina por semanas a fio. Até que resolvi falar dele para minha mãe, que como resposta marcou uma sessão de terapia dizendo que eu estava alucinando. Não havia gato nenhum, nem pegadas, nem pelos espalhados no quarto. Por isso, o apelidei de Salem, como o gato da bruxa Sabrina. Um gato preto que sempre aparecia às três da manhã e desaparecia sem deixar rastros. Até que um dia não desapareceu. Num sábado, acordei com minha mãe gritando. Ela apontava para minha cama e repetia “um gato! um gato! Ele existe, ele está aqui”.
Salem passou a viver conosco, me seguindo aonde quer que eu fosse. Dormia na minha cama. Não socializava com minha família, preferindo passar o tempo no beiral da janela tomando sol quando eu não estava por perto. Apesar disso, ele convivia bem com meus pais. Mas tinha um comportamento muito estranho com minha avó. O gato se sentava no meio do caminho e a encarava. Quando ela tentava se aproximar ele chiava mostrando os dentes afiados, extremamente hostil a qualquer movimento que ela fizesse. O mais estranho de tudo é que ela o encarava de volta, e falava com ele como se fosse uma pessoa. Ela o chamava de demônio, filho do diabo e bruxo. Com o passar do tempo o convívio entre eles não melhorou.
No ano seguinte, meus tios se mudaram para a casa ao lado, com minha prima e seu cachorrinho. Diversas vezes flagrei Salem dormindo na cama do cachorro quando eu ia brincar por lá. Uma amizade improvável de cão e gato. Toda vez que minha avó chegava perto do cãozinho o gato se colocava na frente dele, rosnando de forma protetora. Ela ficava sem jeito e se afastava com um sorriso forçado. Meus tios ficavam irritados, pois achavam perigoso um gato agressivo assim por perto. Mas Salem nunca rosnou para qualquer outra pessoa. Eles não entendiam que ele só estava sendo protetor com seu novo amiguinho. Porém essa amizade não durou muito. Meses depois minha prima veio dormir comigo uma noite. Desconsolada. O cãozinho fugiu. Foi o que disseram a ela.
Salem estava especialmente impaciente, andava de um lado para o outro. Pedia para sair do quarto. Pedia para entrar no quarto. Miava na porta me encarando com seus olhos amarelos, que eu podia jurar estavam chorosos. Nos dias que se seguiram, Salem começou um hábito irritante de miar escandalosamente na porta do ateliê onde minha avó fazia seus artesanatos, que ficava nos fundos de casa. O quartinho estava sempre trancado, minha avó não gostava que bisbilhotássemos por lá. Cerca de um mês depois ele parou com essa mania. Mas estava sempre sentado como uma estátua olhando a porta do ateliê. Hábito que manteve por anos.
Eu já tinha dezessete anos quando a relação dos meus pais começou a ruir. Eles brigavam com frequência, fazendo acusações um ao outro. Meu pai dizia impaciente que a presença da minha avó interferia na vida deles e na minha criação. Que ela era uma velha egoísta e maldosa. Ela rebatia, defendendo sua mãe, é claro. Quando essas discussões aconteciam, Salem se sentava silenciosamente ao lado do meu pai. Balançando seu rabo devagar, para lá e pra cá. Ninguém entendia porque ele fazia isso. Mais uma discussão e lá ia ele. A situação ficou insustentável. Meu pai fez as malas e pediu o divórcio. Exigiu que eu ficasse com ele, mas tanto minha mãe, quanto minha avó não permitiram. Na manhã seguinte ouvi o choro da minha mãe no quarto. Meu pai partiu. Ela segurava o relógio favorito dele nas mãos, com lágrimas respingando no vidro riscado.
Naquela noite, na esperança de acalmar o desespero da minha mãe, minha avó fez a famosa “sopa cura tristeza”. Ela disse que havia mudado um pouco a receita, deixado com sabor mais leve. Naquela noite, Salem ultrapassou todos os limites quando pulou na mesa durante o jantar. Virando os pratos ao escorregar na toalha. Começaram a gritar com ele, que em resposta rosnava e chiava. Não jantei e fui para o quarto acalmá-lo. Peguei no sono sem perceber e acordei com batidinhas leves de uma patinha fofa no meu rosto. Eram três da manhã. Salem andava de um lado para outro indo da cama até a porta. Resolvi ver o que o gato ranzinza queria. Abri a porta e ele saiu em disparada até a porta dos fundos. Fui até lá e abri para que saísse. Novamente ele andava de um lado para outro. De mim para o ateliê da minha avó. Tentando não acordar ninguém me aproximei da janela e espiei lá dentro por uma fresta. Não vi nada. Salem continuava impaciente me fazendo tropeçar nele. Então forcei a janela que abriu sem dificuldade. Imediatamente o gato pulou para dentro. E eu entrei atrás dele para buscá-lo. Havia um cheiro pungente no ar.
Num canto ficava um fogão e um freezer que minha avó usava para preparar refeições maiores, quando a família se reunia. Salem começou a miar bem ali. Parado, me encarando com seus olhos amarelos brilhando no escuro. Percebi que o chão estava molhado, eu pisava numa poça. Procurei o interruptor e acendi a luz. Minhas meias brancas estavam ensopadas de um líquido vermelho que se espalhava por toda parte. Escorria do freezer entreaberto. No fogão, a panela que minha avó usou para fazer sopa. O gato estava sentado em frente ao freezer no meio daquela sujeira toda. Ele queria me dizendo algo. Eu sabia. Abri o freezer e encontrei muitos pedaços de carne mal embalados, ocupavam todo o espaço. Tentei empurrá-los de volta para conseguir fechar a porta, mas algo caiu de dentro, nos meus pés. Uma mão. Mãos humanas. Com uma aliança no dedo anelar, marcada com um coração. Era o anel do meu pai.