O tambor, a criança e o Urubu

Cinco de janeiro. Tarde de domingo. Era um dia ensolarado e tranquilo. Nada poderia me preparar para o que estava para acontecer naquele dia. Os adultos conversando, as crianças correndo para lá e pra cá. Não havia nada com que me preocupar. Quando já passava das sete, senti uma tontura. Talvez tivesse bebido além do que deveria e perdido a noção do tempo. Informei aos anfitriões que eu iria embora e perguntei por Pedro. Eles então me disseram que ele estava na sala de brinquedos, no andar de cima, com as outras crianças. “Não se preocupe”, disseram eles, “mais tarde o levaremos para casa”. Achei aquilo muito estranho, pois não éramos amigos próximos. E disse que preferia que ele fosse embora comigo, pois já era tarde. A mulher insistiu, impaciente, para que o deixasse. Algo parecia errado. Talvez fosse o sorriso forçado ou os olhos frios com que ela me encarava. Pedi licença e subi para procurar meu filho. Só Deus sabe meu sentimento ao encontrar o tal “quarto de brinquedos”.

Deixe-me tentar explicar a cena. Havia um círculo de crianças sentadas no chão. No centro deste círculo, em pé, o homem que mais cedo me foi apresentado como o pai da anfitriã da festa. O velho usava um casaco longo e preto com um capuz que estava abaixado cobrindo os olhos. Do lado de fora do círculo de crianças, alguns adultos com a mesma vestimenta entoavam um tipo de mantra sombrio que me fez arrepiar por inteira. E para meu completo horror, embaixo de um tambor desgastado, que se apoiava em uma estrutura comprida de madeira, em frente ao velho, estava meu filho.

Quando tentei alcançar Pedro, fui impedida pelos adultos no recinto. Ignorando minha presença, o velho bateu quatro vezes no tambor, e meu filho simplesmente desapareceu sob ele. Invocando uma superforça maternal, me desvenciliei dos braços que me seguravam e invadi o círculo maldito, exigindo saber o que tinham feito com meu filho. E o velho respondeu com naturalidade:

— Ele não está aqui.

Agarrando o homem pela gola do casaco, exigi que o trouxesse de volta.

— Eu não posso senhora, ele precisa achar sozinho o caminho.

— E onde ele está?

— Longe daqui, fora deste mundo.

— Você vai trazer meu filho de volta ou eu te mato, mato todos vocês — completamente fora de mim, não sei dizer quanto da minha ameaça eu seria capaz de cumprir naquele momento.

— Eu já disse, não tenho como trazê-lo de volta.

— Então me mande pra onde ele está. Vou buscá-lo.

— É perigoso. Não sabe pra onde vai. Pode não achar ele, se perder e nunca mais voltar.

Contrariando toda e qualquer razão, sentei embaixo do instrumento satânico onde vi meu Pedro pouco antes, e ordenei ao velho:

— Toque esse me maldito tambor.

— Não funciona ass..

— Toque. Agora!

Tum, tum, tum, tum. As batidas ressoavam em meus ouvidos. E num piscar de olhos, tudo desapareceu. Era muito escuro, e um cheiro de umidade pesava ao redor. Levantei tateando as paredes. Encontrei um trinco e abri a porta. Estava exatamente na mesma casa, mas deformada. Dessaturada. E sem ninguém dentro dela. Andei pelos cômodos chamando por Pedro, mas ele não estava lá. Saí para a rua. O sol estava alto. Parecia uma cidade normal, com carros e pessoas passando. Porém, uma versão pálida da realidade, e cheia de sons grotescos. Não muito longe, vi uma mulher de costas, com uma criança. Um menino, do tamanho de Pedro. Fui até ela e toquei em seu braço para pedir por ajuda. Ela se virou num sobressalto. Ao ver seu rosto senti um frio atingir meus ossos. A mulher não tinha olhos. Apenas dois buracos negros face e uma expressão carrancuda, toda enrrugada. Pareceu me analisar por um segundo ou dois antes de falar:

— Você está perdida, não é? — não era propriamente uma pergunta.

— Estou procurando o meu filho, ele está aqui em algum lugar.

— Aqui? No Sete Além? Eu duvido, moça.

— Sete Além? — eu já tinha escutado esse nome antes.

— Seu filho não está aqui, e você tem que ir embora — ela deu às costas, me deixando sozinha. Busquei ao redor alguém que pudesse me ajudar, mas todos me encaravam com a mesma expressão vazia.

Sem saber para onde ir, depois de andar algumas quadras a esmo, lá estava uma delegacia. Não sabia se iriam me atender, ou ao menos acreditar em mim. Todos agiam como se eu fosse louca. Tentei não encarar os buracos negros em suas órbitas, me esforçando para agir com naturalidade. Mas a resposta foi curta e grossa: “não podemos te ajudar, você tem que ir embora”. Eu só iria embora quando encontrasse meu filho. Nem que para isso levasse minha vida inteira vasculhando cada canto daquele inferno. Saí de lá aos prantos. Como iria encontrar Pedro? Ele também devia estar apavorado e perdido. Foi então que uma criança se aproximou de mim. Sua aparência era tão horrenda quanto a de todos os outros. Mas conseguia ser ainda mais amedrontadora. Ela sorria. Um sorriso sem expressão.

— Eu ouvi o que você disse lá dentro. Você gritou bem alto. Ninguém vai acreditar em você, porque você não é daqui.

— E você acredita em mim?

— Meus amigos me contaram uma história de crianças perdidas dentro do pântano. Crianças que também não são daqui. O homem mau manda elas pra serem castigadas.

— Castigadas pelo quê?

— Eu não sei, são só histórias — ela ia saindo. Saltitando e cantarolando uma música que soava fantasmagórica. Me chamou sem olhar para trás.

Uma voz dentro de mim dizia que eu não deveria seguir, mas aquela era a única pista para encontrar meu filho. Acompanhei ela pelo que pareceu uma eternidade. Até que parou de repente.

— Qual é o nome do seu filho mesmo?

— Pedro. O nome dele é Pedro.

Ela ficou pensativa por alguns instantes antes de continuar, apontando numa direção com seu dedinho pálido.

— O lugar é por ali. Eu não posso ir. Você vai reto nessa rua, no final tem uma floresta, no fundo dela tem o pântano. É o que me disseram, mas eu nunca fui até lá — ela sorria. — Se o Pedro não estiver lá, e eu ver ele, eu digo que você está aqui.

Eu não consegui responder. Ela também não esperou. Deu meia-volta e saiu saltitando.

No fim da rua, uma floresta densa se erguia, consumindo quilômetros adiante. Suas árvores eram altas e antigas. Haviam troncos caídos. Sons de madeira se quebrando, pássaros grasnando, e algo que se assemelhava a um choro melancólico, mas não um som humano. A luz do sol mal penetrava entre as folhagens. Eu me esforçava para andar em linha reta, mas tudo era muito igual. Pensei ver algo se movendo a alguns metros, e comecei a chamar por Pedro. Poderia ser ele, não é mesmo? Seja lá o que fosse, correu rápido. Ainda mais para dentro da floresta, onde as árvores ficavam mais próximas umas das outras e um fedor pútrido queimava as narinas. Continuei chamando pelo meu filho. “Pedro! Pedro!” Andando em círculos. Me senti tonta. Fraca. A voz embargava, com o nó se formando no fundo da garganta. Caí no choro. Eu nunca mais veria o meu filho, ficaria presa naquele pesadelo para sempre.

Deixei a tristeza me consumir, deitada no chão lamacento. Foi quando um imenso urubu preto pousou logo acima de mim e atirou um galho na minha direção. Eu o encarei. Seria um carniceiro meu carrasco afinal? Ele grasnou um som gutural. Voou parando logo mais a frente, grasnando novamente em minha direção. Pode parecer loucura, eu sei, mas achei que ele queria que eu o seguisse. Então o segui. Perto de um amontoado de pedras mais altas do que eu, tive novamente a impressão de ver algo correndo. Dessa vez fui até lá. Não havia nada. A coisa então passou correndo logo a frente. E nessa “brincadeira de esconde-esconde”, segui tropeçando nas raízes tortuosas que se espalhavam aqui e ali, até que desapareceu de vez.

Ouvi um grito, seguido de choro. Era a voz do meu Pedro. Chamei por ele, tentando descobrir de que direção vinha sua voz. Por um momento houve silêncio. Mas minha alma se iluminou ao ouvir um claro som de “mamãe, mamãe, socorro”. Corri na direção da sua vozinha frágil, tropeçando e caindo algumas vezes. E lá estava ele. Um velho barrigudo, de cabelo ralo e pernas finas, arrastava meu filho pelo braço. Eu avancei sobre ele. O homem era forte e acertou minha cabeça com um galho pesado. Durante o confronto, Pedro conseguiu se desvencilhar do homem e se esconder. O velho se virou para ir atrás dele. Mesmo caída no chão, com a vista embaçada pelo sangue que escorria pela testa, agarrei o cambito com a força que me restava. Do cinto, ele retirou uma faca e sorriu sem dentes. Tentei rastejar para trás, mas o ser monstruoso já se dobrava sobre mim. Estava disposta a morrer, desde que meu filho estivesse a salvo. Precisava lutar para libertá-lo daquele limbo. Quando já aceitava a ideia de uma cova rasa no meio do pântano, ouvi aquele grasnado rasgar o vento. O urubu avançou sobre o velho, cravando suas garras enormes no buranco onde deviam estar os olhos. O homem se debateu. A ave permaneceu sobre ele. Feroz e implacável. Até que o velho parou de se mover. O urubu então voou para uma pilha de troncos caídos e grasnou uma última vez, antes de alçar voo rumo à luz do sol. Escondido ali, meu pequeno chorava, todo encolhido. Cada centímetro do seu corpinho convulsionava. Prometi nunca mais deixá-lo. Agradeci aos céus por tê-lo encontrado.

Buscamos a saída da floresta, abraçados, prestando atenção no caminho com medo de nos perder ainda mais. De alguma forma lá estava ela, a saída. A rua e o sol pálido. Passamos por várias pessoas que fingiram não notar nossa presença. E outras, que nos encaravam com escárnio, apertando seus lábios finos, abaixando as sobrancelhas como bulldogs. Alguém me puxou pelo braço fazendo meu coração saltar. A garotinha do sorriso horrível.

— Você deve ser o Pedro — ela disse ao meu filho, que apenas assentiu com a cabeça —, que bom que sua mãe te encontrou. Agora vocês podem ir embora.

— E você sabe me dizer como sair daqui?

— Não sei, mas a vovó do Manu sabe. Vem!

A menina parou em frente a uma casa, nos mandou esperar e entrou. Lá de dentro, vinha arrastando os pés, a senhora que eu havia abordado mais cedo. Veio até mim, virou o rosto na minha direção, depois na direção do meu filho e disparou cuspindo:

— Ora! Volte por onde veio, não é óbvio?

Me deu às costas e bateu a porta. Não queria voltar àquela casa, mas ela era nossa saída.

Em frente ao cômodo do qual eu havia saído, parei, abracei meu filho e ordenei que não soltasse minha mão por nada. Passando para o outro lado da porta, nos encontramos naquele maldito quarto, com toda aquela gente demoníaca nos encarando, com seus olhos coloridos bem colocados em suas órbitas.

M Baumer
Enviado por M Baumer em 07/06/2023
Código do texto: T7808199
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