A Marca do Lábio

Célia estava bastante animada. Terminava de fazer o jantar, a refogar alguns legumes em uma panela, a bebericar o Cabernet que estava em uma taça e a dançar ao som de Tina Turner. Nesse ínterim, Augusto arrumava a gravata defronte ao espelho. Queria mostrar-se apresentável naquela ocasião que, pensava ele, era bastante especial para a esposa.

Não demorou muito, Célia havia terminado de preparar a ceia. Engolira o conteúdo da taça e se dirigira ao quarto, onde o marido estava a terminar de se aprontar.

– O jantar está pronto. Rodolfo está a caminho – exclamou ela, muito entusiasmada com o acontecimento.

A casa parecia esmerada como se para uma efeméride. Havia um tom amarelado nas luzes que parecia trazer leveza a todos os ambientes da casa; as loiças brilhavam e tal luminescência dava um requinte muito peculiar a elas.

– Tomarei um banho antes que ele chegue – anunciou Célia, ainda a bailar.

Augusto colocara o colete e ajeitara o anel de casamento no dedo anular. Estava pensativo, a observar-se ao espelho. Há semanas Célia lhe falava sobre o tal Rodolfo. Ele jamais demonstrou incômodo sobre todas as adulações a que Célia adjetivava o outro. Deu de ombros, a olhar-se nos olhos pelo espelho. Sentou-se à cama, a afastar o paletó do terno para não amassá-lo. Abriu a gaveta da mesa de cabeceira, começou a vasculhar o conteúdo e, dali de dentro, sacou um porta-retrato com uma foto que tirara com Célia havia oito anos. Pensou ele na quantidade de tempo que viviam e passavam juntos até ali. Aquela ocasião era, para si, uma novidade. Sempre achou Célia uma mulher de gostos exóticos e de uma personalidade firme que não lhe outorgaria de jeito maneira querer impedi-la de quaisquer atitudes que fossem. Até a admirava por isso.

Colocou a foto sobre a mesa. Ambos estavam sorridentes. Quando deu por si, a campainha tocou. O barulho da água que caía do chuveiro cessou e ele levantou-se prontamente. Colocou rapidamente o paletó e dirigiu-se novamente ao espelho, para um último ajuste da gravata.

– É Augusto – exclamou Célia, contente como se esperasse um prêmio.

– Vou abrir a porta – redarguiu o marido, secamente.

Augusto dirigiu-se à porta. Girou o molho de chaves que comumente jazia ali dentro da fechadura. Nunca tinha prestado atenção ao tilintar das chaves quando costumava abrir a porta. Estava atento a todos os detalhes. Logo, abriu-a.

Deparou-se ele com uma figura quase o dobro do seu tamanho e de uns dez anos menos que ele. Entreolharam-se em silêncio por alguns instantes e, quando voltou dos escombros de suas ruminações, Augusto invitou-o a entrar.

– Obrigado – disse aquele homenzarrão de voz estridente, que trazia consigo um champanhe, a parecer um galã de filme francês. Tinha um quê de Omar Sy.

– Sente-se, acomode-se – agraciou Augusto, a ver que o terno que o outro vestia era bem mais caro que o seu e a escolha da gravata combinou perfeitamente com o traje. Lembrou-se ele que Célia tinha sim um bom gosto.

Rodolfo adentrou o apartamento com passos firmes – como se já conhecesse o ambiente. Sentou-se à poltrona de Augusto – aquela com que ele passava horas a ler seus livros ou a assistir a seus filmes. Augusto sentiu uma leve irritação ao ver a cena, porém não quis desagradar o hóspede. Pegou a garrafa de champanhe, dirigiu-se à cozinha – a aguardá-lo na geladeira e volveu à sala. Fitou o homem em sua poltrona com certa raiva. Caso houvesse um entrevero entre ambos, pensou ele, certamente seria ele a vítima fatal da agressão física.

- Uísque? – perguntou ele, a tentar se recompor.

- Só uma pedrinha de gelo – respondeu o outro, a cruzar as pernas.

Sob aquele seu traje muito mais barato que o do rapaz, dirigiu-se à adega da sala com bastante insatisfação. Será que aquele homem pensava que ele era o empregado da casa?

Serviu dois copos. O dele, sem gelo. Queria impressionar o convidado.

– E você trabalha com o quê? – perguntou Rodolfo, meio impressionado com a pergunta. Será que Célia nunca havia mencionado que ele trabalhava lecionando?

– Sou professor em uma universidade na cidade vizinha – respondeu Augusto, a beber o conteúdo do copo. Certamente mentia: dava sim aulas, porém em uma faculdade pequena, sem muito prestígio, em um bairro afastado dali. – E você?

Rodolfo engasgou-se com o primeiro gole de uísque. Augusto pensou que talvez estivesse o outro a tentar impressioná-lo também.

– Sou produtor cultural – disse. – Conheci Célia em um evento no teatro. Ela não te contou?

Célia certamente tinha contado. Não mentia a Augusto – e ele sabia. Via verdade no fundo dos olhos dela. Somente há algum tempo vinha ela segredando-lhe algo que não sabia. Porém, só não sabia ele que Rodolfo era duas vezes quase o seu tamanho e muito mais jovem.

Em um momento de interregno no diálogo dos dois homens, Célia apareceu na sala. Toda maquilada, sob um vestido escarlate que lhe valorizava as curvas, um batom bastante avermelhado que parecia deixar seus lábios mais carnudos que o normal, parecia a encarnação de uma deusa. Estava belíssima.

– Como vai a conversa? – inquiriu ela, a também encher um copo de uísque.

– Célia, você vai se embriagar deste jeito – exclamou Augusto. – Não bebeu vinho ainda há pouco?

– Foi só uma taça – redarguiu ela, prontamente. Então, sorriu a Rodolfo, a beijá-lo no rosto – deixando ali a marca de seus lábios.

– Você está deslumbrante – exclamou Rodolfo, com os olhos brilhantes.

Augusto sentiu um certo ciúme – mais pela atitude elogiosa de Rodolfo para com sua esposa que com a adulação em si. Aliás, a primeira coisa que ele fizera fora repreendê-la por receio de sua condição alcoólica.

– Sei que temos muito que conversar, rapazes – disse ela, sorridente, a deixar evidenciar a alteração de seu falar por conta da quantidade de álcool que bebera –, mas temos que jantar. Fiz legumes refogados e ravióli. Estão uma delícia.

Os dois homens dirigiram-se à sala de jantar e sentaram-se. Célia fora à cozinha. Eles estavam silentes. Augusto já tinha bebido todo o uísque enquanto o gelo no copo de Rodolfo derretia lentamente. Célia trouxe as panelas à mesa. Subitamente, Rodolfo levantou-se e ofereceu-se:

– Vou ajudá-la – exclamou. Os dois dirigiram-se à cozinha. Augusto permanecia em silêncio à mesa: a contemplar os talheres, as panelas recém trazidas e o seu copo vazio.

Os dois pareciam demorar tempo demais para buscar pratos e guardanapos. Quando Augusto hesitou levantar-se, apareceram com os objetos – Rodolfo – cujos lábios pareciam mais escarlates que antes – com os pratos e Célia – cujos cabelos pareciam um pouco desgrenhados – com taças, uma garrafa e vinho e guardanapos. Augusto abriu o vinho mui rapidamente e despejou o conteúdo à taça. Parecia incomodado. Não demoraram muito e todos puseram-se a comer.

Em determinado momento, sob um diálogo recheado de frases oriundas de Rodolfo e Célia, a última levantou a questão da noite.

– Todos sabemos aqui que o único monogâmico é você, Augusto – a dirigir-se ao marido depois de uns quantos minutos. – Mesmo assim, eu te amo e, como meu primeiro marido, quero anunciar que Rodolfo e eu também pensamos em nos casar.

- Eu posso vir só aos finais de semana – desculpou-se Rodolfo, como se atitude tivesse de ter sido originada de si, não de Célia.

Mais aliviado, Augusto decidiu:

– Discordo! – a bater com a mão à mesa. – Se pensam em se casar, é direito do marido... – então, corrigiu-se – do futuro marido viver junto da futura esposa!

Maravilhados, Célia e Rodolfo se entreolharam com ternura. Tudo havia dado certo. Não receberiam rejeição por parte de Augusto. A Célia também lhe apetecia encher Augusto de predicativos – sua cordialidade era entusiasmante.

– Todo esse suspense para me dizer que queriam se casar? – perguntou Augusto, descontraído. Chegou até a soltar algumas piadas para quebrar o clima bastante enigmático e sombrio que se havia instaurado antes.

– E tem mais... – anunciou Célia. – Eu tenho mais uma coisa para falar.

– Pois bem, se for algo relativo a valores do matrimônio, cartório, igreja, entre outros, melhor que conversemos na sala! – disse Augusto, imperativo.

– Vou ao banheiro – disse Augusto, retirando-se, a desabotoar o terno e tirá-lo. Parecia ter ficado mais à vontade. Célia percebeu-o ir em direção ao quarto.

Retiraram a mesa e dirigiram-se Célia e Rodolfo à sala. A boa esposa – a sentir-se mais confortável – sentou-se ao colo do futuro marido. De todos os namorados que levara para seu marido conhecer, Augusto agira mais estranho para com este último.

Augusto voltou, a ouvir o assunto dos dois – que era relativo ao casamento que deviam planejar – e a encher novamente um copo de uísque. Desta vez, o casal estava no sofá – a demonstrar uma intimidade estranha a Augusto – e ele sentou-se em sua poltrona preferida.

– Aliás, minha querida – assim se dirigia à Célia em momentos mais dóceis de sua existência –, o que gostaria de dizer e eu lhe interrompi?

Célia abriu um sorriso. Saiu do colo de Rodolfo e sentou-se ao sofá. Parecia entusiasmada. Será que anunciaria uma lua de mel a três? Antes de contar, ainda vislumbrou o rosto de Rodolfo, a beijá-lo com ternura e anunciou:

– Estou grávida de três meses – berrou, a demonstrar uma alegria contumaz.

Sem hesitar, Rodolfo dirigiu-se à cozinha e levou à sala o champanhe que havia trazido. Estourou a tampa e encheu três taças. Contudo, dois disparos lhe acertaram precisamente o peito e a testa. Ele caiu; a garrafa esvaziou sobre o tapete.

Horrorizada, Célia deu um grito aterrorizante. Ao vislumbrar Augusto, percebeu um revólver – desconhecido por ela, porém guardado com esmero em um fundo falso da mesa de cabeceira de seu quarto – em sua direção.

– O que você fez? – gritou ela, a chorar copiosamente. – O que você fez?

– Eu aceito tudo, Célia – exclamou ele. – Menos traição!

– Você sempre soube, Augusto! Sempre soube!

– Eu sou oco, Célia – exclamou ele. – Oco! Esse filho não é meu!

E disparou por mais quatro vezes – a acertar em cheio o globo ocular – que explodira por vários cantos da sala, o peito, a barriga – onde um feto estava a se desenvolver – e o braço direito. A sala de estar estava vermelha de sangue.

Augusto terminou de beber seu uísque e bebeu uma das taças de champanhe – a que fora posta para si. Fitou a marca do lábio de Célia no rosto do falecido futuro marido. Pegou a chave do carro de sobre um móvel, girou o molho de chaves que jazia na fechadura – a ouvir seu tilintar como se fosse uma orquestra – e saiu porta afora para sempre.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 05/06/2023
Reeditado em 05/06/2023
Código do texto: T7805713
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