A FAZENDA MAL ASSOMBRADA.
Eugênio estacou. Os olhos arregalados. O estilingue caiu de sua mão. -"Caraca. Quanta goiaba." Os olhos brilharam ao ver a fileira de goiabeiras carregadas de fruta madura. O moleque de treze anos salivou e se agarrou ao embornal. A casa grande no alto. A fileira de oito casas da colônia da fazenda Taquara Branca. A serra do Enforcado ao fundo. O moleque foi até a porteira. -"Entra logo." Ele se virou e viu outro garoto de sua idade. O negrinho descalço e de roupas remendadas sorriu. -"Veio roubar goiabas?" O outro garoto apontou para as goiabeiras, ao lado da fazenda. Eugênio respondeu afirmativamente, balançando a cabeça. Os dois cães da fazenda vieram latindo, levantando poeira da estradinha de terra que levava a sede. Eugênio quase molhou as calças de medo e subiu na porteira. O outro riu. -"Tá com medo desses pulguentos?" O garoto gritou. -"Rex, Lulu, vão dormir." Os cães pararam diante do garoto e murcharam as orelhas. Eles voltaram correndo até a casa grande. -"Viu? Não pode ter medo. Eu mando aqui." Eugênio estava admirado. -"Uau, você é bom." -"Isso aí, sou bom. Gostei de ouvir isso. Meu nome é Renato." Eugênio riu. -"Não tem cara de Renato." -"Ué?! Porquê não? Renato é nome de rico. Minha mãe me deu esse nome em homenagem ao primo do coronel Agripino, que estudou na Europa e virou dotô." Eugênio riu. -"Doutor, você quer dizer. Conheço todos os meninos da região. Você nunca vi por aqui." Eles passaram pela casa grande, observados pelos cachorros, encolhidos junto a varanda. -" Nunca fui a escola. Tenho que ajudar na roça da cana de açúcar. Moro aqui perto. Você tá com estilingue, pra matar passarinho mas o embornal tá vazio. Não deve ser bom de mira , garoto. Vamos encher seu embornal de goiaba? As frutas da fazenda Taquara são as maiores e mais gostosas da região, sabia?" Eles chegaram até as goiabeiras. Renato deu um salto e logo estava no alto da goiabeira. -"Tem um pé de branca, logo alí. O bom de comer goiaba branca é que não dá pra ver os bichinhos." Eugênio concordou. -"De fato mas prefiro as vermelhas." -"Minha vó Anastácia faz doce de goiaba, no tacho de cobre. Coloca em potes e vende na feira de Parnaíba." Eugênio estava se fartando. -"Anastácia? Sua avó tem o mesmo nome da cozinheira do Sítio." -"Que sítio?" Renato devorava goiabas. -"Não assiste o Sitio do Pica Pau Amarelo na televisão? Tem a Emília, a Narizinho, o Pedrinho e o Visconde de Sabugosa. A cuca e o saci." -"O que é televisão? Você fala palavras que desconheço. Essa gente toda que falou, não conheço. Cuca e saci, eu já vi." Eugênio o encarou. -"Já viu? Assim, de verdade?" -"Sim. Eu pegava saci na peneira, com meu amigo Ubirajara. A gente vinha aqui roubar goiabas." Renato olhou fixamente para o outro garoto. -"Temos que ir. Vai chegar gente daqui a pouco. Não está ouvindo o motor do carro do coronel? O filho dele, o Joaquim, é um trem danado de ruim. Um demônio." Renato pulou para o galho de baixo, o que fez com que sua camisa se levantasse. Eugênio notou as cicatrizes nas costas do outro. -" Esses vergões nas suas costas, doem? Você deve ter feito muita arte." Renato riu. -"Que nada, a mãe bota sal e borra de café com mastruz. Só fiz umas coisinhas aqui e ali, coisa de criança. Molecada tem que se divertir mesmo, amigo. Vamos embora. O coronel não pode nos ver aqui." Renato desceu. Eugênio teve dificuldade de descer do galho, com o embornal cheinho. Eles passaram pela porteira. A encruzilhada a frente. -"Eu vou pra esquerda, pra direção da vila de Santa Luzia." Disse Eugênio, suado mas feliz. -"Eu moro atrás do morro. Tô sempre por aqui." Um outro garoto, longe deles, gritou. -"Renato? Vamos nadar na cachoeira?" O negrinho se virou. -"É o Bira
me chamando. Engraçado, vocês dois até que são meio parecidos. Até mais." Renato correu até o outro menino. Uma hora depois, Eugênio abriu o portão de sua casa. -"O Beto o procurou. Tinham trabalho de escola juntos. Cheguei cedo do trabalho." Eugênio tirou o suor da testa. -"Eu ligo pra ele depois, pai. Olha, quanta goiaba." Luciano pegou o embornal. -"Goiabas assim, só têm na fazenda da Taquara Branca. Você foi lá sozinho? É muito longe da vila." -"Fui sim." Eles entraram. -"Eugênio Henrique Fagundes, já pro banho." Ele obedeceu. Quando a mãe falava seu nome completo era porquê estava irritada. -"Ele foi na fazenda mau assombrada. Sozinho." Luciano pegou uma goiaba. María de Fátima tirou o avental e sentou-se ao lado do esposo. A mulher deixou uma lágrima escorrer. Luciano olhava fixamente pra goiaba. -"Uma hora ele tinha que ir lá, não? Esse povo da vila fala demais, as histórias chegam até às crianças. A gente disfarça, fala que é invenção, lenda." Eles se deram as mãos, carinhosamente. -"Minha mãe trabalhou naquela fazenda, morou na colônia." Luciano botou a mão no ombro dela. -"E eu, que nasci lá. Quanto tempo não vou naquele lugar, umas trinta anos ou mais?! Pelo jeito as goiabeiras estão carregadas. Eu ia muito lá, levado por papai." Um vento frio entrou pela janela, sacudindo a cortina. -"Meu pai contava que o bisavô Bira ficou morando lá, depois que o negrinho Renato morreu no tronco, açoitado até a morte pelo filho do coronel Agripino." -"Isso foi um pouco antes da abolição. Será que o Eugênio viu alguma assombração lá?" Luciano, arrepiado, encarou a esposa. -"Certamente. Ninguém entra lá, com aqueles cães bravos dos novos donos da fazenda, que está vazia e sai com tanta goiaba assim." FIM