A Presença
Naquela noite lúgubre de domingo, Luiz não se sentia mais potente para a vida terrena. Vasculhou sua prateleira de livros empoeirados, puxou um de Dostoiévski e colocou-o sobre a mesa de centro da sala. Dirigiu-se à pequena adega disposta em um canto do recinto, abriu suas portas e escolheu o uísque com o maior teor alcoólico. Despejou parte de seu conteúdo em um copo sujo, duas pedras de gelo e retornou à sua poltrona – onde em dias mais animados assistia ao futebol com certa desesperança em relação ao seu time de coração.
Foi então que percebeu uma figura masculina, mascarada, sentada no sofá do outro lado. Como quem não esboçasse nenhum temor por aquela presença, ofertou:
- Uísque?
Do outro lado, em um tom calmo e a deixar perceber a respiração notável sob a máscara, o Outro redarguiu:
- Não, obrigado. Não me apego às pulsões de morte para dar sentido à vida.
Luiz riu, descontroladamente, a dar uma enorme golada no uísque.
- Por que buscar sentido em algo que não há sentido algum?
O Outro não respondeu.
- O vazio da existência se satisfaz por meio das pulsões de morte!
Fazia um silêncio estranho no interior do apartamento. Havia um clima de suspense no ar. Contudo, ambos pareciam imobilizados, catárticos, um com a presença do outro. Luiz novamente interrompeu o silêncio.
- A que devo a tua estimada presença?
- Só vim ver como você está.
Silêncio. Luiz bebericou o uísque. Tomou o livro e tentou refazer a leitura do ponto em que parara a última vez que o pegara.
- Vejo que você é incólume; não muda.
- Continuo alimentando meus demônios com uísque – replicou ele, visivelmente incomodado pelo fato de ter interrompida sua leitura recém-iniciada.
Uma curiosidade o acometeu subitamente.
- De onde nós nos conhecemos? Parece-me familiar, apesar de usar essa máscara ridícula sobre o rosto...
- Conhecemo-nos de muito tempo, Luiz. Mas não vou ficar explicando o óbvio.
- Ele também é filho de Deus.
Esvaziou o copo de uísque. Levantou-se novamente em direção à adega e levou a garrafa para a mesa de centro.
- Conheço todas as suas perversões – disse o Outro.
- Minha maior perversão é o álcool – replicou Luiz, a encher o copo novamente.
- As perversões devem ser solapadas pelos impulsos vitais: a busca pela felicidade, a satisfação, o desejo insaciável de progredir...
- Já não me atenho a esses impulsos pós-modernos. Aguardo a morte ansiosamente. Porém, ela me tem evitado.
- Gosto como fala. Você deve ser um dos últimos intelectuais...
- Não me venha com isso! Os intelectuais deverão ser instintos em cinco ou dez anos! Eu tenho, sim, pena deles!
O Outro pareceu incomodado com tal afirmação. Não havia em Luiz quaisquer sinais de esperança. Era um homem solitário que morrera em vida! Levantou-se e dirigiu-se, em silêncio, ao espelho que ficava disposto na sala. Sua imagem não aparecia – algo que não fora percebido por Luiz – cuja embriaguez começava a tomar conta de seu corpo.
Ele fechou o livro e contemplou o Outro – que estava a alguns metros de distância de si. O silêncio promovido no ambiente pelos dois era ensurdecedor.
- Por que não tira a máscara? – inquiriu ele, em tom desafiador. Entretanto, fora desafiado de modo abrupto pelo Outro:
- Por que quer que eu revele meu rosto? Parte crucial da identidade de alguém é o rosto. E se o meu for inumano? E se eu for cá uma criatura abominável às quais o horror que te acometeria te causaria um espanto infinito?
- Só temo a mim mesmo – respondeu Luiz, indiferente.
Contudo, tal indiferença não escondia o fato de que começava a temer aquela presença misteriosa em sua casa. Não percebera quando entrara, se notara-o entrar na sala, escolher o livro e encher o copo com uísque. E se o estivesse a observar por muito mais tempo? O que era aquilo que começava a apavorá-lo?
Ademais, a visão embaçada causada pela embriaguez pouco ou quase nada fazia-o perceber a silhueta – se era humana – do Outro. Tampouco recordava-se dos poucos momentos de lucidez em que começaram a dialogar. A sua noção do horário já havia sido perdida. Estariam conversando por minutos ou por horas ou por dias?
Ele tentou demonstrar coragem mais uma vez – após um longo e contemplativo silêncio. Deu uma nova golada, a sentir o conteúdo do copo descer pela sua garganta. Ao vislumbrar o outro lado do recinto, havia só ausência. O Outro tinha desaparecido.
Vasculhou cada canto daquele apartamento: os quartos, o banheiro, a cozinha, a sala, sob os tapetes, detrás das cortinas, dentro dos armários. Nada. Nenhum vestígio de que alguém mais estivesse ali. Sua embriaguez tinha levemente ido embora. Estava confuso. Foi tomado de um terror profundo – tudo o que precedera parecia muito real. O que estava a se passar?
Foi ao banheiro, lavou o rosto. De dentro de um móvel, puxou suas aspirinas e seu Lexotan. Engoliu-os todos a seco.
Deitou-se na cama, a deixar todas as luzes acesas – vide o terror pelo qual ainda estava passando. Não podia conceber que aquilo fora fruto de sua imaginação. Estaria ele alucinando? O sono, após muita insistência, chegou. Dormiu profundamente.
De repente, fora acordado com uma respiração sobre o seu rosto. O Outro estava sobre si, sob uma forma etérea, inumana. Ao tirar a máscara, percebeu ele que contemplava o próprio rosto. Um duplo. Uma coisa maligna. Sentiu sua alma desprender-se de seu corpo físico e, sugada, a desaparecer naquela Outra presença que não era a dele.