Deixados para trás - CLTS 23
Prólogo
Durante a quarta guerra mundial a tecnologia já tinha avançado de forma absurda, em quase todas as áreas do conhecimento, no mundo todo, tanto para o bem quanto para o mal. Mas coisas simples como misericórdia, caridade, altruísmo não faziam mais parte do cotidiano dos seres humanos. Se matava por matar, para conseguir o que comer, beber ou por um palmo de terra. Grandes cidade, sinônimo do progresso exacerbado de todos os países modernos, agora eram entulho, escombros e trevas. Os motivos do início do conflito, já se perdiam no esquecimento, só havia um objetivo a todos os que ainda respiravam; sobrevivência.
Pessoas não eram mais do que animais ou mercadoria. Não importava nacionalidade, cor da pele, gênero, origem ou religião. Tudo se resumiu a lei do mais forte.
Alguns poucos lugares, ainda restavam o que antes era chamado de civilização. Eram espelhos que refletiam de forma distorcida, outros tempos do auge da humanidade. Esses locais viviam dos restos do mundo destruído, pelos conflitos.
Um mundo destroçado pelos seus governantes, que só visavam o lucro...
***
O cheiro da morte estava por todo lugar, horas mortas a velha Kombi avançava pelas ruas cobertas de entulhos, onde antes tinha sido uma das maiores cidade do país, agora havia somente uma mistura de poeira, fumaça e caos. Paravam as vezes para remover algum obstáculo, que obstruía o caminho.
O barulho do motor do veículo na madrugada chamava a atenção dos seres das trevas, que estavam a espreita.
Do lado direito da estrada podia se ver um volumoso monte, com uns quatro metros de altura, que a escuridão não permitia distinguir o que era ao longe.
Um amontoado de corpos mortos deixados para trás. Uma cena, que nenhum ser humano deveria presenciar. Pés, braços e pernas retorcidos e quebrados de todas as formas possíveis. Roupas e cadáveres chamuscados. Crianças, velhos, mulheres e jovens formavam uma massa disforme. Vermes rastejavam por cima e por baixo das carcaças de pele, carne e sangue. Uma turba de ratos cinzas se banqueteavam junto as infinitas moscas, e até brigavam por pedaços de intestinos. A pele dos defuntos tinha uma textura pegajosa, outros tinham a parte do corpo carbonizada, podiam se ver vários buracos feitos por urubus durante o dia em todas as partes. O vento passava por cima daquela cena dantesca e arrepiava os pelos dos roedores. Em alguns momentos o chão tremia devido aos disparos de artilharia próxima dali. Escombros e entulhos rodeavam todo o setor. Mesmo com o barulho, os homens podiam ouvir o movimento contínuo das larvas e o mastigar dos ratos. Um líquido preto escorria pela rua como se fosse uma gosma. Um dos ratos conseguiu tirar um pedaço de tripa da boca de outro parente seu, e saiu correndo ligeirinho para uma toca próxima dali. Um dos pequenos malditos ficou preso e foi soterrado por uma carcaça que caiu sobre ele. Alguns dos finados tinham as barrigas inchadas, que estouravam e exalavam um odor pútrido e fétido. Um cheiro de carne assada no ar. Tudo ali fedia. Podiam se ver órgãos à mostra e ossos descarnados. As vísceras estavam a mostra. Tinham olhos gelatinosos, vazios e sem vida.
Os dois homens ainda vomitavam. Quando o robô que vinha sentado no fundo do veículo por piedade pegou um pouco de combustível do tanque, pedaços de madeira e ateou fogo em tudo. Com uma enorme coluna de fumaça preta e fuligem atrás, ele seguiram em frente.
Seguindo a sua viagem insólita, mais ao longe os dois homens e o robô avistaram um prédio de quatro andares que as bombas não atingiram. O carro parou em frente e eles desceram.
A inusitada equipe olhava pensativa para o prédio residencial sobrevivente, aquele edifício ficar ileso num lugar destruído, era um tanto inexplicável.
– Vamos entrar, talvez tenha algo pra comer lá dentro. Disse André.
Cláudio concordou com um aceno de cabeça e falou com o robô:
– Boa ideia, Joe. – ele apontou para o robô – você fica aqui fora de olho no movimento.
O autômato concordou sem questionar as ordens. Os dois entraram no edifício e vasculharam com suas lanternas vários apartamentos, cada um tinha um saco que enchiam com coisas que lhe podiam ser uteis.
Conseguiram algumas latas de conserva, numa cozinha abandonada. Coisas de pouco valor, largadas para trás as pressas e outras bugigangas.
Ao entrarem em um dos apartamentos se viram diante de uma verdadeira capsula do tempo com móveis e eletrodomésticos antigos cobertos de poeira. Nesse apartamento eles entraram num quarto, que lhes chamou a atenção.
Do nada surgiu na frente deles um ser pálido e fantasmagórico, os dois homens foram tomados de medo e pavor. Até seus espíritos tremiam diante de tal aparição.
Ambos fugiram em desespero gritando e correndo pela rua(no melhor estilo Scooby-doo e Salsicha) e até se esqueceram do robô que estava parado na frente do prédio.
O robô vendo os dois correndo ficou intrigado e decidiu entrar no edifício. Ele chegou até o quarto, de onde os dois homens fugiram apavorados.
O quarto era outro mundo, parado no tempo. Uma estante repleta de livros, revistas sobre um criado-mudo, discos de vinil em baixo de um velho aparelho de som e um gravador de fitas cassete sobre a escrivaninha.
Repentinamente surge o ser assustador saindo da parede e indo em direção ao robô, gritando e gemendo de forma apavorante.
Joe nem se mexeu. O fantasma ficou intrigado e perguntou:
– Você não tem medo de min?
– Não! Era pra ter medo? Perguntou o robô com indiferença, enquanto olhava a tela de cristal líquido no seu antebraço.
– É claro, eu sou um fantasma!
– É sério? – disse o robô com a voz de timbre metálico – e por que sua alma, espírito, ou sei lá o que, que os humanos falam, não foi pro além ou lugar de descanso eterno?
– Eu estou preso a esse mundo porque sou muito apegado as minhas coisas materiais que tive em vida, e só vou descansar quando elas tiverem um destino apropriado. Dizendo isso, a assombração ia tomando uma forma mais agradável aos olhos.
– Você está falando dos livros, discos e tudo que estão aqui nesse quarto? Perguntou o autômato tentando entender.
– Sim. Tudo isso foi meu em vida. Mas nessa forma espectral, eu não posso ler os livros e revistas por não poder folhear as páginas e nem posso colocar os LPS na vitrola – o fantasma olhou mais atentamente para o robô e perguntou – o que você é? – Tem forma humana mais não é uma pessoa.
– Eu sou um robô.
– Um robô! Como nas histórias de ficção científica? Viagem no tempo e teletransporte também já existem?
– Essa duas hipóteses são fisicamente impossíveis, viajar no tempo somente para o futuro, em altíssimas velocidades. Qualquer ser vivo morreria ao tentar tais coisas. – o robô olhava o espectro, sem acreditar – Nós estamos no ano de 2070. Quando você morreu?
– Faleci em 1980. Fui atropelado por uma gangue inimiga.
A máquina agora olhava de forma mais atenta para o fantasma que não estava em uma forma com o objetivo de amedrontar, viu que ele tinha uma aparência jovial, usava botas do exército, calça jeans rasgada e cabelo espetado.
–Você era punk, quando era vivo?
– Sim. Eu e meus amigos tínhamos uma gangue, ainda existem punks?
– Sim. Ainda existem.
O espectro tentou tocar nos seus discos, mas não teve êxito.
– Você pode colocar um disco para eu escutar?
Joe fez uma análise do aparelho.
– O toca discos não funciona, mas eu posso reproduzir a música que você quiser no meu sistema de áudio.
– Como assim? Você vai tocar o LP sem o toca discos? Perguntou o incrédulo fantasma.
– Eu vou baixar a música na internet pode escolher o disco.
– Inter o que?
O robô explicou de forma simples a respeito da internet deixando o fantasma mais descrente a respeito do mundo moderno.
– Eu quero ouvir esse disco da capa amarela, por favor(NEVER MIND the bollocks here’s the SEX PISTOLS), era o que estava escrito na capa.
O Autômato se sentou enquanto o espectro flutuava. A música preencheu o ambiente. Para o fantasma, foi como se a agulha tocasse o vinil novamente. O fantasma dançava e atravessava as paredes por todo prédio em êxtase.
Depois das músicas e de mais algumas leituras ao longo da noite, o fantasma fez mais um pedido.
– Você pode ficar com minhas coisas? E dar um destino digno para elas, para minha alma descansar em paz?
– Vou levar para o local de reconstrução da cidade, será de muita utilidade.
– Reconstrução? O que ouve com a cidade aqui?
– Não existe mais cidade, aqui, as bombas destruíram tudo, poucos lugares estão de pé como este prédio onde estamos.
– Bombas? Guerra? Eu ouvi e vi essas explosões. Guerra dos homens contra as máquinas?
– Não. Guerra dos homens contra homens, como sempre! – o robô se levantou e disse: – cuidarei de suas coisas com prazer.
O autômato enquanto colocava tudo na Kombi pensava “onde foi parar aqueles dois idiotas com aquela correria”. Livros, discos, revistas e fitas cassetes foram guardados junto com os aparelhos, com bastante zelo.
O robô voltou ao quarto uma última vez para se despedir, o fantasma agradeceu e com um sorriso no rosto desapareceu no ar como fumaça.
De volta ao transporte a surpresa do autômato foi impactante, ele estava diante de uma multidão de fantasmas a sua espera. Com sua estranha voz, Joe disse:
– Parece que vou ter bastante trabalho!
TEMA : ESPÍRITOS