Prato Frio - CLTS 23

As lágrimas escorriam e pingavam no fogão.

“Olha mamãe! Eu sou um porco! Onde é que eu tô?”

Aquilo aconteceu mesmo?

Durante os últimos 20 anos ela tentara ao máximo se adaptar à mão esquerda, mas sempre se queimava, ou se sujava, enquanto o coto do braço direito se movia de maneira desordenada, como se a mão invisível quisesse amparar a irmã em suas atividades desajeitadas. Centenas de queimaduras, mas ela insistia em cozinhar, sempre a acalmava fazê-lo. A panela de pressão fumegava em seu som de locomotiva, as duas frigideiras estalavam com os ovos e o frango que Camilo havia exigido, depois de beliscá-la com as unhas com força assim que entrara em casa, dizendo que mais tarde “a calabresa e o bacalhau” se encontrariam, e que ela fosse tomar banho pra tirar a inhaca. O cheiro de uísque e cigarro era nauseante em seu hálito. Eleonor chorava, mas não era pela dor, eram as lembranças...

“Porca burra! Fica calada!”

Seria mesmo isso o que era? Uma porca velha de cabelos brancos e ainda mais aleijada?

“Imprestável! Inútil! ”

E covarde. Sim. Por anos. Fraca, mesmo passando dos 100 kg. Como Camilo sempre fazia questão de lembrar, uma vergonha...

“Mata ele mainha! Mata ele... como matou eu e o outro...”

A cabeça decapitada e ensanguentada do porco sorria...

O ronco de Camilo estirado no sofá a trouxe de volta e ela secou as lágrimas com a borda do vestido. As imagens do que vivera naquela manhã no terreiro de Pai Salomão não lhe saiam da cabeça e haviam iniciado um tremor que a sacudia como um início de uma convulsão. Não deveria ter ido... não podia ser seu menino... não, era algo ruim, pútrido... mas era a voz dele...

“Legião”

Eleonor segurou no armário para não cair. O som do futebol na sala abafou o estilhaçar do copo que derrubou quando cambaleou sobre a perna direita deformada de olhos fixos na foto que a encarava com seus olhos pétreos.

“Ah meu Vitor... meu Vitinho... mamãe te amou tanto...”, Eleonor deixou que mais lágrimas escorressem. O coração batia loucamente e ela sentiu que algo como o fim estava se aproximando cada vez mais, não merecia estar ali e ainda estava, ela, que não passava de um fardo pesado e fedorento. Um derrame ou um infarto talvez fosse pouco, o melhor mesmo seria uma corda no pescoço, se a corda aguentasse... ou se ela conseguisse fazer o nó de fogo... Por que ela não lembrava do primeiro? Daquele que o pai enterrou na mata?

Ele nem chegara a ter um nome...

“Olha mamãe! Eu sou um porco! E eu falo!”

De joelhos, Eleonor pediu perdão a Deus. O salário do pecado, era a morte. Ela infringira seus mandamentos, desde sempre, deveria pagar... ou receber, mas somente Ele conhecia seu coração. Camilo esteve quase certo, ela ainda assim era uma inútil. Não devia ter se metido com macumba, Dona Zeti não tinha culpa, só quis ajudar. Com dificuldade se pôs de pé, atingindo a quina da pia com as costas ao se levantar. A dor aguda foi um açoite para que ela continuasse. Catou uma de suas panelas e a encheu com água, a mão trêmula. Precisava terminar o jantar de Camilo, ele sempre ficava furioso se a comida não estivesse pegando fogo.

Adicionou a garrafa de óleo por completo na água e a pôs sobre a chama azulada. Olhou pra trás e viu o homem com quem passara os últimos 30 anos, sem que tivesse escolha, e sentiu que a vida não havia sido em nada justa com ela. Mas isso terminaria ali. O que nasceria de suas cinzas?

“Até que a morte os separe...”, padre Euzébio falara quando os casou no quintal de sua casa, com apenas o pai de testemunha.

Abriu a despensa e retirou um pequeno pote com tampa preta que ficava ao lado dos produtos de limpeza. Esperou a mistura oleosa ferver e adicionou todo o conteúdo granulado na água que se elevou num borbulhar mordaz. Lá fora, o Sítio Curió era silêncio e agouro.

“Se eu dormir, tu me acorda, vaca manca... comida só presta quente!”

Mas alguns pratos precisavam ser servidos frios...

***

A cidade de Três Escudos cresceu muito rápido depois que Comendador Negromonte decidiu dividir boa parte de seus milionários investimentos estaduais e de iniciativa privada internacional com alguns municípios menores, em meados de 1870. O sangue negro e indígena ergueu uma cidade bem estruturada, pequena, moldada por senhores holandeses que entendiam de arquitetura “utópica”, que se valendo da geografia plana do terreno que se encerrava em belas colinas, criaram um modelo quase perfeito de uma “cidade-jardim”, lugar onde senhores europeus poderiam descansar após suas viagens marítimas cansativas, enquanto tratariam de seus negócios agrícolas e como sempre, de alguns bastardos. As plantações de café cresciam a cada dia, e o algodão produzido ganhava o mundo.

Era sob esse legado de suor e trabalho pesado que o Sítio Curió, uma propriedade de 10 hectares, havia passado 100 anos depois como herança para Afonso Alves. Homem simples, agricultor, viúvo há 15 anos, sonhou com um filho, mas era pai solteiro de uma menina que nascera deficiente de uma perna, colocara-as na frente, fazendo a mãe sangrar tanto no parto que a tirou dele, seu único amor... Agora, essa mesma menina lhe contava que estava grávida, antes de ser debutante. Como? Ele a criava com mão de ferro. Eleonor, era seu tesouro. Mas quenga ele não criaria.

- Sua puta! Puquê que cê fez isso comigo, minha filha!? Pelas minhas costas!!! – e o cinto de couro descia com velocidade cortante – Cachorra safada! O que é que vão dizê de mim? Tu deu pra quem heim? PRA QUEEEEEMMM!!! – e a surra prosseguiu indefinidamente de maneira inesperada. O pai nunca havia batido nela até aquele momento, a criava como se ela não existisse conquanto estivesse sempre à vista. Dona Nazé intercedeu e acolheu Eleonor em choque, o corpo repleto de hematomas, a fivela do cinto havia ferido sua canela direita, a perna mais curta e torta, e o sangue escorria até o calcanhar.

Eleonor sabia que a ira do pai de alguma forma tinha fundamento, em sua ignorância e cegueira, desde os 10 anos não saia do sítio a não ser nos domingos de missa, quando descia a Ladeira da Espada com o pai numa caminhada de 2 km até a Capela de São Roque, sempre em silêncio, não estudava, não lia, não tinha amigas, sua vida se resumia a explorar a cozinha de casa com Dona Nazé, experimentando os temperos e conversando sobre a capital, ou a coxear pelo quintal gigante com suas bonecas, colhendo flores até a fonte que brotava da pedra. Mas foi essa mesma cozinheira, que também era parteira, quem a pediu segredo quando seu sobrinho Isaque, um jovem de 25 anos, foragido da polícia sergipana, por dois dias fora almoçar com ela escondido do patrão Afonso que estava em Maceió, rindo bastante e contando coisas engraçadas para fazer Eleonor sorrir, e ela sorrira.

No entanto jamais falaria do que ele havia feito na tarde do segundo dia quando a encontrou sozinha colhendo acerolas nos limites do sítio... tudo havia acontecido em menos de 5 minutos, tempo suficiente pra ela sentir a dor e ver o sangue, e depois o rapaz sumira pra sempre. A vergonha e o medo a calaram. Não sabia ao certo o que lhe acontecera. Foi Dona Nazé também quem conversou com Afonso para lhe consolar e aconselhar quando notara os enjoos e vômitos frequentes.

- Nazé... eu mato esse peste... se eu descobrir... mas a diaba não fala nada! Esse menino eu não crio! Ela vai ter que tirar esse perjuro!

- Seu Afonso me escute pelo amor de Deus... eu vi essa menina nascer, eu tava lá com a senhora sua esposa... Dona Joana, que Deus a tenha... num faça isso não. Deus há de castigar se o senhor matar esse inocente. Deixa essa criança nascer... em nome de nosso senhor Jesus, e depois nós dá ela pra adoção. Ninguém nunca vai saber, dou minha palavra.

A fé e devoção de Afonso falaram mais alto e ele engoliu o orgulho. Desse dia em diante, não dirigiu palavra a filha. O desgosto não podia ser vencido sem que alguém sangrasse.

E por 9 meses Eleonor ficou trancada em seu quarto, vendo a barriga crescer enquanto Dona Nazé servia-lhe como a mãe que não pôde ter. Contara-lhe a verdade. Nazé chorou. Seu peso triplicara, o bebê parecia exigir comida. Ninguém além dos 3 sabia daquela gestação. E quando o dia chegou, uma manhã chuvosa, Dona Nazé fez o que por décadas sabia de melhor além de cozinhar, trouxe mais um filho para a luz...

Um menino. Enorme.

Os gritos de dor de Eleonor cessaram imediatamente quando ela viu aquele ser envolto no seu sangue e um sentimento nunca antes experimentado floresceu num passe de mágica em seu coração... era seu filho... viera de dentro dela... apenas desejou o segurar e nunca mais soltá-lo...

- Nazé, trate de cumprir sua promessa. – Afonso falou - Leve esse castigo daqui. Dê a quem você quiser... jogue fora... mas se eu souber que você contou pra alguém... eu mesmo mat...

- Eu levo ele, Seu Afonso, vou deixar ele com ela só hoje... pro bichinho mamar um pouquinho... e amanhã de manhã, 7 em ponto, eu venho buscar ele. Ela já sabe. Vai pra um orfanato de freiras.

- Nazé, não brinque comigo. Só hoje. Se você não vier eu jogo ele e você no açude.

E naquele dia, durante horas que mais pareciam sonho, aquele ser minúsculo e desconhecido que viera até Eleonor por um caminho tortuoso sugou de seus seios o néctar da vida, seus olhinhos escuros passeavam pelo quarto abafado que havia sido sua prisão, e ela se pegou o beijando na testinha e dizendo...

“Eu te amo...”

Centenas de vezes.

Sem lembrar de nada, do desamparo de crescer sem mãe com um pai rígido e triste a cercear seu mundo, na perna curta e torta que a fazia mancar e latejava em noites de lua cheia, Eleonor abraçou a criaturinha frágil com carinho, seus olhos foram pesando com o sono que lhe fechava as pálpebras para um mundo sem cor e ela imaginava como ele seria quando fosse um adulto... o esforço do parto a esgotara, perdera muito sangue, estava pálida, e em pouco tempo ela estava mergulhada num sono profundo... pesado... muito pesado... o peso de uma vida...

Quando Dona Nazé entrou no quarto às 5 da manhã, sentiu como se um punhal a atravessasse, uma impotência fria a tocou quando ela viu aquela pobre menina obesa dormindo como uma pedra por cima de um bebê inerte e roxo... Eleonor despertou num susto quando os gritos da velha por socorro invadiram o ar, e ao perceber que ele não se mexia e nem respirava mais... o tomou nas mãos e o agitou como se fosse um brinquedo cuja pilha estivesse acabando... mas ele havia partido, tão rápido quanto havia chegado... E só lhe restaram as lágrimas...

***

Sete anos haviam se passado desde o ocorrido, ninguém falava do acontecido, foi quando as visitas de Afonso aos médicos de Maceió se tornaram cada vez mais frequentes, e Eleonor sentiu que havia algo de errado. E havia sim. O câncer. No início dos anos 80 o tratamento ainda era experimental e o prognóstico não era otimista. O destino de Eleonor sempre estivera nas mãos do pai e foi de bom grado que ela certa tarde recebeu a visita de um jovem bonito, recém-formado em odontologia, Dr. Camilo Queiroz foi apresentado a ela pelo pai como o homem que cuidaria dela quando ele partisse. Sua família era influente em toda Alagoas, possuíam vários consultórios. Disse em seu velho tom de ordens habitual que se casariam o mais rápido possível, antes de ele morrer. Camilo era 10 anos mais velho que Eleonor e desde o princípio mostrara-se cortês e atencioso para com a garota tímida e gorda que mancava desajeitadamente, porém nunca carinhoso.

Casaram sem cerimônias, e houve quem dissesse que Camilo só visava as terras e seus rendimentos, o testamento de Afonso foi oficializado antes do câncer concluir seu trabalho. O Sítio Curió pertencia a Eleonor e seria administrado por Camilo, e os filhos de ambos seriam herdeiros legítimos daquela terra. Eleonor sentiu que devia isso ao pai, e mostrou resiliência quando aquele homem a tomou em sua lua de mel com agressividade e frieza, como se a obrigação o forçasse.

Dona Nazé acompanhou os primeiros meses daquela barriga que novamente crescia, abençoando a cada dia aquela menina ingênua que não tinha ninguém por ela. Eleonor sentia medo, culpa... medo de amar outra vez e ser dilacerada por esse mesmo amor. Camilo se mostrava indiferente e as preocupações com seu consultório dentário e administração do sítio tomavam seu tempo e seu humor.

- Nazé, quero que a senhora esteja comigo de novo...- disse um dia Eleonor.

- Estarei, minha filha. Se Deus quiser.

Mas não esteve. Morreu 3 meses antes de Dona Lia trazer à luz o pequeno Vitor, não teve a oportunidade de ver como o brilho da vida voltara a preencher Eleonor, nem a mudança brusca de Camilo quando pegou seu primeiro filho nos braços. Foi como se ele tivesse desabrochado, o homem frio e silencioso, tido como excelente dentista, parecia ter voltado a infância. A paternidade revelou um lado no homem desconhecido por todos, o amor parecia tê-lo transformado e nada mantinha pai e filho afastados, e só com muito esforço Eleonor conseguia roubar do filho alguma atenção, o menino só tinha olhos para o pai, ainda que sempre buscasse nos braços da mãe conforto e carinho sempre disponíveis em troca de seu amor puro e alvo. Desde quando aprendera a falar, Vitor dizia que a amava...

E ela a ele. Um amor que parecia ter renascido em dobro, por aquele que não chegou a ter um nome...

Tudo parecia ter mudado. A vida pareceu ser boa durante quase uma década. Amava Vitor e respeitava Camilo. Fora ele mesmo quem viajara pra São Paulo e voltara com uma bota ortopédica feita sob medida para ela, para atenuar suas dores e ajudá-la a sentir-se bem, nivelar seus passos. Aquecida por uma felicidade impensada, ela vivia...

Mas os ventos frios ainda voltariam a soprar.

Certa tarde vira Vitor descer do ônibus escolar e entrar correndo pelo portão principal do sítio com os olhos brilhando de ânimo e empolgação.

- Mamãe! Mamãe! A senhora não sabe o que eu vi!

- O que foi, menino?

- Lá na Praça do Almirante chegou um circo! Montaram um circo e do lado dele, sabe o que tem? – o menino quase pulava de alegria.

- Não, o quê?

- Um parque de diversões! - a ansiedade de Vitor era nítida, aos 9 anos nunca havia ido a um parque de diversões, os poucos passeios que fizera na infância haviam sido para as praias de Maceió, mas jamais vira um palhaço ou uma roda-gigante. Três Escudos era um lugar de árvores, fontes e plantações de café.

- Vamos esperar seu pai voltar daí poderíamos ir com...

-NÃO, MÃE! Vamos lá agora, só pra gente ver... por favor, por favor, por favor! Papai só vai chegar depois de amanhã.- sempre que o filho fazia aquela cara ficava difícil dizer não.

Eleonor ponderou a distância, mas Vitor insistiu que fossem de bicicleta, já que havia visto a mãe andando pelo sítio como forma de exercício para a perna. Camilo a advertira para não sair com ela, mas ele não ficaria sabendo. Ela refletiu um pouco e pensou que talvez fosse bom dar um passeio após meses de clausura, tomou coragem e pôs Vitor no banco de trás da bicicleta e saiu com a intenção de ver o sorriso do filho reluzir.

Desceram a Ladeira da Espada com Eleonor apertando nos freios e rindo como há muito não fazia, o filho gargalhava a cada desvio canhestro que a mãe fazia das poças de água da chuva recente, conversando sobre como seria o espetáculo que assistiriam. Alguns carros e caminhões de cana passavam ruidosamente, motos e cavalos iam e vinham a todo instante. Ao avistar a tenda colorida do circo a uma distância de 3 quarteirões de onde estavam, Eleonor se distraiu admirando a altura com que as bandeiras se erguiam, um arco-íris selava a aliança feita há muito tempo, não haveria mais destruição... o Senhor prometera... só felicidade... ela estava feliz... feliz...

Quando o pneu dianteiro se afundou no buraco disfarçado de poça, o desequilíbrio inevitável os atirou num susto eletrizante para frente, e Eleonor ouviu o som da buzina e o freio desesperado, mas o que sentiu depois veio acompanhado de um impacto que a fez ver estrelas, seguido de uma dor excruciante no braço direito, e depois, foi só escuridão...

Acordou com o som de choro, um homem ao que parecia, desnorteado, dizia que não tinha tido culpa... uma multidão a cercava enquanto alguém pedia pra se afastarem porque a ambulância já estava a caminho, tentou se mexer mas o braço direito era uma bola de dor desconhecida, virou o rosto para olhá-lo ainda atordoada e sem a lembrança recente do que havia acontecido, e quando os frangalhos sangrentos do que antes foi seu braço foram percebidos, ela lembrou-se de Vitor... gritou por seu filho mas uma mulher desconhecida a manteve encostada no chão, dizendo que ela ficaria bem, que não olhasse... mas ela olhou...

As perninhas magras podiam ser vistas saindo debaixo dos pneus que carregavam toneladas, e um rio púrpura escorria do lado de Vitor até quase tocá-la...

Como se despertasse de um pesadelo recorrente para logo em seguida cair em outro, mais uma vez somente as lágrimas lhe restaram...

***

Dois meses hospitalizada, um braço amputado na altura do cotovelo, um filho com a cabeça estraçalhada por um caminhão e um marido quase enlouquecido pelo luto. Eleonor desejou a morte e quase a conseguiu não fosse um enfermeiro veloz a segurá-la antes que ela pulasse da janela de seu quarto no hospital. Aos médicos, Camilo prometeu total apoio emocional, mesmo diante da dor irreparável da perda, prometeu cuidar da mulher e de sua mutilação.

Mas isso nunca aconteceu.

Os homens que ousou tentar amar sempre a surpreendiam quando ela mais precisava... o pai... e agora Camilo... Por que eles não tentaram entende-la? Começou muito antes. Sua penitência...

Longe de todos, Camilo vomitava seu rancor e ódio pelo ocorrido, gritava por Vitor, amaldiçoava Deus, e prometeu a Eleonor que ela pagaria pelo resto da vida. Demitiu todos os funcionários e trocou todas as fechaduras. Se aposentou aos 42. Proibiu Eleonor de sair de casa. E fez o possível para cumprir sua promessa. Mudara da água pra lama.

Agressões passaram a ser diárias, socos inesperados na costela, beliscões, chutes na perna manca que a faziam cair por cima do coto do braço e implorar pra que parasse... xingamentos obscenos eram desferidos juntos com palavras carregadas de humilhação quando ele a possuía chamando-a de “porca assassina”, e esse ritual se repetiu durante anos, “VOCÊ VAI SER MINHA EMPREGADA PRA SEMPRE! SUA PORCA BURRA! MATOU MEU FILHO, MAS NÃO VAI VIVER!”, a bebida passou a ser mais presente assim como o desprezo, quando ele se isolava e a trancava no quarto que passou a ser seu mundo. Subjugá-la de todas as formas era o castigo que ele a impusera de maneira arbitrária, apenas pelo fato de ela não ter ninguém por ela e ele nunca a ter desejado como esposa, sempre tivera prostitutas. Foi o dinheiro... dinheiro esse que ela nunca nem viu, nem veria. Certa vez, ele a derrubou enquanto ela varria o quintal com uma rasteira e urinou em cima dela. Ela, apenas chorava, nunca reagia, acreditava merecer sofrer. Ninguém a ouviria, o sítio ficava longe de todos. Eleonor engordava a cada dia, cada ano, como se o estado deplorável em que vivia a alimentasse. Porém, seu espírito minguava... assim como sua fé...

Aceitara sua sentença.

***

Dona Zeti começou a frequentar o Sítio Curió quando Eleonor caiu doente com alguma moléstia desconhecida. Camilo confiava na tal mulher, não desejava que a esposa morresse, tinha muito o que viver com ela ainda, então chamou a benzedeira, a esposa não iria pra médico. Ela acabou por quebrar a barreira que havia entre Eleonor e qualquer pessoa e certa vez, quando se fez necessário que as duas viajassem até um povoado próximo em busca de tratamento adequado, ela falou de maneira direta.

- A senhora precisa confiar em mim. Vai ver alguém que irá lhe ajudar. Sei o que Camilo faz e sei porque a senhora aceita. É a culpa...

Foi então que Dona Zeti a explicou o que Pai Salomão fazia com seus porcos, como o sangue de seus sacrifícios podia trazer por alguns instantes os espíritos dos que se foram... que tinha na Bíblia passagens com eles... eram receptáculos... o tempo era suficiente para que eles dissessem algumas palavras... se despedissem... contassem quem os assassinou ou segredos não revelados... por alguns minutos poderia se ouvir a voz dos mortos... se houvesse fé... e Eleonor como num delírio de quem já não espera nada, se viu ironicamente diante de um porco malhado que foi abatido em sua frente... decapitado após um pequeno ritual de palavras desconhecidas... e quando a cabeça de porco erguida nas mão de Pai Salomão começou a falar com a voz de Vitor... tudo o que conseguiu dizer entre lágrimas aterrorizadas foi...

“O que eu faço, meu filho?”

E o porco falou...

Sorrindo.

***

- Camilo... Camilo... acorda. O jantar tá pronto.

Camilo abriu os olhos e viu a mulher com a panela erguida acima de sua cabeça. Ela tremia. Teve tempo de pensar “Essa vadia me deixou dormir demais”, antes da soda cáustica misturada a água e óleo fervente abrir uma cratera em seu rosto...

Eleonor, enxugou as lágrimas.

E sorriu.

O jantar a aguardava...

FIM

Obrigado por vir até aqui...

TEMAS:RELACIONAMENTOS TÓXICOS/ESPÍRITOS

Edgar Lins
Enviado por Edgar Lins em 21/05/2023
Reeditado em 23/05/2023
Código do texto: T7793404
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