O PASSAMENTO DERRADEIRO

   

   Abner estava atrasado.

 

   Quando chegou ao velório, logo viu Helena desalentada, ao abandono, no canto mais escuro e discreto da capela. Ela, pelo que se podia deduzir, afastara-se das pessoas perto dos dois caixões, postados no centro da igreja, a fim de padecer o seu luto sozinha. Ele se demorou um tanto mais em observá-la, perdido em considerações sob a brevidade da vida, até perceber o estado lamentável de alienação em que se encontrava a mulher amada. Era de dar dó.

 

   Helena não fazia a menor ideia de que já estava morta!

 

   Sentada no banquinho, recostada à parede, de mãos ao colo e deprimida, olhar indiferente largado ao chão, a sua amante ainda não havia se dado conta da trágica situação. A pobre criatura não devia estar entendendo o motivo dos amigos e parentes recusarem-se a lhe oferecer as devidas condolências. Talvez achasse que apenas o marido tivesse morrido, ela não.

 

   O dom de ver os mortos sempre lhe causara profunda inquietação. No início foi muito difícil lidar com o problema. Passou por dificuldades psicológicas estressantes que quase o levaram à loucura uma vez que, mal saído da adolescência, já havia perdido a conta do número de almas penadas vagando nas ruas indiferentes às suas próprias condições de não existência. Então, como propósito de dar sentido àquela bizarra habilidade natural, passou a ajudá-los na superação da dura realidade do passamento derradeiro.

 

   Abner tinha a exata compreensão do que acontecia com as almas dos indivíduos logo após o falecimento. Elas eram lançadas brevemente no limbo, uma dimensão atemporal entre a matéria e o desconhecido eterno. Em geral, dentro deste contexto, duas perspectivas se apresentavam bem claras: havia quem imediatamente estivesse ciente da trágica circunstância, mas rejeitava a separação de ambos os planos existenciais por causa de conflitos pessoais mal resolvidos. E, de outro lado, havia os que simplesmente não se davam conta desta condição, ou levavam um tempo maior para entender.

 

   Naquele momento, viu-se na difícil obrigação de ajudar Helena a reconhecer-se morta. Reuniu coragem suficiente e encaminhou-se diretamente ao encontro da amante, decidido a não deixar mais a pobre criatura acorrentada ao limbo incerto dos que ficam entre os vivos. Chegou discreto, de fala mansa, sem alardes para não assustá-la.

 

   — Oi, querida.

 

   — Oh, Abner – ela se levantou do banquinho depressa com o semblante apreensivo. – Como você demorou. Não sei o que está acontecendo! Ninguém quer falar comigo, veja só. Estão me ignorando. Não respeitam a minha dor.

 

   — Você já foi ver o Vanderlei? – ele apontou o queixo para os caixões no centro da capela.

 

   — Mas é claro que não! Eu não tenho coragem de olhar. Abner, o Vanderlei descobriu tudo sobre nós. Tudo! – Disse baixinho, ansiosa, como se alguém na igrejinha lhe pudesse ouvir. – Eu acho que ele contou o nosso segredo a todos antes de morrer. Talvez seja essa a causa de tanta falta de consideração por mim. Só pode ser isso. Não tem outra explicação.

 

   Ele pigarreou constrangido pela falta de noção dela e olhou em volta para ver se não havia ninguém por perto. Afinal de contas, já era considerado pela família um cara bem esquisito. Não ajudaria muito ser surpreendido por um amigo, ou um parente distante, falando sozinho com a parede da igreja.

 

   — Helena – disse sem se aproximar, quase aos sussurros, virando-se na direção do centro da igreja. - Você precisa ser forte e ir até lá, viu?

 

   — Oh, Abner, não tenho coragem de olhar, não. Ainda mais que ele descobriu tudo sobre nós.

 

   — Escuta, o Vanderlei não pode fazer mais nada contra mim ou contra você. Meu primo está morto.

 

   Ela olhou novamente para o piso da capela mexendo de leve a cabeça em atitude de negação.

 

   — Não, não, não. Quero ficar aqui.

 

   — Meu amor – insistiu em tom suave e paciente. – Você já percebeu que há dois caixões sendo velados na igreja?

 

   Helena olhou na direção do amontoado de parentes no entorno dos esquifes, levantou as sobrancelhas em tom de curiosidade por um breve momento, em seguida voltou a fechar-se na indiferença.

 

   — E daí? Pode ser qualquer um – deu de ombros. - Afinal, esta capela é pra isso mesmo, velar os mortos, não é?

 

   Dizer-lhe a verdade sobre a sua condição ia ser mais difícil do que havia pensado. Teria de usar uma tática mais direta.

 

   — Helena, minha querida, observe bem. Todo os membros da nossa família estão ao redor dos “dois caixões!”

 

   Ela se voltou novamente para o grupo de aparentados. Desta vez, levou um tempo maior para absorver a cena. Aos poucos, aqueles olhos azuis intensos se avolumaram de surpresa. As linhas da testa se contraíram, assim como nos lábios assomou-se um ricto de preocupação no canto da boca. Deu três passos à frente ficando ao lado dele.

 

   — Abner, quem morreu, além do Vanderlei? – perguntou-lhe sem rodeios.

   — Querida...

   — Quem?

   Não teve outra opção.

   — Foi você.

 

   Ela se virou para buscar a verdade nos olhos dele. Custou-lhe grande esforço manter o olhar incrédulo dela na sua expressão determinada, sem desvios, porquanto não queria lhe oferecer falsas esperanças.

 

   — Ok... eu... eu vou lá, então – disse com a voz insegura, mais parecendo estar ansiosa por querer o encorajamento dele.

 

   — Vá, meu amor. Seja forte!

 

   Não houve despedida entre os dois porque Helena ainda não havia assimilado completamente a ideia. Ele murmurou um “adeus” entristecido, mais para si mesmo, enquanto ela se encaminhava a passos hesitantes para o seu destino final. Tinha consciência de modo muito preciso o que a esperava, pois já havia presenciado o fenômeno centenas e centenas de vezes. Quando ela confirmasse o próprio corpo dentro do caixão, o assombro maravilhoso do passamento derradeiro seria iniciado em ascensão rápida, resplandecente, e sem volta. Era um espetáculo bonito de se ver.

 

   Ao chegar diante do próprio caixão, os olhos de Helena se arregalaram e levou as duas mãos à boca. Não gritou. Não fez escândalo. Abner conseguiu ver no rosto dela a expressão perplexa, estupefata, já começando a emitir o brilho que iria lhe envolver todo o corpo em breve. De modo já esperado, ela se tranquilizou. O semblante foi tomado por uma expressão serena, da qual apenas lhe fez realçar ainda mais a beleza. Em seguida, começou a flutuar por alguns centímetros dentro de um tênue halo de luz. Ela estava linda, plácida e bela. Parecia um anjo sem asas!

 

   Como era habitual, aos que iniciam a passagem final, Helena olhou maravilhada para as próprias mãos. Abner jamais soube bem o porquê, mas era sempre a partir das mãos que se iniciava o processo irreversível do passamento derradeiro. E foi a partir das mãos de Helena que o brilho lhe tomou conta, subindo-lhe graciosamente pelos braços, envolvendo-lhe o torso, ofuscando tudo ao seu redor como uma janela em quarto escuro abrindo-se para os primeiros raios do sol da manhã. Sentiu-se triste por ser a única testemunha daquele espetáculo fulgurante. Em dado momento, não se podia mais divisar o corpo de Helena. A luz se intensificou ao seu máximo e sumiu, de súbito, levando-a para sempre.

 

   De fato, foi lindo, apesar de muito triste, pensou.

 

   A perda irremediável da mulher amada deixou-o arrasado. Sentou-se no banquinho. Deixou-se invadir por recordações de quando se amavam intensamente. Um riso fraco se lhe escapou dos lábios ao lembrar-se de algumas cenas engraçadas vividas na clandestinidade. As raras oportunidades que tinham eram sempre dedicadas a um amor urgente, um querer apressado.

 

   Nunca a esqueceria. Jamais! Ela sempre seria...

 

   — Abner, seu desgraçado, traidor. Vou matá-lo com as minhas próprias mãos!

 

   Saltou do banquinho feito uma mola. Havia esquecido completamente do primo traído. Não sabia precisar bem qual a razão, mas a intuição lhe dizia que Vanderlei tinha a clara noção de estar morto, porém recusava-se a ir embora. O homem era turrão. Tinha uma pendência ainda por resolver e tal pendência era com ele!

 

   Os espíritos que exigem vingança são os mais complicados de realizar a passagem derradeira. Podem ficar anos vagando dentro das casas em plano atemporal, fazendo barulho, arrastando objetos, atrasando as vidas dos que consideram culpados de suas desgraças. São muito mais resilientes de se convencer a seguir o curso natural da vida e morte. Eles não têm uma passagem feliz, pois acabam encontrando satisfação em atormentar as pessoas como forma de compensar a trágica situação.

 

   Tudo aconteceu muito rápido. Vanderlei entrou transtornado dentro da capela. Estava com o braço esquerdo inteiramente enfaixado com gases. O rosto machucado trazia minúsculos cortes ressequidos e mancava em uma das pernas. Abner preparou-se para o confronto, resignado em enfrentar a vergonha de ser escorraçado por um defunto porque, tinha certeza, fisicamente o primo nada podia fazer contra ele.

 

   No entanto, o furibundo não veio na direção dele!

 

   Vanderlei, de modo tresloucado, partiu como uma fera raivosa direto para os caixões, afastando as pessoas que lhe queriam confortar a sua dor e, usando o ombro ileso, num ímpeto de fúria, empurrou os dois ataúdes fúnebres com toda a força que lhe permitiu o seu estado debilitado. Os dois esquifes, esbarrando-se, caíram de lado, espatifaram-se no piso de mármore fazendo um barulho estrondoso que vibrou até os candelabros de velas dependurados no teto da capela.

 

   Foi o caos!

 

   Os tios de Vanderlei, horrorizados, caíram-lhe em cima para dominá-lo. As tias gritavam e choravam histéricas. A mãe desmaiou caindo por cima de toda aquela bagunça. Um verdadeiro escândalo! Na confusão, em um dos caixões, Abner vislumbrou os cabelos de Helena espalhados em suas laterais, no outro o impacto da queda havia expelido o conteúdo para fora e, naquele átimo de tempo viu-se, de súbito, enredado no impossível, no inimaginável, quando seus olhos esbugalhados e incrédulos chocaram-se com o morto derribado ao chão.

 

   Era ele!

   Sim, era ele mesmo!

   Abner estava morto e não sabia!

 

   A imagem do próprio corpo o atingiu em cheio como um violento soco no estômago. Estremeceu dos pés à cabeça. Piscou perplexo por diversas vezes, não porque quisesse enxergar melhor, mas por causa do fluxo intenso de lembranças.

 

   Semelhante a um filme, relembrou uma sequência de imagens reveladoras: Helena chorando ao telefone. Helena lhe dizendo que Vanderlei descobrira toda a verdade. Helena dizendo que o marido iria matá-la. Ele, Abner, saindo de casa apavorado, armado de revólver, em meio à noite chuvosa. Ele correndo pela rua em direção à residência do casal. O carro deles aparecendo na curva em alta velocidade vindo na direção dele. O rosto de Vanderlei retorcido de ódio atrás do para-brisa. Helena tentando tomar o volante do lunático. Os faróis do carro devorando-o foi a última coisa que viu no mundo terreno.

 

   — Os desgraçados eram amantes! Eles eram amantes! Eles eram...

 

   Os gritos alucinados de Vanderlei, aos poucos, iam ficando cada vez mais distantes. Abner, de modo inexplicável, sentiu irromper uma paz confortadora dentro de si. Percebeu uma leveza que nunca havia sentido antes. Não pôde resistir e olhou maravilhado para as próprias mãos porque, sabia muito bem, eram através delas que se iniciava o passamento derradeiro.

 

   E elas começaram a brilhar!

 

 

 

 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 14/05/2023
Reeditado em 11/09/2023
Código do texto: T7788457
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