O Espírito do Peão das trinta cabeças
Antes de ser consumido por três dezenas de um gado esquelético, faminto e congelado na serração daquela madrugada pantaneira, Firmino se lembrou do vizinho falando para ele: “Nesta casa mora o Senhor mais ele. Nunca deixe fechada a porteira do curral. Ele pode te visitar com sua meia dúzia de gado pingado.”
Só sobrou tempo para pensar nisso. O corpo de Firmino foi atropelado por centenas de patas, sumindo entre a poeira e a serração da madrugada. Nada adiantou ficar prostrado no meio da estrada, a poucos metros do curral, com uma espingarda na mão.
Quando o solitário Firmino apiou seu corpo naquela velha casa, de curral mais velho ainda, ficou ciente, por alguns vizinhos pantaneiros, sobre a triste história de um peão que sumiu durante a condução de mais de cem cabeças de gado. Ele morava na mesma casa em que Firmino achou-se dono. Alguns dizem que um temporal liquidou com o peão e com a boiada que ele conduzia. Outros dizem que ele foi engolido por uma sucuri gigante enquanto a boiada se perdeu pelo caminho. Mas todos são unânimes em afirmar que, de vez em quando, ele retornava à sua residência, conduzindo o que sobrou do gado. Por isso, todos os moradores daquela assombrada casa têm a obrigação de deixar o curral aberto, para que o gado possa descansar, antes de seguir por uma viagem eterna.
Depois do triste episódio envolvendo aquele peão, sua mulher e filha foram mortos pelo patrão, que teve a convicção de que o peão havia furtado todo o seu gado e fugido para outro lugar.
Dizem os pantaneiros que esse patrão, sua mulher e seus dois filhos, meses depois, também sumiram sem deixar rastros.
Firmino achou tudo aquilo uma conversa fiada. Decidiu que manteria o curral fechado, e se o tal peão aparecesse, daria cabo dele.
Naquela fatídica madrugada onde Firmino se encontrou com a morte, de dentro de casa, ele ouviu o gemido de um berrante ao longe. Não demorou muito, a boiada magricela cruzou a fresta do buraco da porta, onde os olhos atentos do morador observavam pacientemente o gado se arrastando rumo ao curral, conduzido por um peão, cujos chapéu e o breu da madrugada escondiam seu rosto.
Houve o toque de berrante na entrada do curral e o estouro frenético da boiada. O toque daquele berrante paralisou Firmino, que não conseguiu sequer erguer a espingarda. Seu corpo, ou o que sobrou dele, nunca foi encontrado.
Tempos depois, outro morador resolveu estabelecer domicílio naquela pequena e assombrada propriedade.
O pobre coitado chegou por aquelas bandas com uma mão na frente e outra atrás. Com a esposa quase parindo, aceitou morar naquele local, mesmo após ficar ciente das histórias do peão fantasma e do seu gado remanescente. Não sentiu medo. Apenas disse que queria dar um rumo à sua vida.
Naquela madrugada, o frio castigava as paredes carcomidas daquela casa indesejada. Lá fora, havia lua, havia bichos, havia frio e havia também o peão.
O berrante chorou ao longe, impulsionando Januário a sair na estrada. Trinta cabeças de gado magricelas passaram silenciosas por ele. À sua retaguarda, apareceu o peão, montado em um grande cavalo com uma vasta crina e um enorme pelego sobre suas ancas.
Sem olhar para Januário, o peão continuou a conduzir o gado até o curral, que desta vez, estava com a porteira aberta.
Minutos depois, o berrante tocou lá no curral. Um segundo depois, o peão surgiu na frente de Januário.
Com um gesto amigável, e sobre o cavalo, retirou o grande chapéu de palha da cabeça, liberando a vasta cabeleira enquanto a mão direita acenava para Januário.
Com os olhos vermelhos feito fogo e dentes escuros feito a noite, o peão, sorrindo, disse-lhe: “O gado que deixei no curral dará um rumo à sua vida.”
Sem dizer mais nada, chacoalhou as rédeas do animal, sumindo sob o clarão da lua.
No amanhecer, Januário foi ao curral, deparando-se com trinta cabeças de gado totalmente saudáveis. Ele, então, se ajoelhou entre os gados, colocou o chapéu no peito e agradeceu a Deus e ao peão pela oportunidade recebida.