Assombração - CLTS 23

Ao chegar ao final de uma rua ofuscada pela espessa névoa noturna, um jovem pálido e magro parou diante de um portão preto emoldurado por muros de pedra. Através das negras grades de ferro, ele vislumbrou a bela casa senhorial cercada por um jardim que continuava encantador, embora já tivesse visto dias melhores.

A visão exterior da propriedade de arquitetura aristocrática datada do Segundo Reinado – uma relíquia histórica da cidade – não era mais familiar para ele que o interior igualmente elegante. As lembranças o permitiam passear pelos corredores, abrir as portas talhadas em madeira nobre e entrar em cômodos amplos e mobiliados com móveis antigos e bem conservados.

Para Leonardo Beviláqua, era também muito fácil se ver novamente deslizando os dedos pelos lombos dos livros enfileirados nas várias prateleiras da biblioteca, onde, quando morava naquela casa, costumava passar horas largado no divã, folheando avidamente páginas que eram verdadeiras janelas para mundos repletos de aventuras.

Uma pena que todas essas histórias de cavaleiros, espadas e castelos que devorava dia após dia nunca o prepararam devidamente para o que estava à espreita, circulando pelas intermediações, estudando a propriedade e os hábitos dos moradores.

A observação se transformou em ação em uma noite em que os pais de Leonardo haviam saído para um jantar e os empregados já se encontravam recolhidos em seus aposentos.

Se, por um minuto, o rapaz tivesse desviado os olhos do livro que tanto o absorvia, guiando-os para a janela de cortinas abertas da biblioteca, talvez tivesse visto as sombras esgueirando-se no jardim. Uma vez ciente da movimentação no lado de fora, não teria se espantado com o barulho de passos pela casa.

Ele saiu para investigar, e braços fortes o apanharam em um trecho particularmente escuro do corredor. Soube depois que os invasores tinham deixado um bilhete falando do sequestro e da quantia requerida.

Na ocasião, Leonardo não tinha como saber. Amarrado e vendado, foi carregado para um cativeiro mau-cheiroso e jogado em cima de papelões velhos, onde passou dias sem comer ou beber nada, por mais que lhe fosse oferecido. Não importava o quanto os sequestradores repetissem que queriam trocá-lo com vida pelo dinheiro, o refém não queria nada que viesse deles.

O período de confinamento chegou ao fim de forma semelhante ao início: com braços o arrebatando sem que ele soubesse se eram de amigos ou de inimigos. Houve uma explosão de vozes masculinas, uma trovoada de tiros e barulho de coisas quebrando, e Leonardo se deixou levar sob o intenso cheiro de sangue e morte no ar.

Em pouco tempo, o rapaz se encontrava envolto pelos cuidados zelosos dos pais em uma chácara idílica em que ele nunca havia estado antes.

O ambiente e a companhia eram uma mudança drástica em relação a onde ele estava anteriormente, mas a bolha de proteção que a família tentava construir em volta dele para preservá-lo de qualquer estresse nos dias subsequentes ao sequestro possuía brechas pelas quais chegavam informações sobre o que tinha acontecido enquanto esteve em cativeiro.

Soube do desespero dos pais, aflitos com a dificuldade de levantar a quantia vultosa pedida pelos bandidos, e dos sucessivos fracassos investigativos das autoridades.

Com o prazo chegando ao fim, precisaram vender a casa para arrecadar o dinheiro do resgate; porém, tão logo a venda foi concluída e as notas colocadas na sacola, uma surpreendente denúncia anônima levou os policiais para o local do cativeiro.

Pegos de surpresa, os sequestradores foram dizimados e o refém levado para a propriedade rural comprada com o dinheiro que seria usado para resgatá-lo.

Apesar de o bucólico cenário oferecido pela chácara ser convidativo à retomada de uma vida tranquila, voltar à normalidade era difícil para Leonardo.

Pensamentos tumultuados moviam-se por sua mente feito nuvens de tempestade, combinando-se e completando-se mutuamente, como se quisessem formar algo, embora o rapaz não soubesse dizer o que exatamente.

Uma dúvida, uma ideia, uma suspeita? Fosse o que fosse, ele o deixou enterrado na mente, tanto para não perturbar os pais, como para não enlouquecer a si próprio.

No entanto, certas ideias são como sementes: uma vez enterradas na mente, não são aniquiladas, mas germinam e se preparam para desabrochar mais fortes do que nunca.

No caso de Leonardo, o que desabrochou a partir dos raciocínios que se enraizavam por seu âmago foi a conclusão de que todo o ocorrido havia sido muito conveniente para um participante da história que não estava recebendo tanta atenção: o comprador da casa.

Discretamente, o jovem fez perguntas e ouviu conversas, tudo de modo que não vissem nele qualquer traço de paranoia ou obsessão. Além disso, não queria que o novo dono do imóvel sequer cogitasse que estivessem desconfiando dele.

Leonardo não sabia do que o atual morador de sua antiga casa era capaz caso se sentisse ameaçado. O que sabia era que ele se chamava Percival Ferreira, tinha pretensões políticas, possuía muita estima e zelo pela reputação da própria família e achava a propriedade Beviláqua muito adequada para alguém de sua estirpe.

Próspero nos negócios – era dono de uma fábrica têxtil –, o sujeito em questão havia passado os últimos anos fazendo propostas de compra, até que o desespero de um casal desejoso de reaver o único filho proporcionou o ensejo perfeito para adquirir o cobiçado casarão. Inclusive, parecia que já possuía cada moeda guardada para o momento.

Logo no dia seguinte ao qual o negócio tinha sido fechado e os papéis assinados, chegou em mãos da polícia uma milagrosa denúncia anônima dando instruções sobre o covil dos bandidos e da melhor forma de pegá-los desprevenidos. Todas as orientações se mostraram certeiras, e cada um dos cinco sequestradores acabou sendo morto antes que tivesse a chance de abrir o bico sobre cúmplices e mandantes.

Talvez Leonardo estivesse lendo romances policiais demais, ou, quem sabe, o trauma tivesse afetado suas faculdades mentais. Seja como for, ele tinha motivos para se manter alerta e cuidadoso em tudo o que dizia respeito ao morador de seu velho endereço.

Após mais de um ano do sequestro, surgiu uma maneira de tirar tudo a limpo, e lá estava ele, encarando a sombria entrada. Era hora de respirar fundo e confrontar a verdade que se ocultava do outro lado.

Semelhante a dois braços que se preparam para um abraço, as duas folhas do portão ornamentado afastaram-se uma da outra e abriram passagem.

Leonardo caminhou pela via que cortava o gramado do jardim, subiu alguns degraus e tocou a aldrava. Não teve de esperar muito até que a porta abrisse e fosse atendido pelo próprio Sr. Ferreira.

O rapaz não recuou ou se sobressaltou. Havia se preparado muito para o encontro, e seu estado de saúde não permitia gestos bruscos e expressões efusivas.

Percival, por sua vez, não estava em melhor estado. Os cabelos estavam despenteados, o semblante pálido e os olhos fundos de quem não dormia direito há tempos.

– Boa noite – cumprimentou. – A que devo a honra?

– Boa noite, Sr. Ferreira. Sou Leonardo Beviláqua, filho de Isidoro Beviláqua, antigo proprietário.

– Sim, sim. Eu o conheço e não estou falando das manchetes de jornal. Eu já o vi algumas vezes, embora nunca tenhamos conversado. Você está um pouco…

– Adoentado, eu sei. Estive um pouco mal esses dias.

– Eu ia falar crescido, mas não fique aí fora nesse frio, entre, entre, por favor. – Percival abriu mais a porta para que Leonardo entrasse e deixasse o casaco no cabideiro de parede na antessala. Em seguida, o rapaz seguiu o anfitrião para a sala de estar.

A decoração do ambiente continuava basicamente a mesma de quando Leonardo morava ali, exceto por um verniz de abandono pincelado por móveis e quadros em desalinho e uma ou duas camadas de poeira.

Percival sentou-se em uma poltrona e indicou ao visitante o assento defronte.

– Peço perdão por importuná-lo a essa hora, Sr. Ferreira, mas foi a hora que consegui tempo após passar o dia tratando de assuntos pessoais aqui na cidade. Não podia voltar para a chácara sem vir. – O rapaz se sentou e lançou um olhar interrogativo para o outro. – Está sozinho?

– Sim, minha mulher foi passar uma temporada na casa da mãe dela, e os empregados… Bem, deixa pra lá. Estou aborrecendo-o com assuntos domésticos e nem lhe ofereci uma bebida.

– Agradeço a gentileza, mas não será necessário. Pretendo ser breve. Não vou incomodar.

– Incômodo nenhum, meu caro. Fale, por favor. Não deve ter vindo apenas para matar saudades da casa. Em que posso ser útil?

– Para falar a verdade, é sobre ela mesmo que vim conversar. Eu tenho tido alguns sonhos.

– Sonhos? Com esse lugar?

– Sim. Nesses sonhos, vejo vultos hostis circulando por esses corredores, e, em cada canto, há sempre uma presença sinistra a me observar. Bem, deve ser coisa da minha cabeça.

– Você passou por muita coisa. É normal que esteja impressionado. Mas, diga-me, esses vultos e sombras possuem alguma fisionomia ou traço minimamente reconhecível?

– São dos sequestradores. Nada mais natural, não? Como o senhor mesmo falou, estou impressionado.

– Sim. Natural. – Percival tamborilou os dedos nervosos sobre o braço da poltrona, o olhar perdido em algum ponto da sala. – Eles estão sempre aqui? Nos sonhos, quero dizer.

– Estão. Curiosamente, não tenho pesadelos no cativeiro. É sempre nessa casa. Por isso resolvi fazer essa visita. Para dissipar o medo. Acho que desde o sequestro não piso aqui. Queria ver que não há nada a temer.

– Nada a temer, com efeito – disse Percival ainda distraído com alguma coisa ao redor.

Leonardo tirou um lenço do bolso e abafou tossidas ruidosas.

– O senhor cuidou bem dela.

– O quê? Ah, imagina. A casa está um pouco desarrumada agora que estou sozinho, mas é tratada com muito carinho.

– Não é para menos. É uma moradia e tanto. A troca se deu em circunstâncias dramáticas, é verdade, mas qualquer um se sentiria muito feliz por morar nela.

– Muito feliz – Percival repetiu mecanicamente e sem fazer contato visual com o interlocutor.

– O senhor está bem?

– Perfeitamente. Por que não estaria?

– O senhor está pálido e disperso. – Leonardo se levantou com alguma dificuldade. – Se for algum problema de saúde, talvez seja melhor eu ir. Também não estou nos meus melhores dias e não quero agravar nenhum problema.

Percival Ferreira não teve tempo de dizer palavras educadas para dissuadir o visitante da ideia de ir embora tão cedo. Antes que falasse qualquer coisa, viu Leonardo errar o primeiro passo e se estatelar sobre o carpete.

– O que houve, meu jovem? – Ele se ergueu da poltrona e se debruçou sobre Leonardo. – Fale comigo!

Arfando, o rapaz se virou para cima com a mão no peito, o olhar desvairado varria a sala com a ânsia de quem lutava contra o próprio pavor.

– Eles… – arquejou. – Eles…

– Eles? As sombras de seus pesadelos? Pode vê-los agora?

De olhos marejados, Leonardo confirmou.

– Faça-os ir embora, por favor.

– Não posso – sentenciou Percival. – Eu já tentei, mas há semanas que eles não vão embora, não importa o que eu faça. Começou com simples sonhos ruins, como os seus, então as visões, as sensações horripilantes e os eventos inexplicáveis foram escalonando noite e dia. Minha mulher adoeceu de medo e foi ser cuidada pela mãe, meus empregados fugiram, e eu simplesmente desisti de contratar outros. Deixei de trazer qualquer pessoa aqui; também não posso sair. Essas… Essas coisas me seguem para onde quer que eu vá, e não há nada que eu possa fazer.

– Dê a eles o que querem.

– O quê? O que seria?

– Justiça. Pague pelo que fez. Por tê-los entregue à polícia. Por ter anonimamente dado orientações para que fossem pegos e mortos de modo a não contarem que você foi o mandante do meu sequestro.

Percival ficou em pé de sobressalto e se afastou dois passos do rapaz.

– Falaram isso a você? – perguntou aterrorizado. – Foi o que disseram?

Ainda jogado no chão, Leonardo fez que sim. Ferreira olhou para as formas etéreas que os cercavam, deslizando pelas paredes feito sombras vivas.

Se, ao longo de todo esse tempo em que tinha sofrido com as assombrações, a ideia de entregar-se passou por sua mente, deve ter passado por um único instante e logo esquecida. Não era difícil imaginar o porquê: era um remédio amargo demais.

– Não! – afirmou. – Não vou pôr o nome da minha família a perder. Não vou passar por esse vexame. O que são, afinal? Pesadelos de criança? Sou homem o bastante para eles. Se apreciam tanto minha companhia, que seja!

A careta que Leonardo fez não foi inspirada por qualquer dor física.

– Por quanto tempo pretende sustentar isso?

– A vida inteira, se for necessário. Chega de ter medo de fantasmas.

O garoto fez um esforço hercúleo para se erguer. Em pé, levantou o braço direito. Imediatamente, Percival sentiu o próprio braço direito se enrijecer de modo estranho. Não era exatamente como se fosse segurado. Era mais como se fosse parcialmente possuído.

– Tentei primeiro minar sua mente, mas agora preciso rever meu método. – O suor, o semblante encovado e os espasmos pelo corpo curvado indicavam que o mal-estar de Leonardo não era de todo fingido, mas algo nele havia mudado significativamente.

– O que… O que está acontecendo? – Perdendo o controle do próprio corpo progressivamente, Percival não conseguia mexer o pescoço e desviar o olhar de quem estava na sua frente, mas tinha plena consciente de que os vultos haviam se descolado das paredes, esticando as mãos translúcidas através do ar frio para tocá-lo.

– Depois do sequestro, dediquei-me a uma literatura um pouco mais sombria que novelas de cavalaria. Devo agradecer-lhe por isso, não? Por ampliar meus gostos, por assim dizer. O estudo dedicado de manuais de necromancia me deu acesso aos espíritos dos meus sequestradores. Incrível o que se pode aprender com os livros certos. Eu pretendia enlouquecê-lo antes de acabar com sua honra e, por fim, com sua vida, mas vamos logo ao que interessa. Ao contrário dos nossos amigos aqui, não tenho a eternidade toda.

Leonardo se concentrou com uma intensidade que fez as veias de sua face se destacarem. Era visível que usava a própria força vital para comandar as entidades que tomavam de assalto o corpo do homem mais velho. Percival emitiu um grito mudo de qualquer que tenha sido o pedaço de consciência que havia lhe sobrado.

– Ainda pode me ver e ouvir, não é? Gosto assim. Gosto que veja essa troca de papéis. Agora eu sou o mandante desses crápulas e você é a vítima com a liberdade tolhida. Mas acho que já conversamos demais. Você deixará essa propriedade que tanto cobiçou para trás, caminhará até uma delegacia e irá confessar tudo. Ou, para ser mais exato, eles confessarão por você através da sua voz. De qualquer jeito, o resultado será o mesmo.

Leonardo ergueu os braços, fechou os olhos e voltou o rosto para cima. Apesar da postura, não era aos céus que lançava uma prece.

Alimentados pelo influxo de energia que recebiam do jovem necromante, os fantasmas reforçaram o domínio sobre o hospedeiro. Percival não tinha mais controle sobre um músculo sequer. Restava-lhe apenas a visão com que observou a expressão do visitante ficar sôfrega.

A face de mármore branco do rapaz brilhava de suor febril; os joelhos dele dobraram até que ficasse ajoelhado sobre o carpete da sala de estar.

Percival viu-se andando tal qual uma marionete movida por cordas espectrais, mas não era para a saída que se dirigia. Renegado ao lugar de um simples passageiro no próprio corpo, quase podia ouvir sussurros dentro de sua cabeça dizendo que não havia tempo para uma confissão.

Por um engano, por um inofensivo erro de cálculo ou por nada menos que uma artimanha infernal para carregar duas vítimas para o abismo, o fato é que Leonardo não estava bem informado sobre a força necessária para concretizar o plano que tinha traçado, e o jovem sucumbia a olhos vistos ao ter a própria vida sugada para que Percival subisse as escadas, atravessasse o corredor e entrasse em um quarto.

Familiares ao cômodo, os possessores foram direto a uma gaveta ao lado da cabeceira da cama. Abriram-na e tiraram uma pistola carregada – a arma que Percival costumava manter por perto para caso se deparasse com qualquer surpresa desagradável.

Virando-se para um espelho cujo reflexo mostrou múltiplas faces misturadas ao seu rosto, Sr. Ferreira viu a si mesmo apontando a pistola para a própria cabeça.

Não havia tempo o bastante para uma caminhada até uma delegacia, uma vez que a fonte que os prendia à terra se esgotaria muito em breve, mas a vingança seria consumada, de uma forma ou de outra. Disso, Leonardo podia ter certeza, seja antes, seja depois de cruzar a linha que separa os vivos e os mortos.

O alvorecer do dia seguinte trouxe consigo uma série de rumores nos quais a casa no final da rua raras vezes era associada ao barulho de disparo escutado no meio da noite.

Somente dois dias depois, quando o antigo lar dos Beviláqua pareceu um bom lugar para procurar por pistas sobre o novo sumiço de Leonardo, é que se chegou à conclusão de que havia algo de errado com aquele endereço.

Parentes, amigos, autoridades, moradores locais, ninguém conseguiu esboçar uma teoria satisfatória que explicasse o que teria levado a um fim tão misterioso duas pessoas de reputação ilibada, ambas oriundas de famílias nobres e respeitadas.

A fisionomia mais esquálida e o caráter mais arredio que Leonardo assumira nos últimos tempos era creditado ao episódio traumático do sequestro, não parecendo sintomas que implicassem em uma morte súbita, sem qualquer ferimento ou sinal de envenenamento.

Também os supostos fenômenos que afugentaram os empregados do casal Ferreira não eram suficientes, inclusive para os menos céticos, para tornar compreensíveis o suicídio de Percival e o fato de as duas mortes se darem na mesma noite e no mesmo local.

Sem oferecer respostas às indagações, a casa foi entregue ao completo abandono. O que antes era o orgulho de uma vizinhança pacata e tradicional, tornou-se apenas a inspiração de calafrios e histórias macabras.

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Tema: espíritos.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 08/05/2023
Código do texto: T7783004
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