Anokutara - CLTS 23

Primeira inspiração: https://www.recantodasletras.com.br/contos-minimalistas/7765463

A pedidos, há um um glossário após o fim do texto.

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No clarão esbranquiçado do consultório, Haruki balançava as pernas suspensas, sentado na maca. A mãe ouvia o médico. A enfermeira pegou uma lanterninha e apontou no olho esquerdo do paciente, talvez tentando encontrar a receita com a solução, depois desistiu, naturalmente. Os dois se encaravam de boca aberta, parecia mais que cada um viam uma montanha em sua frente, até que ela deslizou o olhar à testa do garoto e achou algo estranho: - Que é essa marca?

- Não sei. Nasci com ela.

- Ah...

Parecia uma cicatriz, ou como se tivesse deitado com a cabeça sobre o caroço de uma ameixa e adormecido. A enfermeira permanecia parada, boquiaberta e olhando para a testa de Haruki, enquanto ele ria dessa estagiária lenta; e ainda mais, quando ela soltou um “Quê?”, tal um aluno distraído. A conversa entre os dois parecia ter cessado, o médico suspirou e tirou seus óculos. Se levantaram e foram ao garoto, mas tiveram de esperar a enfermeira, que continuava de cócoras, muito em si, imaginando sabe o quê enquanto encarava o desenho de um grande globo ocular atrás do menino. No silêncio, ao perceber a situação, se pôs de pé, muito envergonhada, fez uma reverência e saiu.

Subiu o rosto para ver os dois adultos. A expressão de ambos, apesar de diferente, só causava desconforto. Ali o ar era frio. Glaucoma era o mal.

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Agora deitado, chegou a noite, Haruki observava o teto. O fitava como se tentasse captar o mínimo de suas partículas, absorto. Já não ouvia, nem sentia. Nenhum estímulo ousava surgir. O externo estava morto naquele momento. O ar lá fora calara-se. Calor ou frio não existiam. Só havia ele e o teto. As preocupações. A borboleta negra da noite pousou em seu peito e suas pálpebras pesaram.

Então, ele foi posto num lugar amanhecido, macio gramado e miúdas flores, érvicas, cheirosas. Havia também uma ponte avermelhada e a água refletia. Brisa bucólica, campestre, lhe abraçava. Diante de si, uma ave pequenina e emplumada de amarelo pousou, mas tão logo a viu, ela voou para trás de si, atraindo seu olhar. Quando virou, se deparou com uma escuridão. O chão era ocre e de rachaduras as quais saíam uma névoa negra espessa. Nuvens muito escuras sustentavam o céu, incendiado, de cair. Onde estava a ave? Percebeu alguém, ao longe. Era ele. A sombra cobria seus olhos e as vestes rubras dançavam com a ventania. A única luz que tinha daquela imagem era a da katana. O coração acelerou, Haruki quis correr dali, em direção à ponte, mas sentiu mãos lhe agarrarem, eram as fumaças que ganharam vida. O vento trazia consigo gritos cujos, do jovem, sangravam os ouvidos. Naquela agonia, viu o homem dar o primeiro passo. Acordou.

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- Hoje você mal respondeu a professora, e até anteontem dizia que era sua matéria favorita!

- É..., perdi o interesse de repente. Na verdade, não quero saber de muita coisa.

- E o que foi? Sua mãe brigou com você de novo?

- Também, mas ela só fez isso por causa de algo que veio antes.

- E o que foi?

- Eu tive outro sonho.

- Mas de novo? Sempre você tem esses sonhos... e sempre sua mãe briga contigo!

- Eu acordei gritando dessa vez. Da última, pelo menos, eu fui até o quarto dela, mas agora foi o contrário. Imagine...

- E “aquele cara” apareceu de novo?

- Ah, sim... Mas agora foi a pior de todas, ele chegou a vir em minha direção.

- Que horror, cara.

Os dois puseram a mão no queixo, observando além da visão, sem chegar a algo concreto. No vazio, até a mais fraca luz vira sol?

- E se você fosse ao mosteiro? – parecia uma ideia brilhante, pela cara.

- Fazer o quê?

- Você pode conversar com algum monge, sei lá. Eles vivem rezando, devem saber lidar com essas coisas.

- Não que eu não reze...

- E quem garante que reza direito? Lá eles acendem incenso quando rezam! Ouvi falar de um monge que vivia sendo atacado por demônios, então o abade escreveu no corpo dele o Sutra do Coração para que o deixassem em paz!

Apesar de Haruki ter a mesma idade de Yuta, aquela empolgação lhe parecia por demais infantil, porém uma fagulha de incerteza lhe venceu e decidiu arriscar. Após a aula, desviou o caminho e se dirigiu ao grande Tōdaiji, de paredes brancas trançadas por escuras madeiras marrons. Um gigante encarando o vento. Subiu a escadaria de pedra e passou pelos largos portões, com certeza encontraria algum monge que pudesse lhe atender, ainda mais naquele dia nublado, de poucos visitantes, mas se deparou, logo ao pisar no interior, que todos eles estavam reunidos no salão principal, recitando um sutra – tão logo não terminariam... Sentiu-se abandonado até pelo sagrado e, sem paciência, quis ir-se, mas na penumbra, à sua esquerda, num cantinho, viu alguém sentado no chão; de vestes arenosas, com um aspecto bem idoso, cheio de sinais e rugas, além do japamala vermelho nas mãos. Resolveu se aproximar, talvez conseguisse alguma coisa com o velho monge, algum dia marcado, sei lá.

- Senhor, com licença... – ele demorou a responder.

- Fale mais alto. – a voz saía lúcida, apesar de cansada; pôs as mãos nos ouvidos.

- Com licença... Posso falar com o senhor? – ao ouvir, o rosto dele pareceu se acender.

- Claro, claro, meu jovem!

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- Você acredita que almas podem se encontrar, com a vontade do destino? Foi isso que senti quando te ouvi!

Haruki lidava àquilo tudo ainda com estranheza.

- Ah, sim... Mas então, vim aqui para tentar falar com um monge..., algum superior, não sei. Tu não és daqui, certo? – de fato, a túnica dele diferia das mais “arrumadinhas”, claro que o velho não era da seita Kegon.

- É, – riu – na verdade eu cheguei aqui há um tempo, mas nasci nessa cidade. Quando me tornei monge preferi peregrinar do que ficar preso num mosteiro. – era esquisito, enquanto falava baixava a cabeça, como se tivesse prestes a cochilar, mas de repente surgia nele algo enérgico. – Mas tenho certeza de que não veio pra saber de mim. Diga, diga, que há contigo?

Então contou-lhe os problemas, e todos eles não pareciam importantes até dizer o real motivo de estar ali: seus sonhos, suas visões. O monge, ao tudo ouvir, mirou um lugar qualquer na parede – pensou. Enquanto meditava, Haruki observou algo em seus olhos: o monge era cego. Isso o incendiou; futuramente poderia ser ele nessa situação. Grande simpatia e curiosidade o cercou. Interrompeu os pensamentos do monge para perguntar sobre sua cegueira.

- Ah! Isso aconteceu lá pra uns 50 anos. Foi aí que resolvi virar eremita. Não sabe como é triste ficar cego! Mas não é que encontrei a felicidade por causa dela?! – e riu muito. – Olha..., você é um bom garoto. Apesar de sua intenção, não é todo monge que tem guardado no hábito a cura de todos os males (tossiu), mas tenho algo pra você. E pôs a mão dentro do tecido, no pescoço, tirando um colar com uma pedrinha. – Há uma antiga lenda: dizem que Kannon dá um de seus olhos àqueles que querem enxergar. Eu já estou muito velho, se me acontecer essa bênção, que é ver por um segundo pra quem tantas décadas se acostumou a ser cego? – gargalhou.

Entregou o colar com a perolazinha irisada. Haruki fez uma longa reverência, tocando a testa no chão e se despediu, sentindo-se bem com a conversa. Entretanto, no meio do caminho, percebeu-se ainda perturbado por nada ter resolvido de sua questão. Lembrou-se da conversa que flagrou na véspera: sua mãe falando com alguém pelo celular, sobre “internação”, sobre ser “doido”, ser “insustentável”. Sentia a dor do seppuku. Podia imaginar como seria o jantar...

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Eram umas cinco da tarde, a mãe ainda não havia chegado, estava sozinho. Acompanhados de si mesmos, que podemos esperar? Como está nossa alma? Tremia. Os corredores, os cômodos, tudo parecia sussurrar algo. Quis ir ao quarto, se trancar, afundar o rosto nos panos e esperar o portão abrir. Subiu os degraus, viu a porta aberta, acolhedora. Foi quando tudo parou, tudo. Surgiu o homem no seu quarto, em matéria, em carne e osso. Ele marchou, seu pisar causou um abalo, os jarros e quadros se agitaram. A luminosa espada se erguia, Haruki iria morrer. Restou correr pelo corredor marrom, atingindo a mesa e o que tivesse pela frente, enquanto ouvia o som atrás de si, do chão desmoronando. Virou para trás e viu que ele já estava a um passo, desferindo um golpe que acertou a parede e fez um rasgo no papel. Era um rasgo em sua consciência. Haruki desceu as escadas, ouvindo fragmentos de porcelana caírem junto. Quando se aproximou da porta, ela se abriu, era sua mãe.

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Ele agora, novamente, estava em seu quarto, tentando não fazer barulho com seu choro. Levou a culpa pela destruição na casa, naturalmente... sua mãe não encontrou mais ninguém, apenas o filho desesperado falando ter visto fantasmas. Lá embaixo ela discutia pelo telefone, repetindo a famigerada conversa.

- Eu fiz de tudo para ele não sofrer, mas parece que só quer saber do pai!

O pai de Haruki morrera há uns bons anos. Praticamente cresceu sem a presença dele. A mãe culpava as visões por isso, mas nem mesmo o garoto concordava.

- Não quero saber! Você acha que posso viver assim? E se ficar louco de vez? Se der nele de me matar? O certo é fazer isso o mais rápido possível.

A aflição não diminuía, com certeza falava sobre sua internação. Ela, ela, que lhe deu à luz, lhe tinha medo. Haruki não era louco, apesar de sua mãe... e sua família acharem isso. Que fazer? A presa frente ao predador. O perigo. É no desespero que surge a mais forte busca pela salvação. - Que fazer? Que fazer? Precisava decidir: fugir de casa ou se meter num mosteiro. Já tinha idade para a segunda opção. Com ajuda daquele monjinho poderia conseguir – e a mãe certamente não atrapalharia... Aliás, qual era o nome dele? – Makio... Não posso esquecer. Amanhã falarei com ele.

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Na manhã seguinte, acordou numa grande agonia: perdera, repentinamente, a visão do olho esquerdo. Na ida ao médico foi confirmada a irreversibilidade do caso (e também a forma anômala de como a doença evoluiu de uma hora pra outra). Isso bagunçou as projeções do doutor, que recomendou visitas mensais, enquanto investigava melhor o caso. Frustração também por parte da mãe, na pior das intenções, pois isso “atrasou” sua ideia de interna-lo. Mesmo em meio àquela adversidade, Haruki teve fé em ter encontrado algum alívio momentâneo. Ainda assim, não deixaria de visitar o templo.

Chegando lá, não encontrou Makio. Perguntou aos outros e ninguém soube responder. Suspirou, decidiu, depois de acender um incenso à estátua do Xaquiamúni, ir embora.

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Passado um tempo, cresceu, mas estava um pouco debilitado. Passou a tomar remédios fortes, seu corpo emagreceu, e seus tormentos não diminuíram. Também não mais viu o senhor Makio. A mãe deixou a raiva, apesar de mergulhar num silêncio torturante. Terminada a escola, a frequência com que via seu único amigo também diminuiu, e o próprio Haruki duvidava de seu futuro: não trabalhava, não entrara na faculdade. Sentia uma aflição, se comparava a um peso morto. Passava boa parte do tempo no quarto, olhando seu rosto no espelho ou deitado. Num dia, ele teve uma grande crise que durou da manhã até a tarde. Era possível ouvir seus ruídos e batidas no andar de baixo. Quando anoiteceu, arfava de esgotamento. Se pôs ao seu costume de se olhar no espelho. Tinha rasgado a blusa branca, quando fora de si, notou só depois. No peito brilhava a pedra que Makio havia dado. Tão bonita... uma pérola mergulhada no arco-íris, banhada no espaço. A lenda... A lenda!

- Namu...

Havia um canivete no armário.

- Namu...

Pôs próximo ao seu olho cego.

- Namukanzeon...

Repetia freneticamente o mantra enquanto cortava fora o seu olho. Em sua loucura, tirou a opala do pingente e direcionou ao vão no rosto, rezando para que lhe devolvesse a visão. Terminado seu frenesi, sentiu um suor frio escorrer pelo corpo, indo de encontro ao chão ensanguentado. Desfalecia? Pôde ver o céu, regaço, com templos e pagodes. Dele uma figura surgia, de mãos unidas e cantando o mesmo: - Namukanzeon, namukanzeon, namukanzeon. Era Makio! – Nesse seu tempo, tive mais sorte. Não tinha fantasmas correndo atrás de mim, mas essa mesma dor me perseguia. Logo, logo eu ficaria completamente cego, mas tive a bênção de poder levar isso em frente sem as suas agonias. Aconteceu mesmo, quando cresci já não enxergava mais nada. E foi como se me lançassem no oceano. Descobri que não tinha ninguém além de mim. Foi aí que tomei esse manto e peregrinei, vivendo de esmolas. Passados muitos anos, muitos templos, muitas ruas, muitas vozes, alcancei um lugar tão longínquo que sequer posso dizer. Todos buscam o topo da montanha e sua brisa suave. Eu já cambaleava, meus pés afundavam no chão, era certo que estava num deserto. Clamava por uma gota d’água. Então, ouvi um eco. Estava numa caverna? E vozes me guiaram até o lugar onde repousava essa mesma pedrinha. Agora sei. Foi Kannon. Ela disse que eu era merecedor, mas eu não poderia aceitar essa condição. O eco era um grito cheio de ódio, rancor, tristeza. É Kanashiro o nome de quem te persegue. Ele viveu na Era Bunsei. Um samurai formoso, mas pouco conhecido em sua época. Sabendo da lenda, queria ele chegar a ela e ganhar fama, ser um senhor. Lutou por isso, viajou mundos e alcançou a caverna, mas encontrou lá dois monges que a guardavam. Na luta, seu pé deslizou no declive das rochas e caiu, batendo a cabeça, diante do altar. É essa a aflição. As almas cobiçosas... Haruki, há 200 anos atrás nossa alma gritava em ódio. Haruki, há 200 anos atrás morria nosso antecessor, diante do tesouro que buscou avidamente. Haruki, depois de todos esses anos, desejei cessar esses clamores, porém tão logo toquei aquela pérola e morri, sem forças, tendo a fagulha dessa vida infeliz como minha última imagem. Haruki, você vive, escute: eu hoje te peço, faça o que não tive a oportunidade de fazer na Terra.

Haruki tornou ao seu quarto. Sentiu novamente calor. O coração: um mokugyo. Lá fora amanhecia. Ele enxergava.

Com um pano, limpou o sangue. Lavou o canivete e o corpo. Achou um tampão que ganhara há um tempo e nunca usou, o pôs. Vestiu o samuê negro que tratou de conseguir escondido, nas suas cogitações passadas. Enquanto descia as escadas, sentia que todo o ar vibrava; tudo sentia vivo, até o que achava nada ser. A mãe, à mesa, dormia. Emagrecera tanto..., o pescoço cheio de rugas, veias miúdas e escuras raiavam de suas pálpebras. Se imaginou lhe beijando a testa, mas a deixou em sua paz. Saiu e foi em direção ao Templo Tōdai; nele havia alguma sensação de alegria? Como das pessoas que se preparam para cometer uma boa ação? Como será o rosto de alguém se doando a quem, há tempos, lhe causa mal?

Passado o portão principal, foi em direção à sala vazia dos Três Veneráveis¹, e, após três grandes reverências, firmou-se frente às imagens desses sábios. Respirou fundo. O mundo inteiro lhe passava pelas narinas. Grande concentração. Quietude, vazio. Já meditava. A sala, escurecida, foi tomada por grandiosa luz emanada da opala no olho de Haruki.

¹: Moju, bodhisattva da sabedoria, Dainichi Nyorai, buda cósmico, e Fugen, bodhisattva da prática.

Estava num deserto. Ventania, calor, areia. Makio, na sua última peregrinação, até ali chegou, encontrando sua maior riqueza. Era ali. Uma vida encontrou luz, outra: destruição. A luz só ilumina – que causa a catástrofe?

- Kanashiro...

Era como antes, mas também não. A mesma pessoa no horizonte, com a mesma postura, o mesmo corpo, a mesma katana. O terror? Já não mais.

- Kanashiro.

Agora podia ver seu rosto, o Sol alcança tudo – estava com um semblante, semelhava, sorumbático. Tácito. Os sensíveis, os que veem além de si mesmos e ouvem os clamores do mundo, os compassivos, poderiam afirmar: Kanashiro segurava as lágrimas. As mais abundantes lágrimas.

Seu passo já não mais abalava o chão. Que coisa: a espada parecia apagada. Acelerava a cada centímetro, o golpe vinha, mas Haruki, em total clareza dos movimentos, conseguia desviar-se. Tão levemente movia seu corpo, como se pisasse em folhas sobre um lago. O tempo parecia parar, só para que bailasse. Que aconteceu com seu ódio? É capaz de lembrar de seu passado? Quanto sangue derramou? O seu próprio. Quantos dias? Anos? Agarrou um desejo, e todo o infinito escapou de suas mãos. A opala brilhava, estava diante de si. Os muros do tempo e razão desabaram. Seus movimentos eram tão rápidos, um espadachim lendário. Quantos anos de treinamento eram necessários para tamanha habilidade? Mal desferia um golpe, outros cinco surgiam para o oponente. Haruki. Nem um único fio de cabelo lhe cortou. Nem um filetezinho de sangue pôde tirar. O que houve? A lâmina deveria acertar seu pescoço, para depois retirar a preciosidade cravada naquele crânio. Nada, nada. Não conseguiu mais, sua espada prendeu. Haruki a pegara. Outras mil mãos seguravam junto. Um dedo lhe tocou a testa, Kanashiro tremeu.

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Eram dois monges desarmados contra um samurai. Deveria vencê-los. Foi a primeira vez que experienciou aquilo.

- Me deem, seus desgraçados!

Sua voz era um trovão, as veias queriam explodir de seus braços, seu pescoço. O rosto completamente desfigurado. Parecia um ser dos ínferos. E mesmo que eles não revidassem um único golpe, foi derrotado.

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- Kanashiro, sua cabeça se fechou tanto para isso. Foi preciso morrer para que ela se abrisse?

Quando se deu por si, sua katana já estava no chão. A mão que lhe impedia, agora, segurava o objeto de sua busca incessante.

- Está na hora de enxergar.

Kanashiro olhou para dentro de Haruki, e viu toda a sua vida num piscar de olhos. As lágrimas saíam. Já não era Haruki, era Makio, lhe pegando pela mão, ele brilhava em ouro. Os dois se tornaram luz, formando um vórtice tão forte que toda areia daquele deserto foi sugada. Tudo virando luz, tudo. Tornava o clarão, um brancor tomou conta de tudo.

Ó, iluminação!

Haruki abriu os olhos, os Três novamente surgiam. Em sua volta, no salão, agora haviam outros monges, todos em gassho e cantando:

Gate, gate

Paragate

Parasamgate

Bodhi svaha!

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Temas: Paradoxo temporal e espíritos.

Glossário:

Anokutara (san myaku san bodai): Iluminação insuperável, completa e perfeita;

Katana: espada japonesa de um corte;

Sutra do Coração: texto sagrado da tradição Maaiana;

Tōdaiji: Templo Tōdai;

Kegon: escola budista (Huayon, na China);

Japamala: "rosário" budista;

Kannon: Bodhisattva da Compaixão, Kuan Yin, na China e Avalokiteshvara¹ em sânscrito;

¹as "mil mãos" que seguram a katana de Kanashiro se referem aos mil braços de Avalokiteshvara, que se comprometeu a se tornar um buda quando tirasse todas as almas do inferno (se não conseguisse, o Buda Amida lhe partiria a cabeça), quando Avalokiteshvara tirou as almas do inferno, outras várias surgiram, então Amida fez o que deveria fazer, mas surgiu outra cabeça no Bodhisattva e outros braços (assim sucessivamente);

Xaquiamúni: Sábio dos Xáquias (povo do Nepal), é Sidarta Gautama;

Namu: frequentemente usado nos nenbutsus (Namu Amida Butsu), pode ser compreendido como "tomo refúgio" - dessa forma Namukanzeon é "tomo refúgio em Kanzeon/Kannon";

Mokugyo: é como um "tambor", muito usado em cerimônias budistas (https://www.youtube.com/watch?v=d1-q9R46nFk);

Samuê: veste muito usada para trabalho pelos monges budistas japoneses, sobretudo da tradição Zen;

Gate, gate, paragate parasamgate, bodhi svaha! [em sânscrito]= "Foi, foi (Gate Gate), Foi além (Paragate), Foi completamente para a outra margem (Parasamgate), Chegou à iluminação, que maravilha (Boddhi), Que assim seja, que se manifeste (Swaha)" ou ""Vai, vai, vai além, vai muito além - desperto - assim seja!" [https://www.youtube.com/watch?v=pk5jxvUZoiA];

Gassho: mãos palma com palma.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 07/05/2023
Reeditado em 13/05/2023
Código do texto: T7782283
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